luta histórica

No Rastro das Lutas: movimento indígena na construção da democracia

Série de reportagens em parceria com a CESE traz papel dos movimentos sociais para democracia

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A nossa tarefa naquele período era de assegurar direitos, que pudesse ter reconhecimento naquilo que a gente é - Kamikia Kisedje/Apib
É por isso que a luta é constante: pelo direito de existir, pelo direito de viver

Os caminhos para defesa de direitos e da democracia quase sempre são longos e tortuosos. Cada passo dado, cada conquista e cada resistência envolve o trabalho de muita gente e por muitos anos. Os movimentos populares têm um papel fundamental nesse processo. Na série de reportagens que iniciamos agora, em parceria com a Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE), falaremos justamente sobre o papel dos movimentos sociais na defesa da democracia brasileira.

E começamos falando sobre o papel do movimento indígena no fortalecimento da democracia. “Ainda há muito desrespeito com a gente, apesar de tudo isso, dos tratados internacionais, as nossa lei [brasileiras], tem mecanismos legais, mas há também uma parede muito grande a ser enfrentada”, é assim que Chico Apurinã inicia essa conversa. Ele é membro da Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira, (Coiab), liderança histórica do povo Apurinã, compondo o movimento indígena desde 1985, com destacada participação nas mobilizações para a constituinte que aconteceria entre 1987 e 1988.

Cristiane Julião pertencente ao povo Pankararu, dos sertões de Pernambuco, no movimento indígena desde 2005, segue o diálogo afirmando que: “é por isso que a luta é constante: pelo direito de existir, pelo direito de viver”. Ela é mestre e doutoranda em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Também foi articuladora do Voz das Mulheres Indígenas, iniciativa implementada pela ONU Mulheres para o empoderamento e mobilização social.

Chico Apurinã destaca que o movimento indígena esteve presente nas mobilizações para a constituinte, entre 1987 e 1988, com o objetivo de garantir direitos mínimos. “A nossa tarefa naquele período era de assegurar direitos, que pudesse ter reconhecimento naquilo que a gente é”, afirma. Ele reconhece que a Constituição de 1988 não é a melhor possível, mas foi só a partir dali que o Estado brasileiro reconheceu direitos específicos dos povos indígenas.
 
Cristiane Pankararu, jovem liderança que dá seguimento ao rastro das lutas indígenas, concorda com Chico Apurinã que a Constituição atual, embora tenha sido um relevante avanço na garantia de direitos, ainda não é o ideal. E é preciso seguir lutando, inclusive, para que a efetivação dos direitos dos povos indígenas respeite suas cosmovisões e modos de vida.

“A luta começou pelo direito à terra e permanece pelo direito à terra. A demarcação territorial não é simplesmente a delimitação de um espaço físico. Ela tem muito mais questões agregadas, questões espirituais, de bens e recursos naturais, de continuidade de vida e aprendizado, de espaço sagrado, então, não é simplesmente delimitar um espaço físico. Por isso a luta é constante, pelo direito de existir, pelo direito de viver”, explica Cristiane.

Ela ressalta ainda que os direitos dos povos indígenas previstos na Constituição não são apenas aqueles dos artigos 231 e 232, que tratam especificamente dos povos originários brasileiros. “Se o registro de nascimento nos faz ser cidadãos [brasileiros], então também nós temos direitos sociais, civis, políticos, econômicos. Além de marcos internacionais, o Estado brasileiro precisa nos reconhecer também nesse lugar”, diz.

E afirma que a efetivação desses direitos em territórios indígenas precisa levar em consideração as cosmovisões e modos de vida específicos. A gente quer educação, mas não tem que ser essa educação robotizada, alienada. A gente quer uma educação que traga a nossa história. As nossas histórias de luta”, exemplifica. 

Embora a presença de direitos específicos dos povos originários na Constituição de 1988 seja uma importante vitória dos povos indígenas, Chico Apurinã ressalta que a luta desses povos por um país mais justo e em que haja respeito a todos não começa em 88. “ A luta não começa em 88, ela vem a partir de uma luta histórica, uma luta que permanece hoje. Acho que é isso que dá fortaleza, de a gente olhar pros nossos antepassados e olhar para o momento atual e planejar no futuro, acho que esse é um processo fundamental. A gente não esquece da luta dos antigos”, ressalta.

Nessa luta que segue sendo construída pelos povos originários pelo direito de existir à sua maneira, tanto Chico Apurinã quanto Cristiane Pankararu destacam o importante papel do acesso à educação formal. “Passamos a entender, em um certo período, que a educação era fundamental pra esse caminho. A educação foi fundamental nesse processo de encarar uma discussão com mais clareza, com mais propriedade na defesa dos direitos”, conta Chico.

Cristiane Pankararu finaliza lembrando que, nesse processo democrático e civilizatório, os povos indígenas, a despeito do preconceito sofrido, sempre demonstra em seu fazer a defesa e a valorização da vida. “Nesse processo democrático, civilizatório, a gente mostra que a selvageria não é nossa, a brutalidade não é nossa. A gente tá falando da vida, da valorização da vida, de qualquer espécie, inclusive, dessas pessoas que incitam a morte, a violência como um todo. É luta! Avançaremos!”.
 

Edição: Gabriela Amorim