Coluna

Além de uma 'nova onda progressista': desafios e oportunidades para os povos de Nuestra América

Em comum nessa nova "onda rosa" a dificuldade de governos de esquerda aplicarem suas propostas eleitorais - Reprodução
Podemos alcançar melhorias nas condições de vida e amadurecer projetos econômicos alternativos

Por Marcelo Depieri e Laura Capote*

 

Muito se tem falado de uma “nova onda progressista” na região da América Latina e do Caribe. É certo que nos últimos anos, governos alinhados ao espectro político da esquerda ascenderam ao poder ou compuseram chapas presidenciais que se saíram vencedoras. 

Os casos exemplares que destacamos aqui são os de Andrés Manuel López Obrador (AMLO) no México, em 2018, Alberto Fernandéz e Cristina Kirschner na Argentina, em 2019, Luis Arce na Bolívia, em 2020, a vitória de Pedro Castilho no Peru - apesar de não estar mais no poder -, em 2021, era associada para a consolidação da ideia de uma “nova onda progressista”, Gabriel Bóric no Chile, em 2021, Gustavo Petro na Colômbia, em 2022 e Luís Inácio Lula da Silva no Brasil, em 2022.

Todas essas vitórias se juntaram a dois processos revolucionários na região, Cuba e Venezuela.

O problema de se utilizar a expressão “nova onda progressista” é que, em primeiro lugar, passa-se uma ideia de que há uma homogeneidade desses governos, abstraindo suas peculiaridades. Em segundo lugar, pode dar a falsa impressão de que os problemas podem ser resolvidos facilmente, bastando que os governos eleitos coloquem em prática suas propostas, sem levar em conta as exigências das classes dominantes locais e as pressões do contexto internacional e das forças imperialistas que incidem nas decisões governamentais.

Por fim, em terceiro lugar, homogeneíza-se a região latino-americana e caribenha, ocultando que há governos do espectro político da direita como, por exemplo, Guillermo Lasso no Equador, Lacalle Pou no Uruguai e Naybi Bukelele em El Salvador. 

No México, o presidente AMLO, do partido de esquerda Morena, assumiu o poder em 2018, depois de décadas de governos declaradamente neoliberais. O governo de AMLO, a partir de um viés de soberania nacional, vem dando bastante atenção à questão energética do país e nacionalizou o lítio.

No plano político, procura aprofundar a cultura democrática ao utilizar o referendum para aprovação de algumas medidas e, para manter sua governabilidade, faz alianças com partidos menores que traz certa estabilidade política. Uma de suas primeiras falas ao assumir o poder, AMLO, havia “decretado” o fim da era neoliberal no México, mas em termos de política econômica, em 2019, apresentou seu plano de acordo com os princípios da austeridade, com o compromisso da disciplina fiscal e financeira.  

O governo de Alberto Fernandéz na Argentina, talvez seja o que mais se aproxime do espectro do centro político dos mencionados acima. Pressionado pela situação econômica herdada do período anterior de Maurício Macri, o governo argentino encontra muitas dificuldades ao enfrentar problemas como o desemprego, a inflação e a miséria que assolam o país. A vice-presidente Cristina Kirchner representa os grupos populares, que apoiaram a candidatura Fernández-Kirchner.

Os diferentes posicionamentos, principalmente na área econômica, fizeram o presidente e sua vice entrarem em conflito ao longo do governo. Cristina já fez duras críticas à política econômica neoliberal adotada pelo governo. Em 2022, novos tensionamentos surgiram com a realização novo acordo financeiro junto ao FMI. A crise do governo Fernández se manifesta pela não definição de quem será o candidato à presidência nas eleições de outubro de 2023, enquanto representantes da direita e da extrema direita já se colocaram como pré-candidatos.

Luis Arce assumiu o governo boliviano em novembro de 2020, um ano após o golpe em Evo Morales. Nesse período, a Bolívia estava sendo governada pela golpista Jeanine Añez. O governo de Arce vem se caracterizando pelas medidas de recuperação econômica – fortalecendo os acordos energéticos e comerciais com vizinhos sul-americanos – e de justiça, para aqueles que participaram do golpe e dos massacres.

No plano político, o governo enfrenta duas grandes dificuldades: a primeira são as constantes ameaças dos setores golpistas de Santa Cruz, os mesmos que organizaram o golpe de 2019; a segunda é a tensão política interna entre diferentes setores do partido Movimento ao Socialismo (MAS). Em termos regionais, é importante destacar que a Bolívia continua sendo uma das principais forças motrizes do projeto Aliança Bolivariana para os Povos da Nuestra América (TCP) da ALBA e tem estado na vanguarda da defesa dos processos democráticos em nível regional.

O governo de Pedro Castillo nos permitiu ver uma radiografia da instável política peruana. Mesmo antes da vitória eleitoral de Castilho, já havia movimentos antidemocráticos tentando impedir sua chegada ao poder. O então presidente representava amplos setores da sociedade peruana que sempre foram marginalizados.

Embora Pedro Castilho não tenha conseguido colocar em prática a maioria de suas promessas de campanha, - inicialmente comprometido com a convocação de uma Assembleia Constituinte, que depois deixou de lado -, ele avançou em um elemento central da estrutura histórica desigual do Peru ao implementar a Segunda Reforma Agrária, que buscava garantir a segurança alimentar do país e enfrentar interesses dos grandes proprietários de terras. Foi derrubado por um golpe parlamentar realizado pela classe política peruana, herdeira do fujimorismo.

O governo de Gabriel Bóric é bastante exemplar no “modelo” de governos progressistas que chegam ao poder e possuem uma enorme dificuldade de colocar em prática medidas de seu projeto político. A mais significativa foi a derrota, em refendo, da proposta de uma nova constituição no Chile, o que manteve o mesmo arcabouço jurídico do período da ditadura de Pinochet. Bóric é um representante político de esquerda, mas, em alguns temas importantes, apresenta posições similares ao que é defendido pelos EUA, como por exemplo ao se referir aos governos da Venezuela, Cuba e Nicarágua, como ditaduras.

Procura apostar suas fichas em avanços nos direitos civis, mas até nesse tema encontra resistências ao não ter conseguido aprovação no Congresso da despenalização do aborto. No campo nacionalista, anunciou um projeto, em abril de 2023, para a nacionalização do lítio. Nas eleições de maio de 2023, para o Conselho Constitucional, a direita e a extrema direita conseguiram maioria o que dá poder de veto para a formulação de propostas para uma nova constituição. Nesse cenário, as possibilidades de avanço de medidas antineoliberais estão longe de estarem em um horizonte próximo.

Por sua vez, o triunfo de Gustavo Petro na Colômbia trouxe esperança e mudou o cenário político colombiano, que estava acostumado a ser governado por setores de direita mais alinhados com a política externa dos EUA. Em nível regional, Petro tenta colocar em prática o projeto "Colômbia: potência mundial da vida", demonstrando que é possível aumentar o intercâmbio energético e comercial do país com seus vizinhos a partir de uma perspectiva ambientalmente responsável.

Ele também questionou amplamente nas arenas internacionais a política de guerra às drogas que os Estados Unidos continuam a adotar na região. Internamente, as áreas mais difíceis têm sido a consolidação de algumas de suas principais propostas de governo, como a Reforma da Saúde e, em particular, o projeto do que ele chamou de Paz Total, que começou em 2023 com um cessar-fogo unilateral por parte do Estado em relação aos grupos irregulares, mas que terminou em 22 de maio após inúmeras ações de grupos armados, tornando o processo de consolidação de um acordo político com esses grupos ainda mais difícil. 

Lula chegou ao poder pela terceira vez, a partir de uma frente ampla para derrotar nas urnas Bolsonaro e a extrema direita. O conjunto de forças que levou à vitória de Lula no segundo turno contava com partidos e personalidades à esquerda do Partido dos Trabalhadores, do centro e até da direita.

Esse conjunto de forças tem influência nas medidas que são propostas e no que é aprovado. A política fiscal do governo é um exemplo. Apesar do avanço em relação à política anterior, a do Teto dos Gastos Públicos, ainda é insuficiente para as reais demandas sociais e tem um caráter pró mercado ao instituir metas rígidas do controle das contas públicas e dificultar investimentos em áreas sociais.

Por outro lado, o governo vem conseguindo avançar em algumas medidas importantes de cunho social como a valorização real do salário mínimo e a garantia do pagamento do Bolsa Família. Em termos de projeto nacionalista, o governo Lula alterou a política de preços da Petrobrás, reativando o papel social da empresa ao não ficar totalmente atrelado às oscilações do barril do petróleo e do câmbio. 

Os governos da região da América Latina e do Caribe apresentam uma clara heterogeneidade, até mesmo entre os progressistas, que ascenderam ao poder nos últimos anos. As particularidades dos problemas enfrentados se sobressaem à ideia de uma “nova onda progressista” na região.

De denominador comum, temos que nenhum governo conseguiu se desvencilhar das amarras estruturais das políticas econômicas neoliberais, o que os engessa para colocar em prática políticas que visem um projeto popular de desenvolvimento independente. Por outro lado, eles têm outro fator em comum, esse mais esperançoso: o fato de terem chegado ao poder por um longo processo de lutas de seus povos.

Apesar de estarmos em condições diferentes da primeira década do século 21 temos condições de alcançar melhorias nas condições de vida de nossos povos e amadurecer projetos econômicos alternativos, por meio de mobilizações sociais permanentes, em grande escala.

* Marcelo Depieri é professor de economia da Unip e pesquisador do Observatório de Conjuntura da América Latina e do Caribe (OBSAL), do Instituto Tricontinental. Laura Capote é integrante da Secretaria Continental da ALBA Movimentos e pesquisadora do do OBSAL, do Instituto Tricontinental. 

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Rodrigo Durão Coelho