Punitivismo

Ex-juiz Sérgio Moro atua para resgatar projeto de prisão após 2ª instância; entenda o cenário

Voltar ao tema da prisão após 2ª instância é 'desgaste desnecessário', avalia especialista

Brasil de Fato | Brasília (DF) |
Ex-juiz da Lava Jato em Curitiba (PR), Sérgio Moro deixou a magistratura em 2018 para ser ministro de Bolsonaro e virou senador em 2023 - Geraldo Magela/Agência Senado

Voltou à tona, no cenário do jogo legislativo, a pauta que trata da prisão após condenação em segunda instância. Tendo se tornado uma das bandeiras conservadoras que ajudaram a alimentar a polarização política na história recente do país, a proposta vem sendo ressuscitada pelo ex-juiz e agora senador Sérgio Moro (União-PR), que determinou a prisão do atual presidente Lula (PT) em abril 2018, quando ainda era responsável por julgar processos da operação Lava Jato.

Moro foi recém-empossado no Senado para seu primeiro mandato e conseguiu juntar as assinaturas de 27 senadores para requerer o desarquivamento do Projeto de Lei Complementar (PLS) 166/2018, um dos textos que tratam do assunto. A proposta é de autoria do ex-senador Lasier Martins (PSD-RS), que terminou o mandato em janeiro deste ano, e já havia sido aprovada pela Comissão de Constituição e Justiça da Casa em 2019.

Um recurso apresentado na época por parlamentares fez com que o PL fosse parar no plenário do Senado, onde acabou não sendo votado a tempo do término da última legislatura. Com isso, a medida foi arquivada, assim como ocorreu em janeiro deste ano com mais de 3,2 mil proposições, conforme prevê o rito da Casa para cada final de mandato.

Agora, após o pedido apresentado por Moro e aliados, a pauta dependerá da maré do jogo político para saber se irá prosperar ou não. De olho no cenário, Moro disse à Agência Senado na última quinta-feira (16) que "tem que ser estudado o melhor momento" para tentar colocar a proposta em votação, "mesmo que não seja agora".  

Risco às garantias constitucionais

Especialistas ouvidos pelo Brasil de Fato afirmam que o PL representa riscos a garantias constitucionais, um debate que ganhou intensidade especialmente até novembro de 2019, quando Lula foi solto. O petista saiu das dependências da Polícia Federal em Curitiba (PR) depois de o Supremo Tribunal Federal (STF) derrubar a possibilidade de prisão após condenação de segunda instância.

A iniciativa da Corte naquela ocasião representou a recuperação de um posicionamento que já havia sido firmado no passado e que acabou cedendo lugar temporariamente a uma visão mais punitivista no cenário político-jurídico. O entendimento consolidado em 2019 veio a partir do julgamento das Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs) 43, 44 e 54, em cujo curso o STF decidiu que é constitucional a regra do Código de Processo Penal (CPP) que determina o esgotamento de todas as possibilidades de recurso para o início do cumprimento da pena.

A assessora de advocacy do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), Clarissa Borges, aponta que a iniciativa de se tentar recuperar o PLS 166/2018 vai na contramão do entendimento da Corte.

"Ou seja, o STF, guardião da Constituição, afirma que a presunção de inocência permanece até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória e o Congresso, nessa disputa, tenta modificar por lei federal esse entendimento pra, mais uma vez, o Supremo ter que reafirmar e dizer que é inconstitucional. Então, nosso entendimento é de que essa iniciativa gera um desgaste desnecessário entre os Poderes e num momento em que a República precisa de pacificação, de harmonia entre os Poderes", avalia a assessora de advocacy do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD), Clarissa Borges.

A assessora critica ainda o que chama de "ótica utilitária" da interpretação do direito por parte do segmento político de viés punitivista, interessado em fermentar socialmente o discurso de "prisão a todo custo". "Nós sabemos que esse tipo de decisão acaba tendo um alvo muito específico, as pessoas pobres e negras, que são os maiores alvos do sistema penal brasileiro", pontua Clarissa, ao chamar a atenção para um dos principais efeitos colaterais do punitivismo.  

"A justificativa pode até ser a de prender pessoas que cometem crimes de colarinho branco, mas, em termos práticos, o efeito maior é sentido por esses grupos que mencionei. Então, faz-se um alvo, tenta-se criar uma norma que se dirige a ele, fragilizando todo um sistema que foi muito bem pensando pelo constituinte em 1988 e que de fato merece um exame cuidadoso, uma vez que também são direitos que a população brasileira quer ver preservados, [como] a razoável duração do processo e as questões pertinentes à segurança pública", acrescenta a interlocutora do IDDD.  

Na mesma sintonia de raciocínio, o advogado criminalista Matheus Chiocheta, coordenador-adjunto do Departamento de Estudos e Projetos Legislativos do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), vê o retorno do PLS como algo derrapante em termos de garantia de direitos.

"É inconcebível a gente dar como coerente uma antecipação da prisão. Veja o estado das nossas prisões: nós vivemos num estado de coisas inconstitucional", salienta, ao se referir ao estado de violação massiva e generalizada de direitos fundamentais no sistema prisional brasileiro.

O especialista qualifica o PLS 166 como "flagrantemente inconstitucional". "É um absurdo político, jurídico, regimental e de outras vertentes um PL desses ter passado por uma CCJ. Se existe um mínimo de filtro, até mesmo de fundamento argumentativo, de racionalidade legislativa penal que deve servir a um parlamento minimamente centrado naquilo que o direito penal, o processo penal e o próprio constitucionalismo preconizam, o grande filtro, a grande peneira deveria ser justamente a CCJ, por isso uma coisa dessas nem deveria ter sido aprovada pela comissão".


Senadores bolsonaristas Sérgio Moro, Hamilton Mourão (Republicanos/RS) e Marcos Pontes (PL/SP) durante sessão plenária / Jefferson Rudy/Agência Senado

Bancada da bala

Do ponto de vista do jogo político, Chiocheta chama a atenção para a quantidade de nomes da nova legislatura que são ligados a instituições militares. Segundo levantamento do Instituto Sou da Paz, entre os parlamentares eleitos para a legislatura 2023-2026, dois senadores e 44 deputados federais atuam ou já atuaram como membros do Exército, bombeiros, policiais civis, militares ou federais.

Na Câmara dos Deputados, o salto foi de 14 eleitos em 2018 para o atual patamar de 44, um aumento de mais de 300%. O grupo de políticos com esse perfil é geralmente chamado de "bancada da bala" e associado a pautas punitivistas e conservadoras, como ampliação do uso de armas, incentivo à lógica prisional, entre outras. É também por conta desse cenário que a preocupação com o PLS 166 se mantém entre os especialistas, pois os movimentos ocasionais do jogo político podem acabar favorecendo adiante um eventual fortalecimento da pauta da prisão após condenação em segunda instância e pautas do gênero.

Matheus Chiocheta lembra que o momento atual, em que os partidos estão discutindo as composições das comissões na Câmara e no Senado, é oportuno para uma maior articulação do campo progressista no sentido de indicar nomes estratégicos para esses colegiados, principalmente para a Comissão de Constituição e Justiça.  A CCJ de cada casa legislativa é, via de regra, a porta de entrada das propostas de lei, sendo o colegiado responsável pela averiguação técnico-jurídica dos textos que demandam o crivo parlamentar.

"Sob esse ponto de vista, é preciso cada vez mais se construir uma racionalidade legislativa penal pra que se criem bases assentadas dentro dessas CCJs pra evitar que esse tipo de coisa pare de passar com aprovação dos parlamentares", defende.

Edição: Thalita Pires