Coluna

Alto funcionário da USP

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Eu tinha só um terno preto, com um único bolso não furado, onde eu guardava tudo o que precisava carregar: dinheiro e documentos - Unsplash
Todo mundo se assustou e começou a trabalhar

O Osvaldinho, meu colega do curso de Geografia, era apaixonado pela poesia de Fernando Pessoa. E acho que se inspirava muito no poeta para assumir sempre personalidades diferentes. 

Uma vez encontrei com ele vestido com uma batina de padre, dias depois ele andava agitando uma batuta de maestro como se estivesse dirigindo mentalmente uma orquestra imaginária...

Nessa época, eu trabalhava como técnico em contabilidade na Prefeitura e tinha que usar terno e gravata. Como ia do trabalho direto para a faculdade, chegava lá paramentado com essa roupa. 

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Eu tinha só um terno preto, com um único bolso não furado, onde eu guardava tudo o que precisava carregar: dinheiro e documentos. 

As camisas eram velhas e estropiadas e nenhuma dava para abotoar o colarinho. A gravata era toda ensebada, o nó foi dado quando a ganhei, e durou todo o tempo que trabalhei na prefeitura, três anos e meio. Quando pedi demissão, desfiz o nó da gravata, e a parte que estava dentro dele até tinha uma cor interessante que eu nem me lembrava, completamente diferente da que ficava exposta ao sol, toda desgastada e cor de cinza. 

Uma tarde, fugi do trabalho e fui para a Cidade Universitária, como sempre, de terno e gravata. 

Encontrei o Osvaldinho com um avental de professor. Essa roupa não era falsa: havia falta de professores de Geografia, e no segundo ano da faculdade ele já tinha conseguido umas salas para dar aulas num colégio estadual. 

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Ele estava indo à reitoria comprar um livro publicado pela Editora da USP, e fui com ele. Entramos no prédio da reitoria, mas em vez de irmos em direção à livraria, ele abriu uma porta no corredor e entrou falando sério. Eu atrás. Mostrou as pessoas que estavam na seção, falando bravo e gesticulando:

— Está vendo, doutor? Como lhe disse, ninguém trabalha aqui. Olha aí: uma fazendo tricô, uma fofocando no telefone e aquele casalzinho ali fofocando pessoalmente. Trabalhar mesmo, nada! Nada! Sei que o senhor que assume seu cargo agora vai tomar providências.

Todo mundo se assustou e começou a trabalhar. Saímos da sala e entramos na seguinte, fazendo a mesma coisa. Ele de professor e eu de “doutor”.

Acabamos com a alegria do pessoal numas dez salas ou mais.

 

*Mouzar Benedito é escritor, geógrafo e contador de causos. Leia outros textos

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Daniel Lamir