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Racismo contra Vini Jr.: O mundo que não deixou o preto brilhar

Mundo, não só do futebol, tem se mobilizado frente a mais um ataque racista direcionado ao jogador brasileiro

Brasil de Fato | Recife (PE) |
Vini Jr. mostra ao árbitro um dos torcedores em Valência que continuou berrando ofensas racistas - Reprodução

Desde o último domingo (21), o mundo, não só do futebol, tem se mobilizado frente a mais um ataque racista direcionado a Vini Jr. O que diferencia esse de todos os outros sofridos é a forma escancarada com a qual o brasileiro foi tratado tanto dentro quanto fora das quatro linhas. Desde que estreou pelo Real Madrid – que para muitos é o maior clube de futebol do planeta – Vini vem sofrendo todo tipo de perseguição; antes mesmo de completar a maioridade, já sofria com apelidos e alcunhas proferidas pelos tidos especialistas da mídia esportiva brasileira, como no caso em que foi chamado de neguebinha (em referência ao atacante Guilherme Pinto, conhecido como Negueba) pelo humorista Lopes Maravilha. 

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Esse não foi o primeiro, tampouco o último ataque que o atacante viria a sofrer, mas ficou especialmente marcado pelo fato de seu talento, ainda com 16 anos, já estar sendo colocado à prova, como se já tivesse que ser um “homem feito” sem sequer ter a chance de crescer primeiro, algo bastante comum quando pensamos o processo de subjetivação e socialização de homens negros, continuamente vistos e encerrados a partir de uma antecipação de sua fase adulta como ferramenta da branquitude de legitimar discursos anti-negro para com jovens periféricos. 

Nos anos que seguiram, Vini foi perseguido dentro de campo, apanhou como poucos jogadores na história do futebol, batendo recordes de faltas sofridas na exata medida em que seu talento era questionado; diziam que não sabia finalizar, que não tinha boa tomada de decisão, que era imaturo e, num dos episódios mais icônicos da recente história do futebol, chegou a ser acusado por seus companheiros de clube de “jogar contra a gente” (nas palavras de Karin Benzema para Mendy, durante o intervalo da partida contra o Borussia Monchengladbach). Seguia sendo questionado, antecipado e sua resposta? Sempre o silêncio das palavras que só se faziam em forma através do futebol. 

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Vinicius Junior desabafou nas redes sociais após novo episódio de racismo no futebol espanhol / Reprodução / Instagram

A essa altura, tinha apenas 20 anos completos, e, nas costas, a responsabilidade de assumir a lacuna deixada pelo maior ídolo da história merengue, Cristiano Ronaldo. Ele não chegou para tal posto, mas acabou por assumir a função de correr as pontas para distribuir o jogo ofensivo que o fez se firmar no time titular pela sua principal marca futebolística, que além da habilidade com a bola nos pés, era exatamente sua capacidade se seguir em frente e tentar de novo. Um jovem negro que, mesmo sem tecer uma única palavra sobre se realizava no mundo da maneira como comumente os negros brasileiros aprenderam a sobreviver, com insistência e resistência para continuar existindo. 

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O auge dos ataques, pelo menos até então, se deu no clássico contra o Atlético de Madrid, onde o que se viu nas imediações tanto do estádio quanto da cidade como um todo, foi de uma verdadeira perseguição contra o brasileiro. Faixas espalhadas, cânticos racistas e um boneco com a sua já lendária camisa #20, enforcado num viaduto, com os dizeres Madri odeia o Real, e o Real, a essa altura, era Vinicius Júnior. O apaixonado pelo jogo, que meses antes havia sido perseguido por conta de sua irreverência e alegria em campo a ponto de tentarem o impedir de dançar nas suas comemorações, gerando uma mobilização em torno do #bailavini, quebrou o silêncio e falou que seguiria bailando e fazendo o que sabe de melhor: jugar el juego.

Por mais que seja um dentre muitos negros no elenco madridista, Vinícius Júnior encarna tudo aquilo que o racista não consegue enxergar como potencialmente possível de um homem negro possuir: talento, atitude e, principalmente, voz ativa para bater de frente com qualquer que seja a violência de ordem racial que sofra. Rodada após rodada ele é caçado dentro e fora de campo, como se fosse um negro fugido do engenho que a todo momento é triturado em palavras, cânticos e até mesmo violência de seus colegas de trabalho dentro das quatro linhas. 

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Sua reação? Seguir exercendo seu talento como sempre fez, bailando e sendo malvado, do jeito que as ruas de São Gonçalo lhe ensinaram a ser; mas a reação à sua reação não tem sido consoante, muito pelo contrário. Segue apanhando em campo, e se reclama da perseguição, é ele quem geralmente é punido. É no mínimo curioso que na La Liga ele possua uma expulsão e quinze cartões amarelos, enquanto que em competições internacionais só recebeu um único cartão amarelo – por falta tática, vale ressaltar. 

É curioso perceber como o fenômeno do racismo para com Vini nos relembra duas questões que por muitas vezes se esquece, especialmente do lado de cá do Atlântico. A primeira e, talvez, mais importante, é de que por mais que a Europa se venda como o centro da civilidade do mundo, uma auto-proclamada humanidade perfeita, esta é, na verdade, um antro de diferença, violência e, principalmente, racismo; Vini me recorda o jovem Fanon que em seu contato com o mundo francófono descobriu, ainda cedo, que por mais que tentasse se fazer francês como os franceses ele jamais o seria por ser uma categoria inferior de humano aos olhos dos europeus, ele era Preto. 

As incursões contínuas contra o jovem jogador brasileiro só mostram que a imagem de civilizada que o continente do qual partiram as caravelas que escravizaram os negros africanos não se sustenta quando passada pelo crivo da realidade. A Europa é racista. O país de Franco e Salazar é, sobretudo, um produto do fascismo em sua faceta de radicalização no discurso anti-negro, processo este que não é exclusividade espanhola. Que se ressalte, no plano global, como bem acentua Fanon, o racismo não é exclusividade dos europeus ou dos americanos, mas um câncer que estrutura a sociedade capitalista. 

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E o é por conta da necessidade de diferenciação com a qual se fundou para legitimar o empreendimento colonial: a invenção da raça. A segunda questão é justamente da ordem da invenção de um diferenciador de ordem epidérmica que justificava a interdição do corpo negro como uma mercadoria, inumanizada e impossível de ser vista como um potencial ser humano. A raça funcionou como operador diferenciador hierarquizante, que acentuava no branco uma humanidade na exata medida que o negro era relegado a um papel de mercadoria passível de todo tipo de violência. A atualidade ferida colonial, como acentua Alexandro de Jesus, se faz presente na medida em que os corpos negros seguem sendo agenciados a partir da consolidação da raça como categoria ontológica mediante formalização da diferenciação gerada pelo colonialismo. 


Jogador mostrou a juiz, durante partida, alguns dos racistas que estavam nas arquibancadas / Reprodução

Ao negar o direito de resposta de Vini, inclusive acusando-o de “provocar o racismo” que ele mesmo sofre por reclamar dos ataques, que é o mesmo que dizer que um jovem negro baleado pela polícia desejou o tiro por conta de sua pele, relegamos o jovem jogador a uma posição de não só inumano, como também de causador dos seus próprios males. Mais uma ferida colonial ainda aberta, o lugar do negro como causador da própria desgraça, como se este sofresse a interdição em suplício, ao invés de ser uma consequência da forma com a qual a sociedade está estruturada numa fundação que se sustenta na diferenciação.

Sinto que estamos perdendo o futebol para a extrema direita. Vini é, sobretudo, o nosso bastião de luta no campo dialógico da representação em evidência midiática; compreendo que vários de nós morrem continuamente nas ruas sem câmeras pra filmarem seu sofrimento. Mas se nem mesmo o preto rico tá incólume, o que dirá de nós?

Salvas poucas exceções, como a exemplo de Kaká (último brasileiro a ser eleito melhor do mundo no futebol masculino) e Alisson (goleiro eleito pela FIFA como melhor arqueiro do mundo), todos os brasileiros e brasileiras que alcançaram o topo do futebol são negros. O Rei e a Rainha do futebol, Pelé e Marta, respectivamente, são negros. Didi, Mané Garrincha, Romário, Ronaldo, Ronaldinho, Neymar. E agora, Vinícius Júnior.  O futebol brasileiro sempre se expressou em glória pela cor negra, mas teima em sublimar de sua história o valor daqueles que levantaram não só os prédios como carregam em suas costas o peso das carroças que nos fizeram carregar sob o julgo do chicote. 

Não tem espaço para “mas”, Vinícius José Paixão de Oliveira Júnior, um apaixonado por futebol e por bailar, que não é mais um dos juniores do mundo do futebol, sofre racismo sim. Deixa o moleque jogar. Tamo junto Vini! #bailavini

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* Guilbert é Psicólogo Clínico, psicanalista e pesquisador do PPGFil – UFPE

** Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato Pernambuco.

Fonte: BdF Pernambuco

Edição: Vanessa Gonzaga