yvyrapygue

Mais um broto da retomada de Laranjeira Nhanderu germina em território ancestral Guarani Kaiowá

Este ano, a comunidade avançou, mas o histórico da luta inclui assassinatos, prisões e despejos ilegais

Brasil de Fato | Dourados (MS) |
Guerreiros Guarani Kaiowá na retomada do tekoha - Aty Guasu

No dia 3 de março, mais uma parte de Laranjeira Nhanderu, território Guarani Kaiowá em Rio Brilhante, Mato Grosso do Sul (MS), foi retomado com a força das rezas e dos encantados. A retomada foi batizada de Yvyrapygue, literalmente “raíz de árvore”.

Junto aos rezadores e rezadoras, a comunidade caminhou sob a madrugada desde a pequena faixa de 30 hectares de mata ciliar onde habitam desde a primeira retomada, em 2007, na direção da sede da fazenda que incide sobre a Terra Indígena e do descampado de soja recém-colhida, onde levantaram os primeiros barracos de lona. 

No raiar do dia, policiais civis e militares se deslocaram para ameaçar e forçar um despejo ilegal – sem mandado –, atuando mais uma vez como seguranças privados dos latifundiários e em benefício da expansão da soja. A Fundação Nacional dos Povos Indígenas (FUNAI) foi impedida de ingressar na retomada pela polícia.

Como resultado da violência policial, três lideranças indígenas Guarani Kaiowá foram presas: Mboy Jeguá, conselheira da Kunhangue Aty Guasu; Ava Rendy, conselheiro da Aty Guasu; e Ava Jeguaka, conselheiro da Retomada Aty Jovem. As raízes do tekoha, entretanto, permanecem irremovíveis. 

O tekoha Laranjeira Nhanderu faz parte da Terra Indígena Brilhantepeguá, em fase de identificação para demarcação e homologação. Podemos dividir a linha do tempo do território em 8 momentos principais para os fins desta matéria: 

1)    Em 2007, Laranjeira Nhanderu é retomado, ano em que a comunidade sofreu graves agressões por parte da empresa de segurança privada GASPEM, vinculada a inúmeros assassinatos de indígenas Guarani e Kaiowá; 

2)    No mesmo ano, é feita a abertura do Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), firmado entre o MPF e a FUNAI, que estabelecia a obrigação da entrega de relatórios de identificação e delimitação de Terras Indígenas no MS, incluindo Laranjeira Nhanderu, com o prazo máximo do dia 30 de junho de 2009;

3)    Em 2009, Laranjeira Nhanderu sofre despejo e a comunidade é obrigada a viver na beira da estrada por 1 ano e 8 meses; 

4)    Em 2011, a comunidade retoma a área de floresta atualmente ocupada; 

5)    Em 2018, a comunidade amplia o controle territorial através de nova retomada, imediatamente ameaçada de despejo. Sequencialmente, a ordem de despejo é derrubada e a comunidade se mantém, permanecendo até hoje em resistência [Laranjeira Nhanderu II];

6)    No início de 2020, a casa de reza (ogá pysy) dessa nova área retomada é queimada por membros de igrejas pentecostais; 

7)    Em 26 de fevereiro de 2022, novo avanço da retomada ocorre, através da ocupação de área da fazenda que incide sobre a Terra Indígena, processo que resulta em despejo ilegal e em uma série de violações vinculadas ao Programa Nacional de Crédito Fundiário (PNCF), que ameaça deslocar centenas de assentados para a área da fazenda.

8)    No dia 3 de março de 2023, a comunidade avança sobre a mesma área retomada no ano anterior, desta vez garantindo sua permanência, porém com o saldo de três prisões ilegais.


Mapa com as localizações aproximadas das retomadas de 2007 e 2023; e da sede da fazenda do Inho, nas cercanias da BR-163 sentido Rio Brilhante / Reprodução

 

Retomada, despejo ilegal e o Programa Nacional de Crédito Fundiário em 2022

Na madrugada do dia 26 de fevereiro de 2022, os Guarani e Kaiowá do tekoha Laranjeira Nhanderu entraram na sede da Fazenda do Inho, propriedade de Raul das Neves Júnior, filho de Raul das Neves, conhecido como "Portuga", para reivindicar mais uma parte de seu território ancestral. Importante notar que Raul das Neves Júnior é presidente do Partido dos Trabalhadores (PT) de Rio Brilhante.

Naquela ocasião, a comunidade também se manifestava contra a ameaça de assentamento ilegal que se realizaria diretamente na Terra Indígena que ocupa. A implementação iminente desse assentamento, promovido como plano piloto do Programa Nacional de Crédito Fundiário (PNCF, antigo "Terra Brasil"), seria aplicada sob a própria Fazenda do Inho.

Após a retomada, na manhã do dia 26 de fevereiro, diferentes forças repressivas estatais - Polícia Rodoviária Federal, Polícia Civil, SIG e Polícia Militar -, em conjunto com fazendeiros e políticos locais - incluindo Raul das Neves, da fazenda do Inho, e o vereador Adão Evandro Pereira Leite (DEM) - fecham as entradas/saídas do local ocupado, impedindo que qualquer pessoa adentre no local.

A polícia fecha a rodovia BR-163, bloqueando a circulação e criando um cerco sobre o local. Inicia-se, assim, uma violenta operação de expulsão das famílias indígenas: as balas de borracha não cessaram mesmo sob gritos das famílias anunciando que não estavam armadas e pedindo a interrupção dos tiros. Nessa ação ilegal, a polícia atinge cinco pessoas, incluindo crianças e idosos, e em seguida volta suas ações repressivas a servidores da FUNAI. 

Tratava-se de uma reação violenta por parte das forças políticas que, através do PNCF, tentavam garantir o controle da área de assentamento vinculada à fazenda Inho. Por meses, “Ramão”, pai do já mencionado Adão Leite (DEM), buscou, sem sucesso, manipular a comunidade de Laranjeira Nhanderu.

Sua tentativa era que a comunidade assinasse documentos de “consulta” sobre o reassentamento de dezenas de famílias no território reivindicado, que já haveria sido cedido aos supostos “sem-terra” (sem nenhum vínculo com o MST) por Raul das Neves.

A circunstância revelou a relação direta entre os interesses de latifundiários e das cadeias de exportação de commodities com o despejo e as práticas insidiosas dos políticos e fazendeiros da região.

O despejo ilegal ocorrido em 2022 contra Laranjeira Nhanderu inaugurou um ano de massacres e execuções, mas também a intensificação das resistências indígenas. Em maio do mesmo ano, Alex Lopes, indígena Guarani Kaiowá de 18 anos, foi assassinado por pistoleiros enquanto colhia madeira em área de mata próxima da aldeia Taquaperi, em Coronel Sapucaia (MS).

Sequencialmente, nasce a retomada Jopara, onde hoje se ergue uma casa de reza e a memória de Alex é transformada em luta. Ainda em maio, ocorre a primeira retomada e o primeiro despejo ilegal contra Guapo’y Mirin Tujury, que seria palco do Massacre de Guapo’y no dia 24 de junho, após a segunda retomada do território ancestral em Amambai (MS), quando Vitor Fernandes foi assassinado e dezenas de pessoas ficaram feridas após a ação da Polícia Militar e do Batalhão de Choque.

Nas semanas seguintes, Marcio Moreira e Vitorino Sanches – ambos lideranças e apoiadores da retomada – seriam executados em emboscadas. Paralelamente, a retomada de Kurupi (Naviraí-MS) era atacada contínua e alternadamente por policiais e fazendeiros.

O ano se encerra com o assassinato brutal da rezadora (nhandesy) Estela Vera, que resistia ao avanço dos arrendamentos contra a retomada de Yvy Katu, em Japorã (MS). Em todos os casos, a monocultura de grãos e o arrendamento de terras confluem como dinamizadores da violência estatal e privada/empresarial. 

Retomada firme como tronco de aroeira

A retomada de Yvyrapygue irrompe na primeira noite sem nuvens de semanas de chuva no MS. Mais um passo foi dado na recuperação do território ancestral de Laranjeira Nhanderu, caminho comemorado por Seu Olímpio, rezador (nhanderu) Kaiowá de 83 anos que celebrou o levantar dos primeiros barracos de lona e não cessou a reza ao longo da madrugada com seu mbaraká empunhado. Seu Olímpio foi o primeiro alvo da Polícia Militar na tentativa de despejo ilegal. A ação dos três presos impediu que o rezador fosse levado. Seu Olímpio é pai de Mboy Jeguá, conselheira da Kuñangue Aty Guasu, professora e pesquisadora. 


Seu Olímpio, rezador de Laranjeira Nhanderu, sentado sobre a lona / Aty Guasu

Há meses, a comunidade de Laranjeira Nhanderu vinha denunciando os ataques químicos, o envenenamento e o desvio do curso dos rios e córregos circundantes e que atravessam o Tekoha. Distintos problemas de saúde vinham sendo relatados por conta do consumo de águas contaminadas por agrotóxicos da Fazenda do Inho.

Ao mesmo tempo, a comunidade, espremida na área de mata e impedida de plantar, enfrentava dificuldades para a produção de seus próprios alimentos, cercados por um mar de soja e máquinas agrícolas. 

A prisão das três lideranças indígenas Guarani Kaiowá é simbólica, considerando ainda que cada um faz parte de um conselho de base distinto das estruturas máximas de decisão de seu povo. A ação repressiva que mira rezadores e rezadoras indica um conjunto de questões estruturais: qual a relação entre a tentativa de prisão e agressão de Olímpio e, ao mesmo, as insistentes tentativas do ingresso de igrejas pentecostais em áreas de Laranjeira Nhanderu – acompanhando as tentativas de imposição do arrendamento de terras para o plantio de soja?

Qual o interesse dos arrendatários em controlar a produção das terras de Laranjeira Nhanderu, às margens da BR-163, rodovia central na logística de exportação de commodities? Em nossa leitura, essas perguntas dizem respeito a uma ofensiva latifundiária (e) Estatal-empresarial constatada na sequência de despejos ilegais, massacres e prisões/criminalizações contra os povos Guarani e Kaiowá que indica a existência de um novo período de saque colonial para viabilizar ou condicionar esses territórios a um único objetivo: ampliar a acumulação capitalista e integrá-los ao mercado global.

Os governos de turno mudam, mas o extrativismo monocultor, as concessões e umbilical relação do Estado com o latifúndio e os herdeiros da colonização permanece intacta. A repressão contra a retomada de Yvyrapygue no dia 3 de março deste ano foi aplaudida de pé pelo governo de Eduardo Riedel (PSDB), intimamente vinculado ao Programa Nacional de Crédito Fundiário. Antonio Carlos Videira, secretário de Estado de Justiça e Segurança Pública do MS, novamente mancha suas mãos com sangue, após comandar o massacre de Amambai em 2022. A liberação das lideranças a partir da audiência de custódia, após um dia e uma noite na delegacia, não atenua o despautério de suas prisões.

As acusações infundadas que constam no processo – “esbulho possessório, resistência e desobediência” – revelam a forma como os órgãos repressivos intentam criminalizar uma luta política e ancestral por terra, território e demarcação, além de tentarem descaracterizar o caráter da legítima reivindicação da retomada de terras historicamente usurpadas pelos atuais reis do agronegócio, filhos de outras coroas.

O retorno das lideranças presas ao Tekoha recebidas pelas rezas das nhandesy e nhanderu, ocorreu em meio a efetivação da perícia antropológica em curso. Dessa vez, a nova retomada de Laranjeira Nhanderu permaneceu de pé, como raízes de Aroeira. Em meio a mata ciliar, uma nova ogá pysy está sendo construída – imagem que encerra estes escritos como um prenúncio da reconstituição integral do grande território Guarani Kaiowá e da sempre viva potência do modo de ser dos antepassados, prática e memória insurgente que mobiliza um novo tempo de retomadas.


Espera-se que a nova ogá pysy sendo construída no território retomado seja prenúncio de novos tempos para os Guarani Kaiowá / Aty Guasu

 

* Comitê de Solidariedade entre os Povos é uma plataforma de luta e apoio mútuo para a libertação dos povos em suas resistências anticoloniais, anticapitalistas e antipatriarcais.

** O Observatório da Kunhangue Aty Guasu é uma organização que coordena apoiadores/as da luta indígena Guarani e Kaiowa a partir das estruturas organizativas da grande assembleia das mulheres Kaiowa e guarani, abrangendo apoio e construção coletiva de resistências jurídicas, antropológicas, movimentos sociais, educadorxs populares, psicólogxs, assistentes sociais, entre outros, com objetivo de construir uma rede autônoma de solidariedade militante com os povos

*** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Rodrigo Durão Coelho