RESISTÊNCIA FEMININA

Do MTST para a Alesp, Ediane Maria espera que 'moradia não seja sonho, mas direito’

Nordestina, a parlamentar conheceu MTST na fila do Viva Leite e quer levar a voz dos que constroem SP para a ALESP

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Durante a conversa, Ediane Maria falou sobre a luta por moradia em São Paulo e como o Estado deve agir para garantir um teto para todos - Reprodução/Facebook/Ediane Maria

Vinda de Floresta, cidade com pouco mais de 30 mil habitantes no interior de Pernambuco para São Paulo com 18 anos, Ediane Maria do Nascimento obteve a 20ª maior votação entre os candidatos à Assembleia Legislativa do estado de São Paulo. Hoje, aos 39 anos, a empregada doméstica e coordenadora do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto) orgulha-se de representar milhares de vozes no parlamento estadual. “Entrei com muita ousadia e trazendo essa voz que foi tão silenciada, a voz das milhares de pessoas que constroem o estado mais rico da América Latina”, afirmou em entrevista na ocupação Lélia Gonzalez, no ABC, região metropolitana de São Paulo paulista.

Apesar de ser mulher e representar um contingente de 51% da população paulista e de 37% quando se fala de mulheres negras em São Paulo, segundo dados da Fundação Seade, Ediane ainda é minoria na Alesp.  Sâo apenas 25 cadeiras femininas de um total de 94 na Assembleia. 

Integrante da oposição ao governo Tarcísio de Freitas (Republicianos), a parlamentar, que já viveu em um quartinho de dois metros, quer lutar por um programa de moradia próprio do estado e por medidas que reduzem a violência contra a mulher. 

Confira a entrevista completa:

 

Brasil de Fato: Em 2002 você saiu de Pernambuco e veio para São Paulo, quais eram as suas expectativas ao chegar aqui?

Ediane Maria: Cheguei aqui achando que teria uma possibilidade, cheguei com muita vontade, imagina uma menina de 18 anos, chegando na cidade mais rica da América Latina. Você olha e fala: "eu vou ser alguém." 

Sou a sétima de oito irmãos e eu vim para São Paulo para ajudar minha mãe nas férias na casa dos patrões dela. O que aguçava a minha vontade de vir pra São Paulo, eram os filhos e os netos da patroa da minha mãe, que me contavam as histórias de São Paulo, que estavam fazendo faculdade de medicina e eu cresci pensando assim: “eu vou pra São Paulo porque chegando lá vou voltar como professora. Vou ter possibilidade e oportunidade como todo mundo”. Eu achava que isso era para todo mundo. 

Como foi viver em São Paulo neste início? 

Quando eu cheguei aqui, fui direto pra casa da minha patroa, fiquei no quarto da empregada. Vi que não tinham oportunidades para todo mundo, porque eu vim pra cá em outras condições, vim para trabalhar. Não terminei meu ensino médio, achei que seria fácil terminar. Na verdade eu fiquei mais de 13 anos em São Paulo sem terminar, fui concluir pelo EJA [Ensino de Jovens e Adultos], já com quatro filhos, mãe solo. 

São Paulo me invisibilizou e não é somente eu, falo por milhares de vozes que vêm construindo esse estado, chegam aqui numa expectativa e são facilmente engolidas, diminuídas, invisibilizadas e esquecidas na periferia. 

E aí, comecei a me diminuir, me restringir apenas a um quarto, de menos de dois metros, que só cabe uma cama pra dormir ali e desse lugar eu fiz o meu canto, coloquei fotos. Sempre que eu me via perdida ou queria chorar eu ia pra lá e olhava e pensava: “eu sou alguém, sabe?” Quando a dor era muita e ninguém queria ouvir, eu ia pro meu canto e falava: “eu sou maior que isso”. 

Apesar da Lei Complementar 150, de 2015 regulamentar o trabalho doméstico, a realidade das trabalhadoras domésticas segue precarizada?

Meu primeiro registro veio por causa da Dilma por causa da aprovação da PEC das Domésticas que fez 10 anos, mas a gente vai ter que lutar muito ainda para que, de fato, haja uma fiscalização.  Ainda é um trabalho que é muito precarizado, é o terceiro que mais contrata no nosso país.

Como contraponto, a gente está falando do terceiro que não é regularizado, não tem fiscalização. A cada cinco mulheres que trabalham como doméstica, apenas uma tem direito garantido, apenas uma vai poder adoecer, tem registro em carteira, vai ter aposentadoria. 

Como você conheceu o MTST?

Eu pegava leite pros meus filhos no programa Leva Leite, que é um programa do governo do estado. A fila do leite começou a aumentar, então comecei a chegar cedo e brigar com o povo e foi ali que eu conheci uma companheira do MTST, que, por eu conversar tanto, por eu questionar inclusive a fila da distribuição como estava sendo feita naquela época, comecei a olhar e falar: “tá errado isso aqui. O nosso tempo não vale nada, nós não somos nada”.

Você pode ficar duas horas no ônibus, duas horas aqui na fila do leite, ninguém está nem aí pra você, na verdade a sua vida é só lutar para sobreviver, então é ali que eu começo esse questionamento.

E foi quando a companheira do MTST me conheceu, ela ajudava na distribuição do leite e falou assim: “vou te levar pro MTST”, eu moro até hoje no fundo da casa da minha ex-sogra, aqui em Santo André. Então eu comecei a questionar, e quando entrei para o MTST, vi que as pessoas não tinham medo, porque tudo o que podiam tirar da gente já tinham tirado.

Então a gente precisa lutar, tudo o que a gente conquistou foi arrancado na unha, ninguém deu para a gente porque era bonzinho, legal porque acha que o trabalhador tem que ter direito. Tudo foi feito à base de muita luta. E ali que eu me organizo, vou para a coordenação do MTST, entendendo que esse lugar é nosso. Você pertence a um espaço, você é alguém, você é importante.

Entrei no MTST no dia dois de setembro de 2017 e fiquei, construí setores e ajudei a construir o Raizes da Liberdade, um movimento negro que surge dentro do MTST como coletivo pra discutir pautas raciais. 

Podemos dizer que a moradia é uma porta de entrada para outros direitos? Sobretudo para as mulheres

 Quem mora na periferia são mulheres negras, na sua grande maioria mães solo, são essas mulheres que estão hoje sem saneamento básico, que moram de favor, em área de risco, são essas mulheres que estão na sua grande maioria nesse espaço. Então quando você fala de dar uma moradia digna, você está dando dignidade para essa mulher lutar por uma melhor condição de trabalho, conseguir estudar, se alimentar.

Conseguir ir no mercado e fazer uma compra digna, que venha uma carne, um arroz, um feijão, uma bolacha que seu filho quer, isso não tem preço. Isso é uma coisa que a gente luta todos os dias. 

Trabalhamos todos os dias para que a gente tenha o mínimo de respeito, o mínimo de dignidade e que o Estado nos dê oportunidade de continuar vivas. Somos nós as maiores vítimas de violência doméstica e essa mulher fica ali ou morre, porque ela não tem pra onde ir.

Sendo oposição na Alesp, como você pretende exercer seu mandato?

Essa vitória não é minha vitória, é nossa porque eu sou representante dessas vozes que me colocaram lá dentro. Foram mais 175 mil votos de pessoas que fizeram campanha sem nem me conhecer. Tem uma doméstica, tem uma nordestina, que é a cara do Brasil e do estado de São Paulo. 

Foi aprovada uma lei que obriga o estado a dar não auxílio emergencial para as mulheres que sofrem violência doméstica, um avanço muito grande porque é uma luta que as feministas estão fazendo há séculos, mas é uma pena que as mulheres que lutaram tanto tempo para isso não tenham sido convidadas para estar nesse espaço, estar dialogando. E por isso, o povo vai participar desse espaço e isso incomoda.

Incomoda porque não é um lugar que nós iríamos. A minha candidatura vem nesse processo de desmistificar isso, quero fazer com que as mulheres negras ocupem cada vez mais esses espaços. Meu sonho é que a moradia não seja um sonho, seja um direito. Que comer seja um direito.

Eu entrei com muita ousadia, trazendo essa voz que foi tão silenciada, que é a voz das milhões de pessoas que constroem o estado mais rico da América Latina. 

Como está a situação dos programas habitacionais aqui em São Paulo? É possível priorizar as camadas mais pobres da população no 'Minha Casa, Minha Vida' por exemplo?

A gente tá falando de dar direito, e é possível, sim. O Lula  provou que é possível, se você for em um condomínio conquistado por nós, que é o Pinheirinho Santo Dias as pessoas pagam R$ 50,00 para a Caixa durante 10 anos, porque é 10% do que você ganha, acessa todo mundo.

Será que não é melhor viver num estado que todo mundo tem sua moradia, ou será que para eu estar bem a outra pessoa tem que estar morando debaixo da ponte? Moradia dá para fazer, o estado de São Paulo por ser o mais rico da América Latina deveria, inclusive, ter um programa próprio de moradia. Por que não? Tem que ter um programa de moradia para o estado de São Paulo. 

Como funcionam as cozinhas solidárias? Você pretende levar essa ideia também para o seu mandato?

Com certeza, as cozinhas solidárias surgem em 2020, inclusive nós estamos aqui hoje em frente à cozinha central, a primeira estrutura que é levantada dentro de uma ocupação. Aqui sempre estão servindo um cafezinho, ou uma sopa, um caldo, um pão alguma coisa na madrugada, porque a gente entende que não dá para ninguém trabalhar um dia inteiro sem se alimentar. E essas cozinhas vão se multiplicando dentro das ocupações.

As cozinhas solidárias vêm em 2020 na pandemia, quando o Bolsonaro não liberava auxílio emergencial, ele queria liberar R$ 200, depois R$ 300. E aí ficou naquela luta e o povo morrendo de fome dentro de casa, ninguém estava olhando pras pessoas que não estavam conseguindo trabalhar, muitas vezes eram autônomos, empregadas domésticas, diaristas, pedreiros que estavam passando fome dentro de suas casas, então é ali que surge porque a gente começa a entregar cestas básicas, o MTST chegou a entregar mais de 70 toneladas em alimentos. Então levamos além do alimento, produtos de higiene, de limpeza, máscaras que as nossas companheiras faziam. Mas aí o pessoal não conseguia cozinhar porque não tinha gás, então parou todo mundo, sentou e falou: “Mas tem as cozinhas coletivas, né?”.

Então aí que surge o projeto das cozinhas solidárias e a gente começa a fazer cozinhas na periferia. A distribuição é de segunda a sexta, ou de segunda a sábado, a gente entrega uma refeição por dia. A gente vive totalmente de doações. Inclusive estamos lutando para que vire política pública, então a primeira coisa é o combate à fome.

 

Edição: Rodrigo Durão Coelho