Assista ao vídeo

Ordem de prisão contra Putin dificulta paz na Ucrânia e reforça laço entre Rússia e China

Com mandado de prisão internacional e visto como 'pária' no Ocidente, presidente russo busca respaldo em Pequim

Rio de Janeiro |

Ouça o áudio:

Presidente russo, Vladimir Putin, durante coletiva de imprensa com o líder chinês, Xi Jinping, em Moscou, em 21 de março de 2023. - Vladimir Astapkovich / Sputnik / AFP

O Tribunal Penal Internacional (TPI) de Haia emitiu um mandado de prisão contra o presidente da Rússia, Vladimir Putin, na sexta-feira (17) por crimes relacionados à deportação e transferência ilegal de crianças da Ucrânia durante a guerra. O Kremlin rechaçou a decisão afirmando que não reconhece a jurisdição do tribunal, enquanto, na Ucrânia, a medida foi considerada "histórica". Paralelamente, o líder chinês Xi Jinping realiza uma visita oficial a Moscou em um gesto de reforço da parceria entre os dois países.

Os juízes do TPI consideraram ter motivos suficientes para acreditar que Putin é pessoalmente responsável pelos crimes de deportação e transferência ilegal de crianças da Ucrânia durante a guerra. Um mandado de prisão semelhante foi emitido para a comissária do presidente da Federação Russa para os Direitos da Criança, Maria Lvova-Belova. O motivo da acusação remete a maio de 2022, quando Putin assinou um decreto sobre um procedimento de simplificação para órfãos da Ucrânia obterem a cidadania russa.

Em relação às chances reais do mandado de prisão contra Putin ser efetivado, é consenso entre os especialistas que isso é muito improvável e que a decisão tem um peso muito mais simbólico. Mas podem haver consequências a longo prazo.

É o que afirma o advogado e fundador do projeto russo de defesa dos direitos humanos "Pervyi Otdel", Ivan Pavlov. Ao Brasil de Fato, o jurista aponta que membros do governo russo com mandato emitido pelo TPI podem ser presos em países que ratificaram o Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional. Outro cenário que poderia viabilizar a ordem de prisão seria o encaminhamento do processo através de um novo governo na Rússia, em uma perspectiva de longo prazo.

"É uma decisão simbólica, mas que pode levar a consequências reais. Isso tem uma distância longa, é um jogo de longo prazo. É claro que considerar agora que Putin vai por conta própria se apresentar em Haia ou que algum subordinado vai realizar esse mandado é provavelmente ingênuo", afirma o advogado.

No entanto, Pavlov observa que a decisão do TPI abre um precedente que contribui com o enfraquecimento do governo de Putin. "Aos poucos vai havendo um desgaste, e chegará o momento em que a situação vai mudar e o regime será abalado, ficará enfraquecido, então haverá uma janela de possibilidades, inclusive para realizar esse mandado", completa.

Apesar da fragilidade do mandado de prisão ser executado de fato, a ação do TPI já possui implicações práticas para o presidente Putin. Em tese, todos os países (são 123 no total) que ratificaram o Estatuto de Roma e reconhecem a jurisdição do Tribunal Penal Internacional podem levar o mandado a cabo no caso de uma visita do presidente da Rússia ao seu país.

Quase todos os países da Europa, todos os Estados da América do Sul, inclusive o Brasil, além de outros países como Tadjiquistão, Afeganistão, África do Sul, República Centro-Africana e Nigéria ratificaram o Estatuto de Roma. Ou seja, a decisão praticamente inviabiliza a participação de Putin na cúpula dos Brics, que acontece em agosto, na África do Sul.

Em entrevista ao Brasil de Fato, o cientista político Vladimir Jarhall, afirma o sentido da decisão tomada é em grande medida um pretexto, "uma simples forma de criar um certo desconforto para o governo russo".

"123 países apoiam o status do Tribunal Penal Internacional. Consequentemente se falarmos de uma visita do presidente da Rússia a algum desses países, por exemplo, há a discussão sobre a visita à África do Sul este ano, onde haverá a cúpula dos Brics. A África do Sul reconhece o status (do tribunal) e, nesse caso, fica a incógnita sobre como ela vai reagir", acrescenta.

A outra consequência é um possível desgaste diplomático com países que validam o TPI. Com isso, a posição do Brasil em relação à guerra da Ucrânia voltou a ficar em evidência. O ministro das Relações Exteriores, Mauro Vieira, afirmou nesta semana que o Brasil respeita e segue as decisões do Tribunal de Haia e reconheceu que uma possível visita de Putin a qualquer país que integra o TPI poderá causar "complicações".

"O Brasil é parte do TPI, que nós respeitamos e seguimos. O TPI não é integrado por todos os países, então tem também uma abrangência que não é total, não é global. É limitada. Nós temos que, sobretudo, conhecer melhor as condições. Não há uma posição firmada nem oficial sobre isso", disse o ministro em entrevista ao portal Metrópoles.


Fotografia aérea mostra edifícios residenciais destruídos na vila de Bohorodychne, região de Donetsk, em 21 de fevereiro de 2023. / Ihor Tkachov / AFP

Credibilidade do TPI

Por outro lado, a decisão da corte internacional se apresenta também como um risco para a própria organização na medida em que a não efetividade de suas ações pode prejudicar a credibilidade da instituição. Em primeiro lugar, pelas críticas que vêm recebendo por adotar condenações seletivas.

O cientista político Vladimir Jarhall destaca que a medida do Tribunal de Haia foi "exclusivamente politizada” e acionou o mandado a partir do que se chama de sistema de "duplos padrões", fazendo referência a “casos em que o tribunal penal fechou os olhos para os crimes de outros países".

Coincidentemente, nesta semana foi lembrada a marca de 20 anos da guerra do Iraque, iniciada pelos EUA sob falsas alegações de que o país tinha armas de destruição em massa, sem que houvesse qualquer punição para a administração da Casa Branca, nem na ocasião nem posteriormente à transição de governo no país.


Soldados de Honduras patrulham as ruas do Iraque com as tropas dos EUA, em 2003 / Thomas Coex / AFP

Outro problema que a corte internacional invariavelmente enfrenta é a ausência de grandes potências reconhecendo sua jurisdição. É o caso dos próprios EUA, que inclusive impuseram punições e embargos de visto a membros do TPI que abriram inquérito para investigar supostos crimes de guerra de soldados dos EUA no Afeganistão. Países como Índia, China e Rússia também não fazem parte do tribunal. A Ucrânia também não ratificou o Estatuto de Roma, mas abriu uma exceção durante a guerra para que o TPI investigue crimes cometidos em seu território.

Para o cientista político Vladimir Jarhall, a decisão do TPI também cria um cenário de impossibilidade de quaisquer negociações de paz entre a maioria dos países do Ocidente e a Rússia para interromper a guerra da Ucrânia, considerando que os países europeus reconhecem o status de Haia. Paradoxalmente, o único país da frente ocidental que seria capaz de realizar negociações com Moscou seriam os EUA.

"O restante dos países europeus se encontram em uma situação tola, porque eles não podem realizar negociações com Vladimir Putin, não podem realizar visitas à Rússia, e, principalmente, convidá-lo ao seu território. Como resultado, tal decisão os coloca em um beco sem saída e, consequentemente, interrompe quaisquer possibilidades de negociações com a Rússia no plano político de longo prazo", destaca.

Assim, de acordo com o analista, "vemos uma situação em que há uma tentativa de mostrar que a Rússia é um país 'pária'".

Xi Jinping como "fiador" internacional de Putin

Umas das principais fragilidades da ordem de prisão contra Vladimir Putin emitida pelo Tribunal de Haia é o fato dele ser um chefe de Estado em exercício e, portanto, gozar de imunidade no âmbito do direito internacional. Isso foi reforçado pela diplomacia chinesa às vésperas da viagem de Xi Jinping a Moscou.

O porta-voz do Ministério de Relações Exteriores, Wang Wenbin, afirmou que o tribunal deveria "manter uma posição objetiva e imparcial" e "respeitar a imunidade dos chefes de Estado em relação à jurisdição ao abrigo do direito internacional". Ele fez um apelo para que o TPI evite "a politização e a duplicidade de critérios".


Vladimir Putin recebe o líder chinês, Xi Jinping, no Kremlin, em 21 de março de 2023 / Alexey Maishev / Sputnik / AFP

Apesar do TPI não reconhecer a imunidade de chefes de Estado em casos de crimes de guerra, crimes contra a humanidade ou genocídios, a corte internacional tem o poder de apenas indiciar presidentes.

E foi o próprio líder chinês, Xi Jinping, que fez um aceno para que Putin permaneça sob a proteção da imunidade de chefe de Estado no longo prazo. Em uma declaração informal antes das negociações oficiais, Xi Jinping lembrou que a Rússia terá eleições presidenciais em 2024 e disse estar convencido de que os russos apoiarão Putin. Apesar da declaração, o próprio presidente russo ainda não declarou oficialmente que irá concorrer ao seu quinto mandato.

"Sob sua forte liderança, a Rússia fez grandes progressos em seu próspero desenvolvimento. Estou confiante de que o povo russo continuará lhe dando seu firme apoio", disse o presidente chinês.

Ao fim da sua visita a Moscou, Xi Jinping se despediu de Putin com as seguintes palavras: "Estamos vendo agora transformações que não aconteciam há 100 anos. E nós que estamos conduzindo essas mudanças juntos". A declaração não poderia ser mais simbólica. Ao passo que o Ocidente faz um movimento drástico para isolar ainda mais o presidente russo, a China surge como um crucial fiador do Kremlin na arena internacional.

Edição: Thales Schmidt