Análise

Dez anos do Programa Camponês (RS): uma política pública desde os camponeses

O programa foi construido com base nos princípios da solidariedade entre as classes, do cooperativismo e da agroecologia

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
"Ao lembrar e comemorar os 10 anos da conquista desta política pública, torna-se imprescindível buscar, por meio da luta, sua retomada e ampliação na escala nacional" - Pedro Stropasolas/Brasil de Fato

Há 10 anos foi conquistado um dos programas mais importantes de políticas públicas para o campo brasileiro. Em escala estadual no Rio Grande do Sul (RS) nasce o Programa Camponês. Construído com base nos princípios da solidariedade e cooperação entre as classes sociais, cooperativismo e agroecologia, o Programa Camponês foi fruto da luta e organização das classes camponesas e urbanas, especialmente por meio das iniciativas do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), Via Campesina, Sindicato dos Metalúrgicos, Levante Popular da Juventude (LPJ) e Movimento dos Trabalhadores Desempregados (MTD), durante o governo democrático e popular de Tarso Genro (2011-2015).

O dirigente Januário lembra:

"Tínhamos um grande problema: a comida saudável, principalmente nos centros urbanos, não estava indo parar na mesa da classe trabalhadora, mas sim na mesa dos endinheirados. Nós do movimento não queríamos e não queremos isso, e achamos injusto. Portanto, na construção do Programa Camponês, acordamos em comercializar parte dos nossos alimentos em feiras e mercados populares nas periferias. Também acertamos com a Federação dos Metalúrgicos em fornecer alimentos nos restaurantes das empresas filiadas à federação. Desse jeito, criamos uma estratégia para fortalecer nossas atividades na roça e nossos laços com os companheiros da cidade."

Em consonância com a análise de Januário, estavam as percepções da Natascha, moradora, militante e trabalhadora desempregada da grande Porto Alegre:

"A comida aqui na cidade tem um preço bastante elevado, principalmente os que contêm o rótulo de procedência orgânica. Esses nós não tínhamos condições de adquirir. Consumíamos muitos alimentos geneticamente modificados e com bastante agrotóxico, não era o certo, mas era o que conseguíamos adquirir com o nosso dinheiro. Na nossa organização aqui da cidade, já fazia um tempo que a gente pensava em maneiras de não apenas apoiar os movimentos do campo em suas lutas, mas também poder adquirir parte dos alimentos que eles produzem, pois sabemos que grande parte dos agricultores ligados à Via Campesina cultivam alimentos saudáveis. Acho que o Programa Camponês surgiu para ajudar a construir esse caminho que liga povo da cidade com povo do campo."

Desse modo, divergindo das demais políticas públicas do país, o Programa Camponês foi inicialmente construído pelos camponeses e suas instituições, sendo posteriormente reivindicado, lutado e conquistado; surgiu de demandas reais e concretas de uma parcela da população historicamente excluída do orçamento público. Com crédito desburocratizado, o governo do RS disponibilizou, em parceria com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), o montante de 100 milhões de reais, o que beneficiou cerca de 8 mil famílias camponesas.

A camponesa e dirigente Estela recorda:

"Foi uma grande vitória do nosso movimento. A gente sempre teve muita dificuldade em lidar com as exigências dos bancos. Quando a gente vai tirar um empréstimo, eles nos pedem uma papelada que nos cansa, alguns dos nossos chegam a desistir. Cada dia é uma coisa diferente, ficamos troteando de nossas casas para o banco um grande tempo e às vezes assinamos papéis que liberam a cobrança de algumas taxas sem nos dar conta. Com o Programa Camponês foi diferente. O que a gente queria chegou em nossa propriedade depois das prosas na comunidade. Sem a gente precisar ir no banco. Isso facilitou bastante."

Os recursos financeiros foram utilizados principalmente para a criação de biofábricas de insumos (tecnologias socioterritoriais, alternativas ao pacote tecnológico do agronegócio: adubos petroquímicos e agrotóxicos), reestruturação das unidades de produção, processamento e agroindustrialização dos alimentos; além de investimentos na logística e distribuição que contribuíram diretamente em diferentes escalas e dimensões do território camponês (associações, cooperativas, comunidades e unidades familiares de produção).

Por possuir o caráter classista, o Programa Camponês fortaleceu e potencializou a classe camponesa e dos trabalhadores urbanos promovendo uma rede que conectou os movimentos socioterritoriais e sindicais. Proporcionou produção, industrialização e comercialização de alimentos saudáveis desde a semente até a mesa, garantindo emprego, alimentação saudável, qualidade de vida, preservação e restauração ambiental.

Com a alteração de governo no Rio Grande do Sul, houve uma incisiva mudança na política do estado: enquanto o governo democrático e popular do Tarso Genro buscava fortalecer a agricultura familiar e camponesa por meio de políticas públicas como o Programa Camponês, os governos neoliberais de José Ivo Sartori e Eduardo Leite priorizaram o agronegócio em detrimento da agricultura camponesa. Dessa forma, o resultado dessa mudança foi a redução dos recursos destinados às políticas públicas, incluindo o Programa Camponês.

Devido esses fatores, ao lembrar e comemorar os 10 anos da conquista desta política pública, torna-se imprescindível buscar, por meio da luta, sua retomada e ampliação na escala nacional. Um Programa Camponês para todos os agricultores camponeses/familiares do Brasil, com os objetivos de potencializar a criação de tecnologias camponesas, massificar a produção agroecológica, fortalecer e ampliar as associações e cooperativas do campesinato e preservar e restaurar os biomas, a fim de diminuir os efeitos das mudanças climáticas e fornecer alimentos saudáveis e acessíveis a toda classe trabalhadora, bem como à população que está em maior vulnerabilidade nas cidades brasileiras.

* Gerson Antonio Barbosa Borges é militante do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) e doutorando em Geografia pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Presidente Prudente.

** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Fonte: BdF Rio Grande do Sul

Edição: Marcelo Ferreira