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Negro, rebelde e rei: Líder de revolta do século 16 pode entrar para o Panteão da Venezuela

Grupo iniciou campanha para levar Miguel de Buría ao Panteão Nacional; em 1553, rebeldes fundaram estado autônomo

Caracas (Venezuela) |
Negro Miguel libertou escravizados e fundou estado autônomo durante período colonial - Reprodução

Descolonizar espaços de memória e reivindicar figuras populares. É com essa justificativa que um grupo de pesquisadores, ativistas sociais e deputados venezuelanos iniciou uma campanha para levar Miguel de Buría, conhecido como Negro Miguel, e sua companheira Giomar ao Panteão Nacional do país.

Líder de uma rebelião de escravizados no século 16, no território que conformaria anos mais tarde a Venezuela, Miguel deve se tornar o próximo herói nacional venezuelano, dividindo espaço com líderes da independência, políticos, artistas e outros nomes destacados da história venezuelana.

Ao Brasil de Fato, o professor Reinaldo Bolívar, que encabeça a campanha para levar os restos mortais de Miguel ao Panteão, explica que o movimento ocorrido em 1553 constituiu a primeira rebelião afro-indígena da região.

“Levar Miguel e Giomar, conhecidos amplamente na Venezuela por protagonizar a primeira rebelião afro-indígena que aconteceu nesse país, é um ato de descolonização, é um ato contra a transculturalização à qual esses povos da Venezuela e da nossa América foram submetidos durante centenas de anos”, afirma.

Diretor do Centro de Saberes Africanos, Americanos e Caribenhos da Venezuela, Bolívar afirma que a representação popular dos líderes negros é “o principal motivo para levá-los ao Panteão Nacional, porque é o lugar onde estão os principais heróis e heroínas da Venezuela pela contribuição que deram ao país”.

Sequestrado de sua região natal no continente africano como outros milhões de escravizados, Negro Miguel passou por Portugal e Porto Rico antes de ser enviado aos domínios espanhóis na América do Sul. Ao chegar, foi forçado a trabalhar nas minas de ouro Barquisimeto, às margens do rio Buría, onde hoje fica a cidade de Simón Planas, localizada no Estado de Lara.

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A condição de escravizado e as constantes torturas levaram Negro Miguel a se rebelar. Em 1552, o líder fugiu para matas próximas e inspirou outros escravizados a seguirem seu exemplo. No refúgio, negros e indígenas se aliaram para formar um exército que atacou e tomou as minas de Buría, matando os espanhóis e libertando outros escravizados.

Para a historiadora venezuelana Inés Quintero, apesar de haver algumas versões e lendas envolvendo Negro Miguel, não há dúvidas que a revolta de fato ocorreu e que foi uma das primeiras da região. Ao Brasil de Fato, a professora destaca o caráter anti-escravagista da rebelião, mas diz que ela não deve ser encarada como um começo das lutas pela independência.

"Eu não tenho dúvidas que se trata de uma referência icônica do que foram as rebeliões contra a escravidão. Eu acredito que é importante diferenciar uma rebelião contra a escravidão de uma rebelião contra a dominação espanhola, são duas coisas diferentes. Me parece que é um primeiro elemento importante de distinção e que, de fato, lhe dá maior relevância e sentido histórico do que querer apresentá-la como uma linha de continuidade contra a presença da Espanha na América", afirma.

Rebeldes organizados

Vitoriosos na batalha contra os espanhóis, os rebeldes decidiram se organizar: proclamaram um estado autônomo e aclamaram Miguel como rei. Sua esposa, Giomar, se tornou rainha e seu único filho seria o príncipe herdeiro.

A sociedade proposta pelos negros e indígenas rebelados possuía um alto nível de complexidade pois foram criadas instituições como uma igreja, com bispos e hierarquia definida, títulos reais que eram designados por Miguel e até um conselho de ministros do soberano.

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Reinaldo Bolívar afirma que a ousadia que a organização dos rebelados representou para o momento histórico que viviam é a contribuição que justifica a entrada do Rei Miguel ao Panteão Nacional.

"A grande contribuição dessa rebelião é o gérmen do Estado-Nação, pois eles fundaram esse estado, esse reino, algo inovador para o período. Essa comuna, esse quilombo, tinha características de uma cidade-estado, com um sistema de governo, uma religião, uma cultura e sistemas de produtividade", diz.

Para Inés Quintero, não é inusitado o fato de os escravizados terem adotado uma forma organizativa similar a de seus "opressores", ou seja, um regime monárquico. A historiadora aponta para o fato de que o modelo de governo proposto estava em concordância com o momento histórico do século 16, quando outras perspectivas liberais como o constitucionalismo ou a república moderna ainda não haviam sido postos em prática.

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No entanto, Quintero destaca que as fontes históricas sobre Negro Miguel e sua rebelião também poderiam influenciar a interpretação do tipo de organização que adotaram naquele momento, pois os cronistas que escreveram sobre esses fatos no século 16 o faziam a partir de suas referências, "em função de seus valores e premissas".

"A única forma de reproduzir hierarquias é a reprodução das que são conhecidas. Além disso, esse personagem é africano, por isso seria interessante ter presente quais eram as estruturas hierárquicas da região de onde ele vem, mas elas foram apagadas. No momento de reproduzir um sistema não há outra referência, ao menos que eles tivessem uma memória de quais eram suas referências hierárquicas em seus grupos originários para poder reproduzi-los aqui, mas isso é especulação", afirma.

A experiência durou até 1555, quando soldados espanhóis conseguiram derrotar o exército rebelde e retomar o controle da região. Miguel acabou sendo morto em batalha e sua morte desorganizou o movimento. Já Giomar e seu filho foram presos e escravizados novamente.

Referência para a população negra

Caso Negro Miguel entre para o Panteão Nacional, ele se tornará mais um herói negro a estar presente entre as figuras mais relevantes da história venezuelana, ao lado do soldado independentista Pedro Camejo, conhecido como Negro Primero, de Negra Matea e Hipólita, ambas escravizadas pela família do libertador Simón Bolívar.

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Para Reinaldo Bolívar, conseguir levar Miguel ao mais destacado espaço da memória nacional serviria também para reafirmar a importância do líder rebelde à população negra da Venezuela.

"Miguel se converte em uma referência para os afrovenezuelanos, para os indígenas, porque é a demonstração de que se pode planificar, se pode organizar atividades políticas, atividades em função da transformação de um país, de uma região. Miguel planificou, organizou e convenceu seus contemporâneos, que também eram escravizados, que era necessário se rebelar e, além disso, se organizar para formar um estado que lhes permitisse um caminho de liberdades", afirma. 

Edição: Thales Schmidt