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Extremistas devem ser barrados nos veículos de comunicação?

De Jair Bolsonaro no CQC à Janaina Paschoal na CNN: defesa de preconceitos e relativização da realidade ganharam espaço

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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De um lado, o que estava em jogo nesses programas era conseguir audiência sem fazer grandes esforços. Para isso, colocaram Bolsonaro na sala - Miguel Schincariol/AFP

Em 2011, o ex-presidente Jair Bolsonaro afirmou que sentia saudades dos ditadores Emílio Garrastazu Médici e Ernesto Geisel, defendeu violência contra homossexuais e disse que não aceitaria ser “operado por um médico cotista”. As declarações foram dadas durante o programa O Povo Quer Saber, do CQC, na TV Band, no qual às pessoas podiam fazer qualquer pergunta ao então deputado federal pelo PP do Rio de Janeiro.  

Não era a primeira vez que o CQC e outros programas de entretenimento serviram de palco para Bolsonaro. No mesmo ano, em entrevista à Luciana Gimenez no Superpop, da RedeTV!, o ex-presidente disse que não gostariam que seus filhos fossem homossexuais. “Nenhum pai gostaria”, respondeu à apresentadora. 


Jair Bolsonaro no programa O Povo Quer Saber, do CQC / Reprodução/Youtube

De um lado, o que estava em jogo nesses programas era conseguir audiência sem fazer grandes esforços. Para isso, colocaram Bolsonaro na sala. Do outro, o lado de Bolsonaro, a meta era conseguir expressão nacional. Para isso, defendeu crimes e preconceitos sob o traje de ser “esquentadão” e “louco”, como os próprios apresentadores do CQC classificavam o ex-presidente. Foi a combinação perfeita que, ano após ano, ajudou a construir o nome de Bolsonaro como uma liderança da extrema direita. 

Filtrar ou não dar espaço? 

Eliara Santana, pesquisadora do Observatório das Eleições do Instituto da Democracia e da Democratização da Comunicação (INCT-IDDC) e do Instituto de Estudos da Linguagem da Universidade Estadual de Campinas (IEL-Unicamp), defende que esses discursos não devem ser veiculados.  

“Essas inserções acabam por legitimar um discurso extremista de direita. Não é aquela prática do jornalismo de colocar pontos de vista dissonantes. Dar espaço a essas pessoas é uma visão distorcida do que é ouvir o contraditório e do que é a liberdade de expressão, porque não é liberdade de expressão abrir espaço para negacionistas, por exemplo. Não se trata disso, mas de uma legitimação desse discurso. É um desserviço absoluto para a democracia e a própria prática jornalística”, afirma Santana.  

A pesquisadora lembra que é dever do jornalismo ouvir todos os lados de uma história, mas nesses casos trata-se de uma prática que “se camufla numa exposição de contraditório, como se fosse uma posição democrática”. 

“Dar voz alguém sabidamente extremista que coloca em xeque coisas, procedimentos e processos da realidade, como Steve Bannon, que constrói discursos e estratégias para solapar as democracias mundo afora, não me parece ser um dilema. Se o jornalismo ainda não sabe identificar o que expor o contraditório ou o que dar voz a extremistas enlouquecidos, então é um problema é de divã para o jornalismo.” 

Luciana Moherdaui, pesquisadora do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP), entende que veicular declarações como a de Janaina Paschoal, Steve Bannon e Jair Bolsonaro se torna um problema quando o conteúdo dela à desinformação.  

Recentemente, a ex-deputado Janaína Paschoal relativizou o trabalho análogo à escravidão em sua estreia como comentarista da CNN Brasil. “De repente tem um monte de escravocrata no país. A gente também tem que avaliar no caso concreto. Eu conheço casos e casos. Essa generalização não pode acontecer. Vários casos aparecem repentinamente. Repentinamente, muitos políticos de esquerda passam a exigir desapropriações por forças desses casos. Isso é fato”, disse Paschoal, ainda que sob a reprimenda de seus colegas de bancada.  

Antes, Steve Bannon, um dos estrategistas da extrema direita dos Estados Unidos, defendeu que as derrotas de Donald Trump em 2020 e de Jair Bolsonaro em 2022 foram frutos de fraude eleitoral. “Trump não perdeu em 2020 e Bolsonaro certamente não perdeu no Brasil”, disse em entrevista à Folha de S. Paulo. “É óbvio que houve roubo no Brasil e provavelmente foi mais escandaloso do que com Trump. Mas isso não vai importar. Trump voltará em 2024 e Bolsonaro voltará, então será uma boa lição para mostrar às pessoas o quanto as instituições podem ser corrompidas facilmente contra o desejo do povo.” 

Já foi provado, por exemplo, que não houve fraude eleitoral tanto nos Estados Unidos de 2020 como no Brasil de 2022. Também não há informações de que as recentes denúncias de trabalho análogo à escravidão estão sendo utilizadas por políticos de esquerda para fabricar desapropriações de terra. 

Diferente de Eliara Santana, Moherdaui crê ser importante saber o que essas vozes dizem, mas desde que filtros sejam aplicados. “O problema não é ideologia. O problema é dar espaço para conteúdo que leva à desinformação. A imprensa deveria fazer um filtro. Acho que a liberdade de expressão não é permitir que um político, especialista ou pesquisador de uma determinada vertente espalhe mentira”, afirma Moherdaui. 

Como exemplo, a pesquisadora relembrou a transmissão ao vivo da celebração do Sete de Setembro do ano passado feita pelos canais de comunicação da mídia comercial. Foram 12 horas de transmissão de um evento de Estado que se transformou em campanha eleitoral. A escolha por veicular os discursos de Jair Bolsonaro causou indignação mesmo entre os jornalistas da GloboNews. O comentarista Fernando Gabeira disse que “cobrir exaustivamente a fala de Bolsonaro como candidato só é razoável se nós cobrirmos exaustivamente também a fala dos outros. Porque quem falou foi o candidato. Ele falou algumas barbaridades exatamente para nós comentarmos”. 

“O jornalismo como um todo tem que avaliar, porque, no caso da TV, o telespectador que a liga uma emissora e acompanha Bolsonaro desinformando, ele não vai esperar terminar a transmissão para alguém dizer que aquilo que o Bolsonaro afirmou não é verdade. Existe um problema no jornalismo de lidar com esse tipo de discurso. Quando o conteúdo esbarra em desinformação ou discurso de ódio deve ser feito um filtro”, afirma Moherdaui. 

Segundo a pesquisadora, a decisão de publicar ou não determinados posicionamentos e declarações envolve uma questão básica na imprensa: a objetividade transmite ao jornalismo o dever de publicar o fato.  

“O problema é que nós vivemos numa situação em que a desinformação virou um fato, e o jornalismo está noticiando a desinformação, sem contextualizá-la. Isso é um problema. Se você coloca o Steve Bannon contestando as eleições, você precisa explicar para o leitor que aquilo não é verdade. Nesse caso, acho que falta uma autocrítica da imprensa como um todo. Eu tenho acompanhado muito a imprensa americana, e Steve Bannon, por exemplo, não tem esse peso.” 

Para Moherdaui, assim como as empresas responsáveis pelas redes sociais são cobradas para implementar medida contra a divulgação de notícias falsas, a imprensa também deveria ser reivindicada no mesmo lugar. 

“A imprensa tem no manual não divulgar suicídio, não divulgar sequestro. Agora também não vai divulgar o nome das pessoas que cometem assassinatos em escolas. Então por que a imprensa não cria uma regra para desinformação? Porque isso é danoso. A desinformação é tão importante quanto não estimular essas imagens de violência e a incitação à violência. A imprensa devia ter um código também para o caso de desinformação”, defende a pesquisadora.  

Manuais 

Desde a amplificação do impacto das notícias falsas sobre o mundo político, principalmente, alguns manuais de como evitar a desinformação começaram a surgir. A Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), por exemplo, lançou em 2019 o Manual para Educação e Treinamento em Jornalismo, que trata sobre as consequências da desinformação e como o jornalismo deve trabalhar para combatê-la. 

Enquanto o documento foi desenvolvido, outros manuais e relatórios foram elaborados no mesmo sentido. A Comissão Europeia publicou em 2018 um arquivo no qual faz uma abordagem das diversas facetas da desinformação, também com orientações aos profissionais da imprensa.  

Um ano antes, em julho de 2017, a Alemanha publicou uma legislação para aprimorar a aplicação das leis existentes nas redes sociais (Act to Improve Enforcement of the Law in Social Networks). Entre as determinações, a lei estabelece que a empresa “deve manter uma rede eficaz e transparente procedimento para tratamento de queixas sobre conteúdos ilegais”. 

Em abril de 2018, o parlamento da Malásia aprovou uma legislação contra desinformação. O governo estabeleceu multas de até 500.000 ringgit, o que equivale a aproximadamente R$ 570 mil. A legislação, no entanto, foi vista como censura e revogada em agosto do mesmo ano. 

No Brasil, ainda não há legislações aprovadas sobre desinformação, seja nas redes sociais ou na imprensa. Há, porém, alguns manuais que podem ser utilizados por jornalistas. Em 2016, a iniciativa global The Trust Project publicou o Manual da Credibilidade “com a proposta de reunir conceitos básicos sobre jornalismo, suas relações com a democracia, liberdade de expressão, o fenômeno da desordem da informação e estratégias viáveis para o seu combate e a promoção do jornalismo de qualidade”. 

Edição: Rodrigo Durão Coelho