Vencedora do Jabuti

Luiza Romão: 'Como o massacre de um povo se tornou a base de toda a literatura ocidental?'

Livro de poesias "Também Guardamos Pedras Aqui", relaciona a Guerra de Tróia e as chagas do Brasil contemporâneo

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Luiza Romão é campeã do Slam do 13 e do Slam da Guilhermina e vice-campeã nacional do Slam BR
Luiza Romão é campeã do Slam do 13 e do Slam da Guilhermina e vice-campeã nacional do Slam BR - Sérgio Silva
É histórico o Jabuti, esse prêmio tão canônico, reconhecer a produção poética dos saraus e slams

A literatura brasileira passa por mudanças importantes. Seja no mercado editorial, onde grandes conglomerados têm perdido espaço para pequenas livrarias e selos de publicação independentes, seja pelo surgimento de novos autores, mais diversos, imbuídos de levar ao leitor temas cada vez mais necessários.

Prova disso foi a última premiação do tradicional Jabuti, a maior honraria da literatura brasileira, entregue em 2022 para a escritora e atriz Luiza Romão, com o livro de poemas Também Guardamos Pedras Aqui. Advinda dos slams, as batalhas de poesias e rimas das ruas de São Paulo, a vitória de Romão dá força à retomada da tradição poética: a performance.

“Acho que é muito histórico, o Jabuti, esse prêmio literário tão canônico, tão importante na literatura brasileira, olhar e reconhecer uma produção poética que está sendo feita através dos saraus, dos slams, dos movimentos de Spoken Word, de performance poética”, explica a atriz.

Também Guardamos Pedras Aqui recria, a partir de 29 poemas, a Ilíada de Homero, a tragédia grega que narra 51 dias da Guerra de Tróia. Com textos criados para cada personagem apresentado na epopeia grega, Romão relaciona o massacre da Grécia antiga e as chagas do Brasil contemporâneo.

“Eu lembro desse espanto lendo a Ilíada e, ao mesmo tempo, um pensamento que era: 'como é que isso daqui está fundando a literatura ocidental?'", questiona Romão. “É muito curioso isso, de que a gente está no Brasil, um país que passa por um processo muito violento de colonização, e que se perpetua de diferentes formas até hoje, e a gente estuda tanto a Grécia”. 

Luiza Romão é a convidada desta semana no BDF Entrevista. No papo, a escritora, que está em Madri, a capital espanhola, para uma temporada de estudos de cinema, fala também sobre a nova composição do mercado editorial brasileiro.

Com o fechamento de grandes redes de livrarias, acusadas de assédio moral pelos trabalhadores e afundadas em dívidas milionárias, elas perdem cada vez mais espaço para pequenas editoras independentes e livrarias segmentadas.

“Eu acho que isso é muito massa, por um lado por romper um certo monopólio e mostrar outras possibilidades de circulação e de produção dessa poesia escrita. Por mais que a gente trabalhe muitas vezes com a oralidade, com a fugacidade, com a estabilidade do poema oral, também há um olhar e uma produção voltada para a documentação e circulação desse poema na página”. 

“A gente tem muitos coletivos que têm ou pequenos selos editoriais, ou produzem até outros formatos de livro, como zine, plaquette, caderneta. E eu acho muito interessante como esse mercado editorial, que muitas vezes foi muito monopolizado e com pouco acesso para outras vozes, agora, de certa forma, está sendo fissurado por essa produção contemporânea”, completa Romão.

Confira a entrevista na íntegra: 

Brasil de Fato: Luiza, você foi a grande vencedora do prêmio Jabuti de 2022, com Também Guardamos Pedras Aqui. Eu imagino o tamanho da tua felicidade mas, mais importante, acho que é o espaço que essa premiação te dá para seguir vivendo da tua escrita, da tua arte. É um salto gigantesco na carreira, que abre um caminho novo, não?
 
Luiza Romão: Sim. Já se passaram quase três meses da premiação e eu ainda estou um pouco…caindo a ficha. Tem horas que eu olho e falo: “gente, é verdade”. E acho que para além de ser um reconhecimento meu, da minha poesia individual, acho que também é um reconhecimento de um movimento de poesia falada muito mais amplo que eu integro.

Acho que é muito histórico, nesse sentido, o Jabuti, esse prêmio literário tão canônico, tão importante na literatura brasileira, olhar e reconhecer uma produção poética que está sendo feita através dos saraus, dos slams, dos movimentos de Spoken Word, de performance poética. Acho que tem algo aí também, muito massa, que é um reconhecimento dessa poesia que nos últimos 10, 15 anos, tem estremecido as bases da palavra poética com o corpo, com a performance, com o encontro e tudo mais.
 
Ainda sobre a premiação, você esperava? Te pegou de surpresa mesmo? 

Pegou muito de surpresa. Eu estou terminando agora um curso na Espanha, vim estudar interpretação para cinema e eu lembro que essa noite, que foi a noite da premiação do Jabuti, era jogo do Brasil, inclusive. Eu estava participando de um evento aqui em Madri de divulgação da obra do Paulo Leminski, que tinha acabado de Agora Que São Elas aqui, em espanhol.

E aí eu lembro das pessoas falarem: “você está indicada como finalista do Jabuti”. E eu respondia: “gente, não criem expectativas, porque eu não vou ganhar. Eu já estou muito feliz só de estar na categoria, de estar entre os cinco finalistas”. Dizia isso para não frustrar as pessoas que estavam ali comemorando a indicação.

De fato, foi uma surpresa. Eu estava acompanhando a transmissão online e não acreditava. E acho que muito disso tem a ver com uma admiração profunda que eu tenho por todas e todos os poetas que estavam ali indicados: Ricardo Aleixo, Arnaldo Antunes, Ana Martins Marques, Tatiana Nascimento. São artistas que me formaram como poeta. 

E uma coisa que une vocês de alguma maneira, finalistas do Jabuti, é a performance. Todos eles, de alguma maneira, também têm a performance como um complemento da poesia, da sua arte. Esse é um caminho novo - que nem é tão novo assim? 

Sim, eu acho que não é à toa que em maior ou menor medida, a gente tem essa interface entre a poesia e a música, ou a poesia e a performance, ou a poesia e as artes visuais. No caso da Ana Martins Marques, que é uma poeta que tem um trabalho mais vinculado à escrita, eu sempre gosto de lembrar de um livro dela com Eduardo Jorge, que é um livro que tem um programa performativo por trás da escrita. É uma troca de cartas entre eles a partir de um apartamento que o Eduardo deixa para ela. Ou seja, você tem uma ideia de performance também mobilizando essa escrita.

Eu acho que mais do que algo novo, na verdade é uma retomada. Porque, se a gente olhar para a literatura brasileira, a gente tem uma incidência muito forte, principalmente na poesia, da oralidade, da performance, desde muito antes. Na verdade, a poesia, entre os gêneros literários, é um que… se a gente olhar para a tradição ocidental, mais eurocêntrica, o Homero cantava os poemas.

Então você tem uma imbricação aí entre voz, corpo e palavra. Não é uma palavra silenciosa, é uma palavra que tem ritmo, que tem som, que tem aliteração, que tem rima ou não, enfim, é uma palavra que ela tem também uma vocalidade. 

E que ganha vida… 

Exatamente. E principalmente, o interessante dos movimentos de poesia falada que tem palpitado no Brasil nos últimos anos, é esse encontro, essa poesia, que está viva e que, cada performance, vai ser uma performance diferente. Cada vez que você declama, cada vez que você performa um poema, vai se moldando e se modificando conforme o contexto, conforme o encontro.
 
Você citou o Homero e no teu livro, que é lindo, de fato, você faz uma relação entre a violência da literatura grega e as chagas do Brasil contemporâneo. De onde surgiu a ideia de resgatar essas escritas clássicas?
 
Bom, eu venho do teatro e uma das pilastras da educação, ou da formação teatral, inclusive é uma coisa que eu penso criticamente no livro, é a Grécia antiga. Eu sempre li muita tragédia antiga, O banquete, os textos mais literários - literário é um termo meio anacrônico aqui, mas, enfim - tanto essa tradição poética épica, quanto dramatúrgica. E um tanto também dos poemas, das epopeias, da filosofia. 

E é muito curioso isso, de que a gente está no Brasil, um país que passa por um processo muito violento de colonização, e que se perpetua de diferentes formas até hoje, e a gente estuda tanto a Grécia. A gente tem esse modelo importado e colocado como um ideal de estética, de política, enfim, de racionalidade e por aí vai. E ao mesmo tempo, a gente não olha para muitas tradições e culturas que vêm sendo produzidas há milênios na América Latina, em diferentes partes do Brasil. 

Eu já tinha esse contato muito forte com as mitologias e as narrativas da Grécia antiga, e eu lembro muito da sensação que eu tive quando eu terminei de ler a Ilíada, isso foi na virada de 2016 para 2017. E foi uma sensação de muito horror, eu lembro de ficar muito mexida com a quantidade de violência que está sendo narrada ali. 

A Ilíada é a história de uma guerra, entre gregos e troianos, é um recorte que o Homero faz entre uma briga entre Aquiles e Agamémnon, e o enterro do Heitor. Então, ele pega um trecho dessa guerra, que dura 10 anos e é um acúmulo de mortes. Eu tinha, inclusive, o desejo de reler o livro, só circulando os verbos de matar. Eu não fazia ideia que a gente tinha, na língua portuguesa, tantos verbos de morte, de dor, para infringir a dor ao outro e outras formas de subjugação, formas de tortura e por aí vai. 

E eu lembro desse espanto lendo a Ilíada e, ao mesmo tempo, um pensamento que era: “como é que isso daqui está fundando a literatura ocidental?. Dentro de tantas narrativas fundadoras possíveis, o ocidente vai escolher como pedra fundamental a história de um massacre de um povo?”. Então isso me deixou muito inquieta e acho que a partir daí eu vou trabalhar o projeto do Pedras.

Eu escrevo o primeiro poema do Homero, que é um poema que, de certa forma, trabalha com esse acúmulo de verbos. No livro, ele veio com uma mancha gráfica, de certa forma, também censurando essa representação. E depois, em 2019, eu retomou o projeto que estava na gaveta, a partir de uma oficina com Marcelino Freire - um querido - e aí os poemas vão começando a nascer. 

Eu vou entendendo um pouco a estrutura do livro e ele vai ter um poema para cada personagem. Algumas personagens que aparecem na Ilíada e outras que estão meio esquecidas na história. 

Falando sobre essa violência e dessa tragicomédia, a tua inspiração talvez tenha a ver também com a barbárie que é o mundo hoje, não é? O Brasil, por exemplo, é calcado na barbárie…
 
Sim, e nesse sentido, eu acho que um livro que foi fundamental durante o projeto foi o Necropolítica, do Achille [Mbembe], que vai pensar exatamente essa política de morte, como um fundamento do mundo contemporâneo. Ele vai se debruçar muito também sobre o caso, por exemplo, da Palestina, no que é produzido ali na Faixa de Gaza. E isso aparece em alguns poemas também.

Eu acho que eu parto de uma experiência brasileira, mas também pensando como essas políticas de morte se manifestam em outras partes do mundo, uma vez que a gente tem um império do pensamento ocidental em vários países. 

Luiza, o teu livro saiu por uma pequena editora, a Nós. E a gente tem visto no Brasil, principalmente, as grandes livrarias fechando suas portas. Mas, ao mesmo tempo, a gente também vê as pequenas livrarias, muitas delas segmentadas, se espalhando pelas cidades. Aqui em São Paulo, por exemplo, a gente consegue ver essas pequenas portinhas aparecendo aqui e ali e que parecem ter rendido alguma coisa de novidade. Você acha que esse é o futuro da literatura nacional? Se desprender dessas grandes editoras, de um mercado editorial engessado para um novo lugar?
 
Pensando especialmente no caso da poesia, que eu acho que é o campo que eu consigo refletir um pouco mais de dentro sobre essa questão, eu acho muito interessante como, ao mesmo tempo que a gente tem um movimento muito forte de poesia falada, com rodas de microfone aberto, com saraus, com batalhas, com grupos de Spoken Word, com show lírico musical e por aí vai, muitos desses coletivos têm se organizado para criar pequenas editoras, selos independentes e conseguido, de alguma forma, pensar também a publicação desses trabalhos, em uma circulação que não passa pelas grandes redes, sejam editoriais, sejam de livrarias.

E eu acho que isso é muito massa, por um lado por romper um certo monopólio e mostrar outras possibilidades de circulação e de produção dessa poesia escrita. Então, por mais que a gente trabalhe muitas vezes com a oralidade, com a fugacidade, com a estabilidade do poema oral, também há um olhar e uma produção voltada para a documentação e circulação desse poema na página. 

A gente tem muitos coletivos que têm ou pequenos selos editoriais, ou que produzem até outros formatos de livro, como zine, plaquette, caderneta. E eu acho muito interessante como esse mercado editorial, que muitas vezes foi muito monopolizado e com pouco acesso para outras vozes, agora, de certa forma, está sendo fissurado por essa produção contemporânea. 

E eu digo isso pela minha experiência. Os meus dois primeiros livros foram publicados pelo selo Doburro, o Coquetel Motolove e o Sangria. O Sangria tem uma uma tiragem de 3.000 exemplares, que é uma tiragem muito grande até para editoras grandes. E a distribuição foi quase toda mão a mão, em sarau, em slam, em encontros, em clube do livro, em pequenas… 

Você mesmo mandando de casa...
 
Eu mesma mandando autografado, e por pequenas livrarias. Porque, em geral, nas grandes livrarias, quem é autor, ou quem tem um selo editorial mais independente, não consegue acessar. 

Então, nesse sentido, eu acho muito importante o trabalho que as livrarias como a Livraria Simples, a Livraria da Tarde, a Megafauna, a Mandarina fazem, de ajudar e de possibilitar que essas vozes e essas produções circulem, além de criar espaços que não passam por essas grandes redes, que em geral têm condições de trabalho horríveis para quem está trabalhando como livreiro, na parte de vendas, de atendimento e também muitas vezes têm contratos nada interessantes para quem produz, para as editoras.

A gente viu vários casos de não pagamento de dívidas e por aí vai. E a gente sabe que para as pequenas editoras, isso é muito desestabilizador. É muito difícil passar por essa situação. 

Mas no caso do Pedras, a gente publicou pela editora Nós, inclusive dar um salve para Simone, para toda equipe da editora. E no caso do Nadine, que é o meu último livro, foi uma publicação com a Quelônio, que também é uma editora mais independente, que produz muita coisa artesanal, com projeto gráfico da Sílvia Nastari. Então Nadine já tem um lance com carimbo, com costura, é um livro que tem uma certa manualidade no projeto gráfico.
 
Qual é o papel dessas grandes editoras daqui em diante? Elas tendem a tentar monopolizar esse mercado, ou você acha que elas vão tentar se moldar a esse novo cenário? 

Olha, eu acho que não dá mais para o grande mercado literário - não vou falar nem editorial - os prêmios, as grandes feiras de literatura, as grandes editoras, esse mercado literário mais estabelecido, não olhar para essa poesia ou para essa literatura que está sendo produzida de maneira independente. 

E acho que a gente já tem alguns projetos que mostram isso. Seja isso o fato de eu ter ganhado o Jabuti, ou o fato, por exemplo, do Slam da Guilhermina já ter ganhado antes, no eixo de inovação, com o Slam Interescolar, que é um projeto que vai produzir, incentivar e divulgar o slam nas escolas. 

Tem duas antologias de slam que saíram em grandes editoras. Tem uma antologia que chama Querem nos calar, poemas para serem lidos em voz alta, que foi organizado pela Mel Duarte e saiu pela editora Planetas, isso em 2019. E Nove poetas hoje, que foi organizado pela Heloísa Buarque de Holanda e que saiu pela Companhia das Letras. 

A antologia Querem nos calar reuniu slammers de várias partes do Brasil e o Nove poetas hoje é uma releitura de uma antologia que Heloísa tinha feito na década de 1970, dessa vez só com mulheres. E ali a gente já tem várias slammers compondo o livro. Tem eu, tem a Mel Duarte, a Luz Ribeiro, a Bel Puã, enfim. 

Então, acho que isso já indica o interesse dessas grandes editoras, de alguma forma, também publicar essas autoras. Isso é algo que eu também analiso um pouco na minha dissertação, inclusive quem quiser depois dá uma lida, está disponível no site de teses da USP, e pensar como esse movimento vai criar tensão. 

Acho que é um movimento que é inevitável, mas que ao mesmo tempo também se cria… enfim, caso a caso, a gente teria que pensar como que esse capital político, simbólico e artístico vai ser manejado por cada uma dessas instituições. Mas eu, pessoalmente, vejo com entusiasmo essas fissuras na no mercado editorial. 

Como você falou durante todo o nosso papo, a performance sempre foi o seu grande entusiasmo. Está na nas bases da tua arte. Foi o slam quem te forjou enquanto artista?

Sim, sem dúvida. Eu venho do teatro, na verdade. Sou atriz, sou da performance, sou da cena. Mas foi nas rodas de poesia, nas batalhas, que eu me descobri poeta. Não era algo que eu estava pensando para minha vida, digamos assim. Mas com 21, 22 anos, o que eu sabia da vida? Mas foi uma experiência que me atravessou e quando eu vi, já estava decorando, escrevendo poema, performando, participando, indo de uma ponta para outra, de um evento para outro. 

E acho que isso também é uma das magias dos movimentos de poesia falada, que é primeiro voltar a poesia a ser uma coisa viva, interessante, que mobiliza você, e a segunda, que é também estimular quem frequenta, muitas vezes primeiro só como público, a também produzir, se arriscar e participar como poeta. 

E acho que tem uma coisa interessante no slam, que é a produção do que antigamente se dizia poesia marginal, uma poesia periférica, uma voz de quem não era escutado e que estava lá para falar como e porque pensava, a partir de questões de gênero, de raça e de tantas outras questões que eram silenciadas…

Sim, eu acho que a própria forma do slam coloca em evidência. A Roberta [Estrela D’Alva] sempre fala que os três minutos não é à toa. Porque, se você estiver em um dia inspirado, o máximo que você vai conseguir declamar três poemas, porque são três rodadas. Mas, em compensação, você vai ouvir 20 e poucos poemas. Então, em geral a gente pensa no slam como a pessoa ali no centro da roda, declamando, mas, na verdade, você vai passar 80%, 90% do tempo na plateia, escutando poesia.

Acho que essa ideia de uma roda que, às vezes você está no centro, mas a maior parte do tempo você está ali, mantendo a atenção, mantendo a energia e escutando quem está no centro da roda, eu acho muito interessante. E isso é uma particularidade também da forma como o slam vai acontecer no Brasil. 

Aqui na Espanha, por exemplo, eu fui em alguns slams e a maior parte deles acontece em espaços indoor. Eu fui em um que era em uma ocupação cultural, então não tinha entrada. Mas o Slam Madrid, por exemplo, que é o slam mais antigo da Espanha, acontece em um bar, então pra você entrar, você já tem que pagar 10 euros, tipo R$ 60. 

Ou seja, já é um outro tipo de configuração e até os poemas que são falados tratam de outros temas. Tem muitos poemas que vão tratar de algumas questões mais da juventude, da aceitação do próprio corpo, do afeto. Tem alguns poemas que são mais formalistas, outros que vêm falar de uma certa melancolia. E no Brasil, a gente tem uma presença muito forte desses temas que você falou, de violências estruturais do Brasil, de pensar fatos que aconteceram naquela semana e que, ao mesmo tempo, são casos que vão se repetir historicamente no Brasil.

Seja a questão do genocídio da juventude negra, periférica brasileira, sejam questões vinculadas à violência de gênero ou patriarcado, ao feminicídio, à cultura do estupro. Eu sinto que no Brasil, o slam, de fato, se configurou como uma Ágora Pública e de discussão política. Óbvio que a gente também tem poemas de amor, poemas que vão pensar questões de saúde mental, que vão colocar em pauta os afetos ou a falta dos afetos. 

Mas acho que tem uma particularidade do slam brasileiro que é reflexo também da sociedade brasileira, de como essa sociedade, nos últimos anos, passou também por uma experiência muito violenta, de ultra-direita, e de um governo genocida. E é curioso a gente perceber como o boom dos slams vai acontecer de 2016 para 2017. 

Não à toa, 2016 é o ano do golpe. Então a gente tem, por um lado, essas ágoras crescendo no Brasil, e por outro lado, a ultra-direita também avançando de uma forma muito devastadora. Acho que é interessante a gente pensar o slam dentro desse panorama político brasileiro contemporâneo.

E outra particularidade do slam brasileiro que, para mim aqui, ficou muito evidente, é que o slam brasileiro vai acontecer principalmente na rua. Então, pensar também essa retomada do espaço público que, por um lado, evidencia a precariedade das políticas culturais e das políticas públicas, principalmente em regiões periféricas, mas por outro lado, acho que também se relaciona com a forma como os movimentos sociais têm utilizado a rua como espaço de disputa de 2013 para cá, principalmente. Seja através das marchas, das ocupações, dos trancaços. Acho que também tem algo aí de uma certa performatividade do corpo na rua, que se relaciona com a forma do slam.
 
E tem também uma particularidade do mundo atual, que é a ultra-direita se espalhar não só no Brasil, que ganhou muita força com o ex-presidente [Jair] Bolsonaro (PL), mas na Itália, na própria Espanha, onde o PSOE (Partido Socialista Operário Espanhol) é, muitas vezes, acuado pelo Vox, entre outros movimentos de ultra-direita. Isso também tem influenciado na poesia aí?
 
Aqui, eu sinto que as questões que estão sendo discutidas são outras, nos slams que eu fui aqui. Ao mesmo tempo, por exemplo, a situação é diferente em outras partes da Europa, como na Grécia. 

Eu estive lá apresentando o vídeo poema que a gente criou a partir do livro do Pedras, em um festival que existe há 10 anos, e que olha para essa linguagem que eu sou apaixonada, e acho que é uma das formas também de circulação de poesia falada. 

Ele acontece em um teatro autogestionado, o Embros, uma ocupação que já está há 10 anos naquele espaço, então era um teatro que era abandonado e que eles, desde então, tem autogestionado e que já tinha sido atacado por neonazistas e agora eles estavam passando por um processo de tentativa de despejo pelo poder público. São algumas questões que a gente reconhece muito quando a gente pensa no contexto brasileiro. 

Então, acho que depende também de território para território como isso vai acontecer. Mas, sem dúvida, sim, eu acho que o slam no Brasil tem uma especificidade que muitas vezes a gente não vê em outras partes. E quem acompanha, por exemplo, a Copa do Mundo através de streaming é, de fato, muito diferente.

Em muitos desses países, os representantes lêem, estão ali com papel, os temas…Tem um poema de alguém que fala disso, de que a pessoa chegou lá com várias questões, e não passou de rodada para alguém que estava falando sobre o próprio hamster. 

Edição: Rodrigo Durão Coelho