Tensão no Pará

Após ter cacique baleado, povo Tembé denuncia campanha criminalizadora da Brasil BioFuels

A gigante de energia chama indígenas de “invasores”; “como pode alguém invadir o que é seu?”, rebate manifesto dos Tembé

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Depois de internação e cirurgia no Hospital Metropolitano de Urgência e Emergência próximo a Belém (PA), cacique Lúcio volta para casa - Reprodução

Com um curativo na mandíbula, um boné e um cocar de penas verdes na cabeça, o cacique Lúcio Gusmão, do povo Tembé, desceu do helicóptero na Terra Indígena (TI) Turé-Mariquita, no Pará. Abraçando um por um os indígenas que ali se aglomeravam, a liderança comemorava um retorno para casa que, para alguns, poderia ser chamado de improvável.

No último 14 de maio, o cacique sofreu um atentado quando tentava desatolar o carro. De uma moto com dois homens encapuzados, um tiro lhe acertou o rosto. Mas ele sobreviveu. 

O cacique Lúcio é uma das lideranças que atuam na defesa dos territórios das 16 aldeias indígenas, os seis quilombos da Associação Amarqualta e as comunidades ribeirinhas que se veem sufocadas pela monocultura de dendê para a produção de biodiesel. O empreendimento chegou na região em 2009 com a Biopalma Amazônia que, desde 2020, foi comprada pela empresa Brasil Biofuels (BBF). A gigante do agronegócio na região Norte é a maior produtora de óleo de palma da América Latina.  

No último 17 de abril, o Ministério Público do Estado do Pará pediu a prisão do dono da BBF, Eduardo Schimmelpfeng da Costa Coelho, e do chefe de segurança da empresa, Walter Ferrari, acusados de tortura de 11 ribeirinhos da região. Pouco depois do atentado ao cacique Tembé, o Ministério Público Federal (MPF) caracterizou o episódio como “mais um capítulo da série de violações” que as comunidades vêm sofrendo desde que o “monocultivo do dendê acirrou os conflitos socioambientais na região”.  

Um suspeito de ser o mandante foi preso dois dias após o ataque. De acordo com declaração à imprensa dada pelo delegado-geral da Polícia Civil, Walter Rezende, o homem detido é conhecido como “Passarinho”, e teria tido uma discussão com o cacique, por conta de a liderança tentar repreendê-lo por estimular o tráfico de drogas na aldeia.  

Uma indígena Tembé ouvida pelo Brasil de Fato em condição de anonimato diz que a comunidade não está satisfeita e tampouco entende que o caso foi elucidado. “Houve uma encenação de toda a situação para dizer assim ‘o Estado fez, a polícia fez e tudo está resolvido’. Mas nada está resolvido”. Questionada sobre quem consideram estar por trás do atentado, ela afirma que não é possível afirmar. “Só que de fato as pessoas que fizeram não estão presas”, diz. 

Feita a prisão, a BBF divulgou na imprensa uma nota em que “enaltece o trabalho das equipes da Polícia Civil, pelo rápido esclarecimento” e afirma que a região de Tomé Açu e Acará está dominada por “invasores indígenas e o crime organizado”. Nesta terça-feira (6), o povo Tembé lançou um manifesto contra o que diz ser “calúnias do grupo BBF e seu modelo cínico de sustentabilidade”.  

“Como invadir o que é seu?” 

“Em nenhum momento nós indígenas acusamos a BBF ou qualquer outra pessoa ou instituição de ter cometido o crime”, diz a carta assinada pela Associação Indígena Tembé de Tomé-Açú e pela Associação Indígena Tembé do Vale do Acará, ressaltando que estão em luta pela retomada de territórios ancestrais “ocupados atualmente pela empresa”.  

No entanto, afirmam, “não podemos esquecer que sempre que tivemos nossos direitos violados, todas as vezes que fomos humilhados e ameaçados por pessoas armadas, o fomos pela BBF e pelas empresas de segurança que prestam serviços à indústria do dendê”. 

Em sua nota, a BBF acusa “indivíduos” de se beneficiarem do “status de indígenas” para invadir áreas da companhia, “colher e comercializar o dendê plantado pela empresa”,  e “utilizar veículos de imprensa, ONGs e redes sociais para se colocarem como vítimas”.  

No manifesto, o povo Tembé ressalta que depois de sofrerem o ataque armado a uma de suas lideranças, “as ilações da BBF” os deixam “em uma situação ainda maior de vulnerabilidade porque desperta a revolta popular contra nós indígenas”. Nas aldeias, afirmou outro indígena ouvido pela reportagem, o clima é de tensão e medo. “A única defesa que a gente tem dentro da comunidade é o arco e flecha, mais nada. Mais nada”, ressalta. 

“Desde que invadiram nossas áreas com dendê, trazido como política de desenvolvimento pelo governo Lula, em 2010, deixamos de ter paz” diz a carta dos indígenas. “Vimos várias estradas cortarem nosso território, as mesmas estradas que hoje favorecem o fluxo de drogas na região”, descrevem.  

“Inclusive, talvez seja a hora apropriada para convidarmos o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, reeleito também com nossos votos”, propõem os Tembé, “para que venha ver de perto as consequências da monocultura do dendê na nossa região e o quanto vivemos impactados por uma indústria que prega, cinicamente, a sustentabilidade”. 

“Como falar em sustentabilidade se nós, guardiões das florestas, somos tratados como marginais em nossa própria casa? Como pensar em descarbonização, redução da pegada de carbono, se nós respiramos o ar infecto de agrotóxicos?”, questiona o manifesto dos indígenas. E sintetiza, em momento em que o julgamento do marco temporal toma o debate público no país: “A BBF nos chama de invasores, mas como pode alguém invadir o que é seu?” 

Edição: Rodrigo Durão Coelho