Opinião

Sakamoto: como a tragédia em SP explica o Brasil de pobres, ricos, violentos e parasitas

Os relatos contrastantes do desastre mostram um país doente e mal preparado para o caos que ele próprio cria

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Uma investigação vai apurar a responsabilidade do poder público em tragédia no litoral de SP - Divulgação/Governo de SP

A forte chuva que caiu no litoral norte de São Paulo deixou um saldo diferente para ricos e pobres - consequência lógica de um país que ostenta a desigualdade social como patrimônio natural. Nesse sentido, a situação no município mais afetado, São Sebastião, é um microcosmo da realidade brasileira.

Tão logo a água invadiu casas e pousadas de luxo, influenciadores, famosos e ricos postaram vídeos em desespero nas redes sociais, reclamando que haviam perdido carros e roupas. Triste, claro. Mas isso deveria nem fazer sombra ao que aconteceu na comunidade de Vila Sahy, onde centenas de pessoas perderam tudo. Muitos, a própria vida.

Tragédias não são comparáveis, você pode dizer. Só para a nossa sociedade, que coloca patrimônio acima da dignidade humana.

A Vila Sahy nasceu como uma ocupação formada por migrantes nordestinos que vieram tentar a sorte no litoral paulista. As casas simples abrigam trabalhadores que prestam serviços para as residências e os negócios de alto padrão na região.

Originalmente, as famílias humildes é que moravam na praia, onde agora ficam os condomínios, pousadas e hotéis. Mas foram sendo empurradas pela especulação imobiliária para as encostas de morros, em um processo que também mata nas periferias da Grande São Paulo, de Santa Catarina, do Rio de Janeiro, da Bahia, e de vários lugares soterrados pelas chuvas por inação de governos.

Não apenas o impacto foi menor nos locais mais ricos e com mais estrutura, como também a logística foi diferente. Há uma São Sebastião rica, das praias e de parte dos sertões, e uma muito pobre, nos morros. Em uma, há quem não encontre problemas em alugar um helicóptero pagando 31 salários mínimos, enquanto na outra muitos voaram pela primeira vez depois de mortos.

Enquanto o Exército usa helicópteros para transportar os corpos de vítimas da comunidade Vila Sahy, deixando-os em um heliponto improvisado no meio da rodovia Rio-Santos, outros fazem voos de aluguel para ricos deixarem o litoral.

Empresas de táxi aéreo estão cobrando até R$ 40 mil (oito passageiros mais serviço de bordo) para buscar turistas ilhados. Caro? Para muitos, é dinheiro de pinga mesmo com os preços inflacionados pela alta demanda. Camila Turtelli, do UOL, conversou com empresas que disseram ter recebido mais de 50 telefonemas e interessados em um único dia.

Seguimos parecidos com um transatlântico sem botes salva-vidas para os seus trabalhadores. Na verdade, apenas quem paga passagem na primeira classe tem acesso ao mimo.

E, em meio ao caos, surgem aqueles que querem levar vantagem em tudo, outro tipo bastante conhecido no cenário nacional. Problemas no tratamento de água pela Sabesp devido às chuvas fez com que a água fosse racionada. Aproveitando o medo e a incerteza, surgiram parasitas cobrando mais de R$ 90 a garrafa de água mineral, como relatado pela imprensa.

Oferta e demanda, explicarão representantes do mercado. Mas esse salto em uma tragédia não se justifica. É tentativa de explorar o sofrimento alheio - coisa que parte do mercado não vê problema, se gerar algum cascalho.

O governo de São Paulo diz que a Sabesp (ainda não privatizada) enviou 40 mil garrafas de água, 108 mil copos e 30 mil litros e que o abastecimento foi retomado. O problema, novamente, é o que acontece em locais mais pobres, cujo acesso está mais difícil. Serão igualmente beneficiados em comparação aos locais mais ricos?

E não seria um retrato do Brasil de hoje se não houvesse violência burra de uma extrema direita tosca que vive em seu universo paralelo.

Dois repórteres do jornal O Estado de S.Paulo, Renata Cafardo e Tiago Queiroz, foram agredidos fisicamente e chamados de "comunistas" por um grupo de moradores do condomínio de luxo Vila de Anoman, em Maresias, também em São Sebastião.

Ambos tiveram a entrada autorizada para falar do condomínio, que ficou com ruas alagadas e carros inundados. Lá as casas têm 315 metros quadrados e piscina privativa e são vendidas a R$ 3,5 milhões cada.

O grupo de agressores, segundo os jornalistas, estava indo curtir uma praia quando parou para agredir a reportagem.