'Nenhuma a menos'

A Mulher 'da Lei' e a Mulher 'Bandida': que bela homenagem para o Mês da Mulher

Ser mulher é: a) ser morta b) sofrer discriminação c) sofrer violência doméstica d) trabalhar mais e) receber menos

Salvador (BA) |
Nenhuma a menos: mulher santa, da lei, guerreira, bandida, oprimida e explorada pelo sistema, a que recomeça na derrota - wikiCommons Fora do Eixo

 

 

Eu acho que a mulher do fim do mundo é aquela que busca, é aquela que grita, que reivindica, que sempre fica de pé. No fim, eu sou essa mulher.

Elza Soares

“Eu sou minha única musa, o assunto que conheço melhor”

Frida Kahlo

“Não se nasce mulher: torna-se”

Simone de Beauvoir

 “O destino de uma mulher é ser mulher”

Clarice Lispector

 

Desfiar as manifestações poéticas, filosóficas, do campo conservador ou marxista de concepção feminista exigiria um espaço para além do tênue recinto de uma reflexão impaciente. O fascinante e complexo estrado onde se perpetram as lutas das mulheres, as disputas teóricas sobre as diversas “ondas” do feminismo, proliferam pelo tempo, escoam por academias, pelas ruas, pelas conexões velozes e sofisticadas das redes sociais, sempre recontando as histórias vivenciadas pela mulher desde o “ser mítico” do primitivismo, à “cozinha” anterior ao século 18.

Da mulher explorada nas longas jornadas de trabalho da Revolução Industrial, à definição dos papeis sexuais, que colocavam em confronto homens políticos X mulheres domésticas, da Revolução Francesa, ao empoderamento da Modernidade e dos grandes (e infinitos) debates pautando que “o lugar da mulher é onde ela quiser”. Resta conferir a essa afirmação a garantia que exige para se consolidar como verdade.

Ainda lagrimamos o trágico incêndio que fatalizou 123 mulheres e 23 homens em 25 de março de 1911, em Nova York, resultado da prática autoritária de fechar as portas das Oficinas para obstruir saídas dos trabalhadores em momentos de pausa. Junto à notícia do sinistro, a denúncia do tratamento desumano dado às operarias, método que se reproduz ainda hoje, como amplamente veiculado pela mídia, com trabalhadores (baianos) de vinícolas de Caxias do Sul, RS, flagrados em condição análoga à de escravos.

O dia 8 de Março significou a arrancada de forças ativistas que defendiam pautas femininas, ás quais se alinhou o movimento Operário, tomando as ruas de São Petesburgo, “marcando o início da Revolução Russa de 1917”, somando forças às causas feministas. Estava fincada a bandeira do Dia Internacional da Mulher, 8 de Março, oficializado pela ONU em 1977.

E desde então, as mobilizações se sucedem, as mulheres marcham, ocupam as ruas, as redes sociais, os campos, a Academia, os espaços onde se constroem doutrinas, artes, para que suas narrativas demonstrem a necessidade de escuta de suas vozes, apontando a “falta de oportunidades; desigualdades salariais; baixa representatividade política; menor presença em cargos de poder; maioria na chefia das famílias; saúde mental e violência de todos os níveis, principalmente o feminicídio”, segundo Patrícia Romana Silva do Nascimento, Presidente da Comissão da Diversidade Racial e Etnia do IBDFAM, em atividade sobre os desafios para 2023, em comemoração ao Dia Internacional da Mulher. “O maior desafio de uma mulher, hoje, é se manter viva”, afirma a advogada. 

Na OAB Bahia, em março de 2016, sob a chamada O Palco É Nosso, a Conferência que abriu o Mês da Mulher no Ano da Mulher Advogada, com o Tema A mulher como protagonista de sua própria história, levantou as histórias por onde as mulheres trilharam suas buscas e afirmaram suas conquistas. O evento sintonizava com a Sessão Especial que ressaltava a inclusão definitiva das mulheres nas instâncias deliberativas da Instituição, quando o Presidente Nacional da OAB Claudio Lamachia, em homenagem ao Dia Internacional da Mulher, proclamou 2016 como o Ano da Mulher Advogada.

Fato é que, decorridos anos de peregrinada, as mulheres ainda buscam resgatar conquistas civilizatórias, para além da positivação de direitos que se fixaram nos textos legais formais e querem o reconhecimento de que tem direito a ter direitos. Não obstante os episódios de luta coletiva, o Monitor da Violência e o Núcleo de Estudos da Violência da USP apontam 2022 com o retrato infausto de 1.410 mulheres vítimas de assassinato, “o maior número desde a Lei do Feminicídio”, “uma mulher assassinada a cada 6 horas”.

Ser mulher se traduz em ser morta, ser vítima de violência doméstica, de discriminação de gênero, de salários diferentes dos homens, ainda que no exercício das mesmas funções. Situações, para Maria Luiza Póvoa Cruz, advogada e presidente da Comissão Nacional do Idoso do IBDFAM, que “são marcas características de uma sociedade historicamente desigual e que ainda precisa dar passos importantes na luta contra o patriarcado”.

Essa sociedade “banqueira” e seletivista é “comboiada” por sujeitos individuais e grupais que pactuam com as práticas historicamente cultuadas de desrespeito a direitos, de menosprezo por processos afinados com a defesa de valores e princípios democráticos. Essa “agremiação” midiatizada, segregacionista, classista e aporofóbica, movida por células de ódio, de intolerância e de indiferença “ao outro, à outra”, que não reconhece como pertencente a seu universo encapsulado em ideologias fascistas, conta com aliados importantes para a manutenção do patriarcado, categoria harmonizada com finalidades colonizadoras desviadas de horizontes que se definam pela solidariedade e pelo compartilhamento de catálogos que construam agendas de combate e remoção das desigualdades e de “transformação da realidade através da ação coletiva” (Mirla Cisne)

Nessa definição de papeis compactuados para a cultura da sabotagem na tradução dos fatos para a “opinião pública”, destaque-se a mídia corporativa, hegemônica, “coqueteleira” ávida por percentuais de audiência, astuta e eficiente na mistura de ingredientes que oferece ao sujeitos à frente da tela da TV e agora, das redes sociais.

Graziele Rodrigues de Oliveira em análise sobre o legado colonialista do Brasil, aponta a naturalização da “marginalização social”, pelo discurso dominante, a punição dos mais pobres como artificio do Estado no trato com a “criminalidade” evidenciando a responsabilidade da “atuação dos telejornais na promoção do ódio e na construção do Outro como inimigo”.

Nessa perspectiva, vem à memória ultrajante manchete de periódico da Bahia, em 8 de Março de 2008, sob o título Duas faces da mulher: Mulher da lei, mulher bandida, referindo-se a uma autoridade policial (delegada de polícia) e a uma “figura” de mulher “de conduta desviada” segundo a etiqueta social do punitivismo contemporâneo. Em Artigo a partir da indignação pelo conteúdo da matéria, preconceituosa, grosseira, estigmatizante e de induvidoso mau gosto, estimulei a reflexão de que a manchete expressava a afirmação do Estado classista e policial do movimento de lei e ordem que comanda o pensamento das elites no país, dentre as quais se destaca a mídia.

“Bonita, charmosa, atraente e poderosa” era a qualificação da delegada, perfil da mulher branca, de classe privilegiada e nível superior estampado por quase toda a folha do periódico em tamanho proporcional à sua categoria de pessoa “do bem”, de heroína, com estrutura social e econômica para conciliar os diversos papéis que exercia na sociedade capitalista que ajudava a proteger como reconhecida Delegada de Polícia.

Outra, no entanto, foi a descrição da “mulher bandida”, pessoa “do mal”. Pobre, negra, sem charme e sem poder, a anti-heroína foi colocada exatamente do tamanho e no lugar que ocupava na sociedade excludente onde tentava sobreviver: no “patamar de baixo” da matéria, em dimensão menor, flagrantemente prostrada na sua condição de mulher e ferida na sua dignidade e condição de sujeito social com direitos, como o de ser respeitada como pessoa.

A matéria, infeliz na manchete e execrável na abordagem, retratava fielmente a seletividade do sistema punitivo, que colocava, de um lado, a figura branca do saber e do poder, do outro lado, a “caricatura” preta, que certamente teve subtraídas todas as oportunidades de inclusão social e, mais grave, destituída de seu direito à auto-estima. Repugnava a ausência absoluta de prurido ético no discurso da mídia e no violento contraste social das duas protagonistas que a matéria fez questão de exibir.

A Delegada, exaltada por sua história de mulher vitoriosa e esteticamente perfeita, feliz e festejando, com razão, o reconhecimento público de sua trajetória pessoal e profissional.

E a mulher do povo? Que bela homenagem a mídia lhe prestou no Dia da Mulher! Sua história pessoal foi esquartejada e distribuída em pedaços reconstituídos na pequena foto ao final da página que discorria sobre a Mulher da Lei e a Mulher bandida.

O mês de Março desfila por uma agenda plena de repertorio onde as mulheres falam. Nesse justo canto de louvores deve ser trazido à discussão e repudiado prioritariamente o ato de violência à mulher, que continua sustentando índices alarmantes do feminicídio que o sistema punitivo não conseguiu refrear e na lesão psicológica, na ulceração da dignidade das mulheres rotuladas “fora da lei” como foi apresentada à opinião pública a protagonista da lastimosa notícia que se repeliu e se retoma para denunciar a continuidade do tratamento que alimenta a luta de classes.

Nesse Mês da Mulher, que suba ao palco você, “mulher santa”, mulher da lei”, “mulher guerreira”, “mulher bandida” e todas as mulheres representadas na trágica manchete: você e as mulheres que fazem parte da clientela preferencial do sistema; você que provavelmente foi expropriada de suas possibilidades de ser parte do mundo dos que se apropriam do saber para oprimir; você, que deve ser uma das herdeiras históricas do colonialismo perverso que expulsou o homem dos campos onde flertava cotidianamente com o sonho de “ser pessoa”.

Você, que não deve ter tido as oportunidades que permitem escolhas diferentes do caminho que a truculência da matéria fez questão de escancarar; a você, naquele Dia da Mulher, tão diminuída, maculada e profundamente ferida na sua essência humana, as minhas desculpas, o meu constrangimento e a minha tristeza.

Que nunca mais se permita essa exposição midiática abjeta para satisfazer a concupiscência ideológica dos que se pensam donos dos corpos e da alma dos que não têm senão a si próprios para defender sua condição humana”. E para você “se dizer e ser”, sempre, o encanto poético Cora Coralina,

“Eu sou aquela mulher a quem o tempo muito ensinou. Ensinou a amar a vida. Não desistir da luta. Recomeçar na derrota”

 

 

* Marilia Lomanto Veloso é advogada da Bahia, Mestra e Doutora em Direito Penal (PUC-SP), Professora aposentada da UEFS, Promotora de Justiça da Bahia, aposentada, ex-membro do Conselho Penitenciário do Estado da Bahia e da Comissão de Direitos Humanos da OAB BA, membro da AATR, da RENAP e da ABJD, Presidente do Juspopuli Escritório de Direitos Humanos.

**Este é um texto de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Rodrigo Durão Coelho