Show de horrores

Peritos denunciam tortura e maus tratos em presídios do RN: 'Toda cela tem gente machucada'

Tuberculosos dividem celas superlotadas com pessoas saudáveis; presos não podem usar papel higiênico e a água é mínima

São Paulo | SP |

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De acordo com o MNPCT, presos foram agredidos, após denunciarem maus tratos ao órgão - Foto: MNPCT

Caminha para onze dias a crise de segurança pública no Rio Grande do Norte. Para a polícia e especialistas, não há mais dúvida sobre o motivo dos ataques aos prédios públicos e comércios do estado: a constante violação de direitos humanos e a rotina de torturas dentro dos presídios potiguares, que provocaram uma reação da facção Sindicato do Crime, que atua dentro das unidades prisionais.

Três peritas do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) vistoriaram quatro unidades prisionais do Rio Grande do Norte, entre os dias 21 e 25 de novembro de 2022. O relatório, apresentado durante a 38º Reunião Ordinária do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (CNPCT), realizada na última quarta-feira (22), é chocante.

“Encontramos várias pessoas com lesões e isolamento sem atendimento médico. Após nossa visita, houve retaliações, várias pessoas foram identificadas com lesões, são imagens chocantes. Todas as celas que visitamos, castigo, triagem, isolamento ou comum, tinham pessoas machucadas. No Rio Grande do Norte impera a impunidade nesse espaço”, alerta a perita Ana Valeska Duarte.


O limite de água diária para ser dividia entre todos os presos em cela de isolamento cabe em duas pequenas garrafas de água / Foto: MNPCT

De acordo com o relatório, na Penitenciária Estadual Dr. Francisco Nogueira Fernandes (Alcaçuz) existem surtos de escabiose e diarreia em quase 70% da população carcerária. No dia da inspeção, existiam 68 casos de tuberculose ativos, 20 casos de HIV e 20 casos de colostomia.

A equipe do MNPCT suspeita que a direção do presídio misture tuberculosos com presos saudáveis para proliferar a doença. “Pessoas escarravam sangue enquanto eram entrevistadas”, afirmou a perita Bárbara Suelen Colonies.

Outros violações de direitos humanos e direitos básicos da população carcerária foram apresentados pela equipe do MNPCT. Nas unidades, há proibição de uso do papel higiênico, presos com feridas abertas e doenças não recebem medicamento e curativos, entrega de comida estragada e escassez de água.

Em uma cela de isolamento superlotada, as peritas encontraram, mais uma vez, tuberculosos e saudáveis misturados. Além disso, havia apenas duas pequenas garrafas que eram preenchidas com água apenas uma vez no dia e que deveria ser dividida por todos os presos.

Mateus Moro, representante da Associação Nacional de Defensoras e Defensores Públicos (ANADEP) disse que a situação no estado é “inconcebível”. “Temos familiares falando de fome, entrega de comida azeda, falta de água, falta de acesso à saúde, pessoas que não recebem remédio, enfim, tudo isso é muito grave. Há outro problema grave de criminalização dos familiares, com relatos de agressões fora dos presídios, inclusive.”


Presos com tuberculose usam recipientes de marmita para cuspir sangue, evitando assim sujar mais o solo / Foto: MNPCT

Governos ausentes

Juliana Silva, assistente social e integrante do Centro de Referência de Direitos Humanos do Rio Grande do Norte, afirma que o governo de Fátima Bezerra (PT) foi alertado sobre as condições dos presídios.

“Não cansamos de afirmar que o que acontece em nosso estado é uma tragédia anunciada. No Centro de Referência de Direitos Humanos recebemos os protocolos de denúncias do Disque 100 e fizemos um levantamento de quantas denúncias foram enviadas à Ouvidoria da Secretaria de Administração Penitenciária entre 2021 e 2022 e chegamos ao número de 205 denúncias que chegaram, alertando para as condições de higiene, alimentação, para privação de direitos e tortura. Não foi falta de aviso ao poder Executivo, de que o sistema se encontrava em crise”, afirmou Silva.

O Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (CNPCT) é um conselho subordinado ao Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania. Suas reuniões, por regimento, devem ser presididas pelo chefe da pasta, Silvio Almeida, que não esteve no encontro online, onde foi apresentado o relatório do MNPCT.

A ausência de Almeida foi criticada pelos participantes. “Por quê o ministro dos Direitos Humanos não veio aqui e não acompanha as ações, como faz o ministro da Justiça? Para mim, sinaliza a diretriz política e institucional desse governo. O governo não trata como questão de direitos humanos, apenas como segurança pública”, afirmou Anna Karenina Arraes, pesquisadora do departamento de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN).

Fernanda Peres, da Anadadep afirmou que o “conselho é um espaço para que o outro lado possa ouvir, mas o outro lado precisa estar aqui para ouvir. Esse valioso espaço não pode ser esvaziado pela presença apenas da sociedade civil.”

O ministro da Justiça e Segurança Pública, Flávio Dino, anunciou na última segunda-feira (19) que o governo federal autorizou o envio de R$ 100 milhões ao Rio Grande do Norte para cooperar nas soluções para a crise.

De acordo com o governo do Rio Grande do Norte, R$ 26 milhões desse montante serão destinados a ações para melhorar as condições de vida dos presos. O restante, R$ 74 milhões, será utilizado para compra de armamentos, equipamentos, viaturas e a construção de um presídio.

A partilha dos recursos, dessa forma, foi criticada pelos integrantes da reunião. “Pelo que estamos vendo, o governo vai realocar esses recursos para a compra de armas e para a construção de outra unidade prisional. Do que vai adiantar? Se servisse para algo, não estávamos aqui conversando.”

Mateus Moro também criticou o destino dos recursos. “Esse discurso do governo do RN de criar mais presídios tem que ser visto com cautela. Algumas pessoas que acompanham a situação lá dizem que é preciso uma reestruturação das unidades e não construir mais presídios. Pelo contrário, você fortalece ainda mais o crime organizado, que atua dentro das prisões.”

Outro lado

O Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania explicou a ausência do ministro Silvio Almeida. "Não pôde comparecer a esta reunião porque está em Buenos Aires, Argentina, para cumprir agenda de participação no Fórum Regional de Direitos Humanos da América Latina. Não obstante, participaram da reunião de hoje duas representantes do Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania no Comitê, Fernanda de Oliveira, Coordenadora Geral de Prevenção e Combate à Tortura e Ana Lúcia Castro, Coordenadora Geral de Segurança Pública e Direitos Humanos, que acompanharam a integralidade dos trabalhos, desde o princípio da reunião."

A reunião do Comitê Nacional de Prevenção e Combate à Tortura deveria ser presencial, em Brasília. O ministério justificou a escolha pelo encontro online. "A previsão orçamentária do Comitê para o ano de 2023, de acordo com decisão da gestão Bolsonaro, é irrisória, cerca de 32 mil reais. A Secretaria Executiva da atual gestão está envidando esforços para suplementação orçamentária a fim de que o Comitê tenha as condições necessárias para funcionar de acordo com suas atribuições legais, inclusive para a realização das reuniões presenciais e em breve divulgará comunicado com indicação dos valores que serão suplementados a partir de remanejamentos internos."

Procurado, o governo do Rio Grande do Norte preferiu não se manifestar.

 

Edição: Rodrigo Durão Coelho