Paridade de gênero

Ainda em minoria, mulheres diplomatas lutam por espaço e cargos mais altos no Itamaraty

Associação criada esse ano quer garantir mais poder e visibilidade feminina na "nova" política externa brasileira

Brasília (DF) |

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Mulheres diplomatas almejam cargos mais altos no Itamaraty e em representações internacionais - AMDB

Embora representem 23% da diplomacia brasileira, as mulheres ainda chefiam apenas 19 embaixadas do Brasil em todo o mundo, especialmente em postos de menor relevância. Um problema histórico do Itamaraty, que a Associação de Mulheres Diplomatas do Brasil (AMDB) luta para corrigir durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), embaladas pelo discurso pela paridade de gênero em cargos de liderança.

Desde o início do novo governo, a intensa agenda de compromissos indica a guinada que o país tenta projetar ao exterior. No entanto, a volta ao tabuleiro global após quatro anos como “pária internacional”, segundo definição do próprio ex-chanceler de Bolsonaro Ernesto Araújo, também deveria ser acompanhada de mudanças internas mais profundas.

É o que reivindica a AMDB, fundada oficialmente em janeiro deste ano, mas que soma mais de 10 anos de atuação informal. Na primeira semana de março, a subchefe da Representação do Itamaraty em São Paulo, Irene Vida Gala, presidenta da associação e outras lideranças estiveram na sede do Ministério das Relações Exteriores (MRE), em Brasília, para apresentar um documento com uma série de propostas. 

“A gente está construindo uma proposta de ampliação da participação de mulheres na diplomacia, buscando uma paridade que a gente procure alcançar num período mais próximo do que tardio”, relata a diplomata, que já foi embaixadora do Brasil junto à República de Gana.

“O que temos pela primeira vez, é a posição de Secretária-Geral de Maria Laura da Rocha, o que é altamente louvável, temos 30% dos cargos de secretarias, o que é mais do que na gestão anterior, mas que está muito aquém do que achamos razoável num governo Lula, que tem uma busca por mulheres em posições de chefia. Isso porque nós entendemos que teríamos, sem dificuldade, condições de assumir outras secretarias”, aponta.

Reversão do quadro ocorre à conta-gotas

Assim como parte da esquerda, a AMDB considera que Lula desperdiçou a oportunidade de nomear uma mulher para o cargo de chanceler, mantendo o Brasil como único país das Américas nesse jejum. O cargo ficou com o experiente Mauro Vieira, que ampliou a presença feminina na chefia de embaixadas mundo afora. De 14 para 19, o que manteve um índice de apenas 14,6% do total.

“As secretarias que compõem o gabinete do ministro Mauro Vieira só tem 3 mulheres de 10, por exemplo. De fato é muito pouco, significa que nossas relações bilaterais, nossas relações de interesse no exterior estão sendo lideradas por homens, a despeito do excelente trabalho que muitas mulheres fazem em cargos de menor visibilidade”, observa Maiara Folly, co-fundadora da Plataforma Cipó, instituto de pesquisa sem fins lucrativos dedicado a questões de clima, governança e relações internacionais.

Segundo Maiara, a diplomacia ainda tem muito a fazer para também abarcar outros perfis ainda mais excluídos na sociedade, de forma geral. “São poucas mulheres, mas são ainda menos mulheres negras, homens negros e indígenas”, constata. 

Questionado pela reportagem, o Itamaraty admitiu que há uma “sub-representação crônica de mulheres no ministério, situação que distancia o perfil da diplomacia brasileira da sociedade que representa” (leia a resposta na íntegra abaixo). Embora admita ter notado avanços, Irene afirma que as ações afirmativas anunciadas até o momento são insuficientes para avançar na equidade de gênero, movimento que poderia ser endossado em discursos e com ações práticas.

“Nesse percurso, é natural que a gente pense em cotas. Uma política que permita aumentar a cada ano, ou a cada 6 meses, para que ao final de quatro anos a gente alcance, por exemplo, a paridade na entrada do (Instituto) Rio Branco, aumento de DASs (gratificações) para mulheres no percentual de X por cento’. Porque, hoje, nós representamos apenas 23% da carreira”, propõe.

A frustração é ainda maior ao considerar que as Relações Exteriores do Brasil atuam há mais de dois séculos e agregam mulheres há mais de 100 anos. “Portugal e outros países da Europa tiveram essa abertura no pós-guerra. Eles, assim como os EUA e o Canadá, fizeram uma inclusão de mulheres muito mais expressiva”, afirma Irene, lembrando de orientação das Nações Unidas para que as representações cheguem a um patamar de 50/50 entre homens e mulheres.

“Tivemos alguns avanços importantes, mas que ficam aquém dos países da nossa região. O Chile, por exemplo, possui 35% de embaixadoras e já teve três chanceleres do sexo feminino. O Brasil está correndo bem atrás dos nossos vizinhos”, critica Maiara.


O chanceler Mauro Vieira recebeu Catherine Colonna no Itamaraty, em 8 de fevereiro; ela é Ministra da Europa e dos Assuntos Estrangeiros da França / Sergio Lima/ AFP

Histórico elitista barra ascensão feminina

Para avançar no tema, é necessário enfrentar heranças calcadas na história da diplomacia brasileira. Dentre todos os ministérios existentes, o Itamaraty é o mais impermeável a mudanças de governo e de direção. Uma característica que o torna menos volúvel a governos autocráticos, mas que alimenta o elitismo e a passagem de bastão de pai para filho. 

De acordo com Irene Vida Gala, há um forte “DNA hereditário” ainda presente no Itamaraty, puxado por famílias de diplomatas, o que manteria o elitismo na hierarquia da instituição. “Se cria ali um círculo de poder que torna muito difícil para mulheres, que não são filhas de ninguém importante, adentrarem esse universo. É isso que explica: uma tradição de reverência aos nomes diplomáticos e aos ciclos de poder que se formam nessa socialização masculina, o que a tradição da literatura de gênero fala tanto”, explica.

Um quadro que não sofreu alterações mesmo depois dos dois primeiros governos de Lula, quando o número de diplomatas disparou. Maiara Folly reconhece que o número de mulheres aumentou, mas alega que faltou promover uma reestruturação no sistema de promoções.

“Isso significa que muitas dessas mulheres que entraram nunca irão chegar a embaixadoras, porque ainda não há um sistema muito bem definido de rotatividades. Alguns embaixadores estão na posição há duas ou três décadas, intercalando entre Londres, Paris e dominando essas áreas, o que torna quase impossível que essas mulheres ascendam”, comenta.

Mérito feminino posto à prova tende a triunfar

Quando ainda era estudante de Relações Internacionais, Maiara Folly pensava em seguir na carreira diplomática, mas foi dissuadida após perceber as barreiras para a hierarquia, "entre outras coisas". À época, ela se inspirava nos exemplos de mulheres que deram enormes contribuições à diplomacia brasileira. Na literatura sobre o tema, há referências como ao “Grupo das 20”, que compreende as vinte mulheres que ingressaram no Itamaraty entre 1918 e 1945.

Esse movimento inicial contribuíram para a ascensão da pioneira Bertha Lutz, que apesar da resistência inicial de  Oswaldo Aranha teve voz ativa na carta de fundação da ONU e em outros debates nos anos 1940. Houve também a chamada "Segunda Geração" de diplomadas, cujo expoente foi Maria Sandra Cordeiro de Mello, que ingressou no Curso de Preparação à Carreira de Diplomata (CPCD) em 1953, após recorrer no Legislativo e depois na Justiça após ter seu ingresso negado, abrindo as portas para as futuras gerações de mulheres. 

Atualmente, as diplomatas que possuem os currículos mais robustos são Maria Luiza Viotti, indicada para a importante embaixada de Washington, nos Estados Unidos, e a própria Secretária-Geral das Relações Exteriores, Maria Laura da Rocha. Em novembro, o Senado aprovou a indicação de Carla Barroso Carneiro para representante do Brasil junto à Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), cargo que já foi ocupado pela própria Maria Laura. Também indicada na gestão anterior, Paula Alves de Souza assumirá o cargo de delegada permanente do Brasil na Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).

“Tenho certeza que se a gente tiver mais mulheres nessas posições de visibilidade, se tivermos mais mulheres dando discursos na ONU, mais mulheres ministras - que são os espaços que têm repercussão e chegam à população - mais mulheres e meninas olhariam a carreira diplomática como uma possibilidade, uma oportunidade", salienta a diretora executiva do Instituto Cipó.

O movimento de mulheres diplomatas tenta enfatizar, segundo Gala, que não há qualquer intenção em estabelecer um clima hostil ou atrair atenção negativa à gestão empossada há poucos meses. De modo geral, há um reconhecimento sobre os avanços já feitos após o fim do governo Bolsonaro, mas também há expectativas maiores.

“Depois de 4 anos em que a diplomacia brasileira viveu um momento muito obscuro no Itamaraty, nós mulheres estamos muito empolgadas com a nova política externa. (...) Então, a gente fica muito constrangida de ter que romper esse tom de festa e de construção para fazer uma denúncia num aspecto muito particular, que é a construção de uma política orientada para a paridade. Não queremos que pareça que estamos contra o governo ou o chanceler. Não, a gente está a favor, queremos o Itamaraty forte e queremos participar disso”, afirma.

Resposta do Itamaraty, na íntegra, enviada por e-mail nesta quinta-feira (9):

Desde a posse do Ministro das Relações Exteriores e da Secretária-Geral, o Itamaraty tem reafirmado a alta prioridade conferida à promoção da igualdade de gênero não apenas em sua atuação internacional, mas, igualmente, em sua gestão interna.

O segundo boletim estatístico “Participação de Mulheres no Serviço Exterior”, elaborado pelo Itamaraty em janeiro passado, indica a sub-representação crônica de mulheres no Ministério, situação que distancia o perfil da diplomacia brasileira da sociedade que representa.

Para reverter progressivamente esse quadro, o Itamaraty está empenhado no estudo de políticas institucionais que aumentem a representatividade feminina tanto em termos numéricos, quanto em postos de liderança na carreira.

Esforços concretos já têm sido feitos nesse sentido. Dentre as dez novas Secretarias que compõem a estrutura organizacional do Ministério, três serão chefiadas por mulheres (30% do total) – percentual superior ao verificado na gestão anterior. No conjunto de diplomatas lotados no Gabinete do Ministro de Estado das Relações Exteriores e na Secretaria-Geral das Relações Exteriores, 44% são mulheres.

Foram igualmente indicadas mulheres para a chefia de postos de relevo no exterior, como a Embaixada em Washington e as representações brasileiras junto à FAO, em Roma, e junto à Unesco, em Paris. Além disso, canais institucionais de diálogo sobre gênero e diversidade foram abertos e estão funcionando.

Como reflexo da prioridade conferida ao tema, destaca-se a criação, em 8 de março, do cargo de “Alta Representante para Temas de Gênero”, que participará de reuniões internacionais sobre os temas de gênero e atuará em articulação com outros ministérios para o avanço da pauta.

Adicionalmente, o Instituto Rio Branco fará campanha para atrair mais mulheres para a carreira diplomática, tendo em conta a publicação da autorização para o Concurso de Admissão à Carreira de Diplomata (CACD) 2023. No CACD de 2022, 38% dos aprovados foram mulheres, maior percentual nos últimos 30 anos.

Será lançado, ainda, ciclo de diálogos para a promoção da diversidade. Os diálogos incluirão debates sobre igualdade de gênero e a tranversalização da pauta nas atividades do Ministério.

Edição: Rodrigo Durão Coelho