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'Antonio Conselheiro incomoda porque, onde há luta, Canudos renasce', diz historiador do CE

Beato Antonio Conselheiro foi líder da Guerra dos Canudos, um levante popular contra a fome; evento relembra seu legado

Quixeramobim (CE) |
Abertura da 19ª edição do encontro "Conselheiro Vivo" com a participação de Manuela d'Ávila - Foto: David Einstein Rabelo

O beato Antonio Conselheiro figura as páginas de livro de História como o líder da Guerra dos Canudos, um dos principais conflitos do Brasil Império, no qual 20 mil sertanejos da Bahia ocuparam uma fazenda improdutiva e insurgiram contra o Exército Nacional em uma luta contra a fome, a miséria e a seca.

Mas Conselheiro foi e segue sendo mais do que isso: "ele incomoda todo dia, porque onde tem luta do povo, onde tem mobilização no campo e na cidade, é uma Canudos que renasce", diz o historiador e professor Neto Camorim, que é membro da organização não governamental Instituto do Patrimônio Histórico, Cultural e Natural de Quixeramobim (IPHANAQ).

Há 19 anos a instituição realiza o evento Conselheiro Vivo, que este ano vai até a próxima segunda-feira (13), em Quixeramobim (CE), cidade natal do beato. O objetivo é divulgar e manter viva a memória de Antônio Conselheiro, promover debates contemporâneos e realizar de eventos culturais, que atualizam a memória de Conselheiro. A programação completa está nas páginas da Casa do Antônio Conselheiro e da ONG IPHANAQ.

"Conselheiro é alguém que passa fome, é alguém que não tem moradia digna, é alguém que não tem comida na mesa. Conselheiro é alguém que discute as políticas e injustiças tributárias desse país. Conselheiro e os ideais de Canudos estão vivos na luta do povo", reforça Camorim, em entrevista exclusiva ao Brasil de Fato Ceará. Confira:

A história conta que o beato Antônio Conselheiro viveu entre 1830 e1897, foi um líder religioso e o fundador do arraial do Belo Monte, mais conhecido como Canudos, onde foi protagonizada a Guerra de Canudos. Para além disso, quem é Antônio Conselheiro?

Antônio Conselheiro foi e é um homem incompreendido ainda hoje, como era também no passado. Ele significa luta e resistência, porque os ideais de Conselheiro continuam vivos a cada dia e se espalha em cada canto desse país, cada vez que alguém precisa de terra, comida, dignidade humana e justiça social.

Esse Antônio Conselheiro saiu daqui de Quixeramobim por volta de 1857, filho de um comerciante que depois que liquidou os negócios do pai, que faliu, teve que vender todos os empreendimentos e saiu dessa cidade, peregrinou um certo tempo pelo sertão do Ceará, na zona norte depois vai ao sul do estado. Este homem, andarilho, bebe nas fontes de inspiração do beato de Ibiapina, outro grande líder da história popular do nosso povo, e se transforma em uma figura que vai lutar, acima de tudo, acreditando na solidariedade, no trabalho comunitário e na justiça social.

Conselheiro era uma figura além do tempo, que estava preocupado em solucionar os problemas da seca, sabendo muito bem que o problema do sertão não é a seca, é a cerca do latifúndio, por isso que ele vai incomodar tanto.

Antônio Conselheiro incomodava naquela época. Ele ainda continua incomodando?

Muito. Esse Conselheiro incomoda todo dia. Ele incomoda porque aonde tem luta do povo, aonde tem mobilização no campo e na cidade é uma Canudos que renasce. É alguém que passa fome, é alguém que não tem moradia digna, é alguém que não tem comida na mesa. Conselheiro é alguém que discute as políticas e injustiças tributárias desse país. Conselheiro e os ideais de Canudos estão vivos na luta do povo.

E o que é que significa manter viva a memória e a história de luta de Antônio Conselheiro?

Nesses últimos 19 anos, que tem acontecido edições do Conselheiro Vivo, nós temos levado essa discussão para a escola. A nossa ONG, o IPHANAQ, é uma das pioneiras que idealizou e começou esse movimento, depois essas outras entidades vieram somando e é muito importante porque a nossa preocupação é com a formação e com registro. O maior legado desse evento é que ele é um evento de formação nas escolas, seja educação de Ensino Fundamental ou de Ensino Médio, com oficinas, palestras, exposições e vídeos, para que isso seja fomentado nas escolas.

Para nós o evento tem grande importância porque possibilita que as pessoas conheçam a história de Conselheiro e daqueles que o seguiram.

Qual a importância da realização e do fortalecimento do Conselheiro Vivo, que este ano chega a sua 19ª edição?

O legado que fica desse movimento é a possibilidade de, primeiro, despertar nos jovens e nas crianças a curiosidade de conhecer a história de Canudos, pelas mais variadas linguagens artísticas e culturais. E, depois, para que a cidade conheça Conselheiro. A cidade sempre negou historicamente o papel desse Antônio Conselheiro, porque ele saiu daqui um pouco, digamos, decepcionado. Um homem que teve que ir embora porque a família faliu, o pai faliu um negócio. Então a cidade virou as costas para ele, de certa forma, e ele vai ser esse grande líder lá fora e trazer a possibilidade de reconstruir essa história aqui na cidade.

Para nós é muito importante porque fortalece esse legado, fortalece essa história e possibilita a juventude e às crianças conhecerem mais e registrar e valorizar a memória da história de Conselheiro e seu povo.

Você pode falar um pouco sobre a programação do evento?

A programação começou em 2 de março com um cortejo com as escolas municipais da cidade. Depois houve uma roda de conversa com a presença da Manuela d'Ávila, para discutir a questão do feminismo, a luta por direitos das mulheres e as repercussões dela nas políticas públicas para as mulheres no Brasil. 

Realizamos também uma mesa muito interessante que promoveu um encontro com o povo da Bahia, que vem prestigiar nosso evento. Eles são de Canudos e da Universidade do Estado da Bahia (Uneb). Houve também show com Chambinho do Acordeon. A programação segue a próxima segunda-feira (13), com visitas históricas ao centro da cidade e um concurso de literatura de cordel.

Você está preparando um roteiro de viagem que segue os passos de Conselheiro pelo Sertão da Bahia e Sergipe. Como vai funcionar essa ação?

Eu já conheço Canudos. Se não me engano, já são 20 vezes que eu fui a Canudos, de 2007 para cá. De 2012 para cá eu tenho ido todo ano. A gente fez um acordo com o povo de Canudos que a gente iria para Romaria de Canudos, que é em outubro, e eles viriam em março para o evento Conselheiro Vivo. Guardada as devidas proporções, anos maiores outros menores, nós temos mantido essa tradição de fortalecer esse vínculo por meio da sociedade civil e dos movimentos populares.

Nos últimos cinco anos, pela mobilização da sociedade, outras entidades ligadas aos governos, seja da Bahia e, principalmente do Ceará, através da Secretaria de Cultura do Estado, permitiu que nós estreitássemos mais essa relação. Depois de 2014 comecei a construir essa ideia, como um projeto pessoal, de começar a visitar os percursos de Conselheiro na Bahia e Sergipe. De lá pra cá tenho visitado todos os lugares em que Conselheiro esteve na Bahia, onde construiu igrejas, cemitérios, estradas, alguns ainda existem, outros não tem mais, mas por curiosidade, estou fazendo um diário de bordo e pretendo depois publicá-lo quando eu concluir esse trabalho.

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Edição: Camila Garcia e Sarah Fernandes