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Centro Martin Luther King: como Cuba conjugou fé e revolução em um só lugar

Projeto fundado por pastores batistas trabalha com religiosidade e "caráter patriótico e revolucionário" da ilha

Havana (Cuba) |
Debate realizado no Centro Martin Luther King, em Cuba - Gabriel Vera Lopes

No dia 25 de Abril de 1987, os pastores Raúl Suárez Ramos e Clara Rodés da Igreja Batista Ebenezer fundaram uma associação de inspiração cristã que passaria a se chamar Centro Memorial Martin Luther King (CMLK). Ao longo de mais de três décadas, o CMLK tornou-se um dos principais espaços de luta social em Cuba, com uma religiosidade influenciada pela Teologia da Libertação e a realidade política da ilha.

"A ideia de construir o Centro foi dar à igreja um local com espaço e autonomia, que pudesse desenvolver com maior intensidade e amplitude o trabalho político e social que ela vinha desenvolvendo. Um trabalho que transcendia os limites que a igreja pode ter como comunidade de fé", diz Joel Suárez, membro da coordenação do CMLK, ao Brasil de Fato.

Suárez não só viu nascer e crescer o CMLK, mas foi também responsável pela sua coordenação executiva durante muitos anos. Filho do Reverendo Raúl Suárez e da falecida Pastora Clara Rodés, uma das três primeiras mulheres batistas ordenadas para o pastorado em Cuba, a sua infância transcorreu entre os bancos da igreja.

Contudo, ele só foi integrado ao Centro em 1992, quando começou a ajudar a preparar o que acabou por ser a primeira Caravana da Amizade EUA-Cuba, coordenada por vários pastores provenientes de ambos países.  

Enquanto narra a história do CMLK, Suárez resume: "reconhecemos três legados: o movimento ecumênico cubano de caráter patriótico e revolucionário, a educação popular latino-americana e a prática internacionalista da Revolução Cubana".

Estes legados não só marcam a história do CMLK, mas também dão vida aos seus projetos diários. A organização acompanha uma extensa rede de educadores populares com presença em todo o país e também integra iniciativas internacionalistas de solidariedade e articulação de movimentos sociais no continente, como a Alba Movimentos e a Assembleia Internacional dos Povos.

Aprender de um bairro que dança ao ritmo dos tambores

Fora do CMLK, o calor de Havana se mistura com a fumaça do tráfico de carros. Localizado em Pogolotti, um dos bairros mais conhecidos da classe trabalhadora de Havana, a história do bairro está entranhada com a do Centro.

"Este é um bairro da classe trabalhadora, as primeiras casas foram distribuídas por sorteio entre as pessoas que trabalhavam na fábrica de tabaco. A maioria das primeiras pessoas que vieram viver neste bairro eram negras e pobres", diz Martha Rosa Herrera Quesada, que participa do CMLK.

Raúl Suárez Ramos e Clara Rodés chegaram ao bairro em 1971, depois de Ramos aceitar o chamado para se tornar pastor da Igreja Batista de Ebenezer em Marianao.

"A nossa igreja tem uma origem evangélica protestante. Isto faz dela uma espécie de transplante da sub-cultura norte-americana aqui em Cuba: uma tradição doutrinal e litúrgica anglo-saxônica num bairro com uma população fundamentalmente negra e mestiça, como é o bairro Pogolotti", diz Suárez, acrescentando que "embora esta fosse uma igreja popular de bairro, era culturalmente branca, cantando música do século XIX ao piano enquanto o bairro se movia ao ritmo dos tambores".

O filho dos fundadores do CMLK lembra que o contato com a população pobre gerou a consciência e a convicção de se sentirem parte desse povo. E foi dentro desta congregação que o compromisso e as primeiras ações no bairro foram formadas.

"Nessa altura, os contatos que tínhamos com a teologia da libertação latino-americana, assim como com a teologia da libertação negra dos Estados Unidos, foram muito importantes", afirma Suárez. "Martin Luther King tinha sido um batista como nós e um cristão que, devido à sua fé, assumiu um lugar na luta, na mobilização social, na militância".

Ser revolucionário por causa da fé e não apesar dela

Em meados da década de 1980, tomando uma distância crítica do processo que tinha lugar na União Soviética, conhecido como Perestroika, Fidel Castro, mediante uma série de discursos, promoveu o que na época foi conhecido como um "processo de retificação de erros e tendências negativas".

Fazendo eco dos sentimentos populares, Fidel iniciou um período de crítica ao "período de institucionalização revolucionária" que tinha acontecido na década de 1970, sob a premissa de que o modelo soviético tinha sido copiado de forma acrítica.

Foi neste contexto que ocorreu uma aproximação entre setores religiosos e o Partido Comunista Cubano.

"O nascimento do Centro Martin Luther King não é apenas parte deste processo, ele foi um dos setores religiosos que promoveu estes diálogos", aponta Suárez.

Uma alternativa para a emancipação

"Eu digo sempre que a educação popular, antes de mais nada, é uma filosofia de vida. Ou seja, não se trata apenas de uma metodologia. É uma metodologia que também transforma a sua vida, que revela as relações de opressão e também dá alternativas para a emancipação", afirma Rudiel Paneque, membro da rede de educadores populares do CMLK.  

Para Paneque, a educação popular, a fé e o socialismo estão ligados na busca de uma sociedade mais justa. "O socialismo como um sistema social que tem como objetivo a justiça e a construção de relações mais horizontais. Construção baseada na participação popular, com a liderança do povo", diz o educador, "penso que é muito coerente com a educação popular que procura precisamente isso".

No período conhecido na ilha como "período especial", após a queda da União Soviética, a crise econômica produziu uma forte territorialização da vida cotidiana das pessoas. "A crise foi tão grave que os transportes tinham se tornado muito deficientes e nos locais de trabalho não havia abastecimento para produzir, então as empresas começaram a autorizar as pessoas a a trabalhar nos seus próprios bairros" recorda Suárez e completa "neste contexto, começamos a oferecer os nossos instrumentos de educação popular nas oficinas para a transformação integral dos bairros".

Suárez não tem dúvidas e afirma categoricamente que "a revolução foi salva nos territórios, nos espaços comunitários".  

Com o passar do tempo, estes espaços de educação popular expandiram-se por todo o país.  Eles formaram a base do que hoje é uma extensa rede de educadores populares, que é fomentada pelo CMLK e está presente nos 165 municípios do país.

Fiel ao objetivo estratégico do CMLK, Suárez diz que "a única forma de recriar e manter a hegemonia de um projeto orientado para a solidariedade, que é no fundo o socialismo, é que o povo se sinta parte dele, participe nele e tenha parte dele. Ou seja, com participação popular e, sobretudo, com controle popular sobre as instituições, os funcionários públicos e aqueles que dirigem empresas".

Edição: Thales Schmidt