Dia dos Oceanos

O que a exploração de petróleo na Foz do Amazonas tem a ver com a saúde dos mares do planeta?

Rio Amazonas despeja 200 milhões de litro de água doce no mar, o que representa 17% do total mundial

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |

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Do bioma à pesca dos povos tradicionais: exploração de petróleo na região precisa de mais estudos, debates e precauções
Do bioma à pesca dos povos tradicionais: exploração de petróleo na região precisa de mais estudos, debates e precauções - Fotos: Mikaell Carvalho/Repórter Brasil

Este 8 de junho, Dia Mundial dos Oceanos, chega logo após a celebração de um acordo histórico entre países da Organização das Nações Unidas (ONU), em março. O pacto prevê a criação de zonas marítimas protegidas, que até 2030 devem chegar a 30% do total da área oceânica do planeta. 

A promessa internacional representa um desafio considerável e vai exigir vontade política, articulação e muitas mudanças. Segundo o Greenpeace, será preciso colocar 11 milhões de quilômetros quadrados sob proteção para que a meta seja atingida. 

No Brasil, a data vem acompanhada de um debate que tem causado polêmica dentro do próprio governo federal: a possibilidade de exploração petróleo na bacia da Foz do Amazonas. A região é reconhecida internacionalmente como uma área de grande importância ambiental para o planeta.

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A influência do ecossistema para a vida marítima vai muito além do território brasileiro. Por segundo, o rio despeja 200 milhões de litro de água doce no mar. Isso representa 17% do total mundial de água continental e sedimentos em suspensão nos oceanos.  

A Costa Amazônica abriga 80% dos manguezais do Brasil, essenciais para a biodiversidade. Os recifes da região são habitat de mais de 90 espécies de peixes que sustentam as economias locais. Mais que isso, os ecossistemas contribuem com o balanço de gás carbônico, imprescindível para frear o aquecimento global.  

Em entrevista ao Brasil de Fato, o biológo e especialista em biologia marinha Vinicius Nora afirma que é preciso repenser o modelo de desenvolvimento do Brasil. Ele atua como gerente de Clima e Oceanos no Instituto Internacional Arayara e é mestre em ecologia.

Segundo Nora, o debate sobre a exploração na Foz do Amazonas não pode ser resumido a um único ponto. "A própria Petrobras tem outros cinco blocos nessa região e há outras empresas, que também estão interessadas, com licenciamento andando. Algumas pessoas quererem reduzir a discussão a um ponto fixo. Estamos falando o maior estuário do mundo. A costa amazônica não é um lugar qualquer", alerta.

Milhões de pessoas e uma infinidade de espécies da flora e da fauna dependem da foz do Rio Amazonas e do Oceano Atlântico nesta faixa equatorial. O encontro entre os dois acontece em território brasileiro, mas o resultado desse encontro influencia territórios que vão até o Caribe.

Uma descoberta de 2016 ampliou ainda mais o peso que a conservação da bacia representa para o mundo. Cientistas encontraram recifes com mais de mil quilômetros de extensão no local, em profundidades que variam de 10 a 120 metros. 

São ecossistemas com características muito próprias, formados por meio de processos diferentes dos observados em outras formações semelhantes. Neles estão corais, esponjas, algas e outras espécies marinhas. Muitas delas ainda pouco estudadas.

"É preciso considerar que não se trata apenas de um bloco de petróleo, pois existem 328 blocos planejados entre oferta, estudo e concessão nessa região. Precisamos falar além da pluma que atinge outros países e considerar os impactos sinérgicos e cumulativos, ou seja, os impactos que se acumulam devido a vários efeitos e que podem poluir e afetar a região de fato", pontua Vinicius Nora. 

Confira a entrevista completa a seguir.

Brasil de Fato: Por que e como a exploração de petróleo na Foz do Amazonas pode impactar águas oceânicas não só no Brasil, mas também de outros lugares do planeta?

Vinicius Nora: Vou tentar dividir a minha resposta em duas partes: o ponto de vista socioambiental e o ponto de vista econômico, porque tem uma perspectiva econômica de definição de desenvolvimento. Qual é o desenvolvimento que queremos para o nosso país?

Do ponto de vista socioambiental, a costa amazônica - além do ponto específico onde querem reduzir a discussão do petróleo na foz - é responsável por 80% da cobertura de manguezais do país. Estão divididos entre os estados do Amapá, Pará e Maranhão. Temos também o segundo maior conjunto de recifes do Brasil, que são os recifes amazônicos. Eles têm uma característica única, ainda pouco conhecida pela ciência, com inúmeras lacunas de conhecimento.

Além da questão ecossistêmica, também temos uma perspectiva social e econômica muito forte. Pará e Maranhão, em 2010, quando ainda tínhamos estatística pesqueira nacional, configuraram entre os cinco maiores produtores de pescado do país, então contribuem para a economia do Brasil de forma muito significativa.

São pescarias de pargo, pescada amarela, pesca e cata de caranguejo e camarão. O Maranhão tem um dos maiores bancos camaroeiros do Brasil. Então, você pode, no sudeste, no sul, no centro-oeste estar consumindo pescados dessa região.

Há um complexo social muito importante, com doze reservas extrativistas no litoral do Pará, outras quatro no Maranhão. Se esticarmos até o Delta do Parnaíba, que já deixa de ser costa amazônica, contamos outras cinco. Você tem estações ecológicas, áreas marinhas protegidas, como Área de Proteção do Marajó, três terras indígenas vinculadas à região do Oiapoque, o Parque Nacional do Cabo Orange.

Somente nas reservas extrativistas do Pará são 66 mil famílias que dependem da cata do caranguejo, fazem o extrativismo do açaí. Estamos falando de um lugar muito sensível dos pontos de vista social, ambiental e econômico.

Quando coloco a perspectiva econômica, coloco também uma perspectiva de longo prazo. A discussão tomou corpo e saiu da negativa de um único licenciamento que deveria se resumir a isso. Mas não, hoje estamos discutindo perspectivas de transição energética, que desenvolvimento queremos para o Brasil, legislações que vem sendo questionadas. A discussão da Foz do Amazonas vai ajudar a nos pautar para entender qual é o futuro que queremos para o nosso desenvolvimento energético e econômico. 

Há alertas de ambientalistas e organizações que apontam que as consequências de um eventual acidente na área chegariam até as águas Caribe, por exemplo. O que podemos falar sobre esses possíveis impactos?

A modelagem de dispersão de óleo é o estudo que mede como o óleo pode se comportar no caso de um vazamento. O primeiro estudo apresentado, originário de uma empresa que comprou antes da Petrobras, a BP, já mostrava fragilidades. Ele foi refeito após considerações do Ibama, continuou com essas fragilidades, foi aprovado com ressalvas e a Petrobras entregou outro estudo, que também apresenta fragilidades.

Mesmo com essas fragilidades, o tamanho da pluma de óleo que pode se formar é enorme. O Estudo de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/Rima) entregue pela Petrobras não mostra o impacto na costa do Brasil. No entanto, essa pluma é tão grande que atinge a costa da Guiana, Guiana Francesa, Suriname, entre outros países, isso em uma perspectiva de algumas dezenas de horas.

Isso pode ocorrer de diferentes formas, porque é uma modelagem, um sistema matemático desenvolvido para dar direcionamento e ajudar a definir as áreas de influência nas quais o empreendimento deveria fazer planos de comunicação, programas de proteção da fauna, entre outras questões relacionadas ao licenciamento.

A modelagem não mostra o toque na costa do Brasil. Coincidentemente, por algum acaso, não toca justamente nos ecossistemas mais frágeis da região. É interessante notar que professores de diferentes instituições mostram e corroboram as fragilidades, mostrando que é impossível que o óleo não toque na costa. Até porque, a característica de um estuário é justamente a troca entre sistemas de água doce e salgada, nesse casos, os manguezais e o mar.

Então, por mais que o modelo não mostre o toque na costa - o que já foi demonstrado de várias maneiras ser algo frágil de se afirmar -  ele não deveria deixar de considerar o toque na costa, que é justamente a área mais sensível de se mitigar. 

O próprio Ministério do Meio Ambiente e o Ministério de Minas e Energia lançaram, há dois anos, um atlas que mostra os ecossistemas mais sensíveis ao óleo. Justamente essa região que possui 80% dos manguezais do Brasil. Isso pode afetar a cata do caranguejo, o extrativismo do açaí, a pesca do pargo e da pescada amarela, além dos complexos portuários e outros negócios relacionados à região.

Portanto, é preciso considerar que não se trata apenas de um bloco de petróleo, pois existem 328 blocos planejados entre oferta, estudo e concessão nessa região. Precisamos falar além da pluma que atinge outros países e considerar os impactos sinérgicos e cumulativos, ou seja, os impactos que se acumulam devido a vários efeitos e que podem poluir e afetar a região de fato.

Pessoas que defendem a exploração de petróleo na região dizem que o risco é mínimo, porque a área a ser explorada fica distante da costa. Essas afirmações procedem de alguma forma? 

Não. A preocupação tem que se existir e precisamos fazer um debate transparente com as comunidades e cidades que moram nesse litoral, porque as vidas que ali existem vão mudar com a chegada desses empreendimentos. 

Não se trata só de pesquisa, entre aspas, sobre o petróleo. Não se trata só de um único bloco para saber se tem petróleo. Quem for ao site da Agência Nacional do Petróleo hoje vai achar as diversas regiões. Se você olhar a bacia da Foz do Amazonas, Pará, Maranhão, Barreirinhas, que são as bacias que tem nessa região, você vai encontrar o número de blocos de petróleo prontos para oferta.

Eles estão permanentemente disponíveis para o setor de petróleo comprar. Esse setor está esperando justamente um precedente, uma descoberta. Há também outros blocos em estudo, que têm probabilidade de entrar em oferta, aumentando assim, a depender da demanda, a sensibilidade do lugar.

Sobre os estudos que pediram para ser refeitos, eles têm tiveram muito tempo. É um licenciamento que tem cerca de dez anos. Até o rito do licenciamento já foge da normalidade. Tiveram inúmeras chances de revisar os documentos e nada foi feito.

A própria Petrobras tem outros cinco blocos nessa região e há outras empresas na região, que também estão interessadas, estão com licenciamento andando. Algumas pessoas quererem reduzir a discussão a um ponto fixo. Estamos falando o maior estuário do mundo. A costa amazônica não é um lugar qualquer.

Ela não pode ser definida como um ponto, que fica a tantos quilômetros de algum lugar. Estamos falando de um estuário que muda com a frequência das chuvas,  que tem sua sazonalidade. As áreas de pesca, mesmo que pouco, também têm uma dinâmica de mudança. Toda a região sofre.

Os mangues têmuma dinâmica natural. É um ecossistema vivo, é um complexo de ecossistemas totalmente vivo. Não podemos definir essa discussão, reduzir, simplificar a um ponto fixo. Por exemplo,  há a previsão de aumento de 3000% do tráfegor aéreo sobre as terras indígenas da região. Isso com um único bloco. 

Os mapas do Ministério de Minas e Energia e da Petrobras mostram apenas os blocos que a Petrobras trouxe. Não mostram os blocos que estão em oferta ou em estudo, justamente os que vão provocar a corrida depois que um bloco achar, se de fato houve, petróleo viável.

Tende a aumentar o tráfego aéreo, como falei. Tende a aumentar o tráfego de embarcações de apoio entre Belém e os pontos dos blocos de petróleo, causando acidentes que inclusive estão previstos dentro do EIA/Rima da Petrobras e que vão desde danos a espécies ameaçados, como baleias e tartarugas a danos a pescaria local.

São coisas previstas, mas não vemos sendo falado. Estão tentando reduzir a um único bloco, em uma distância estática, como se aquilo não fosse mudar. É preciso transparecer esse debate. As populações indígenas, pescadores tradicionais reclamam de terem sido pouco ouvidas. As pessoas do território têm dúvidas. Uma hora é uma empresa, depois outra. Uma hora é um bloco, depois cinco, 328.

Esse debate precisa ser transparecido para as comunidades, estudos mais profundos precisam ser feitos. Por isso recomendamos a avaliação ambiental de área sedimentar. Que é um estudo que tende a trazer um olhar mais integrado para o impacto e também resguardar, inclusive, o empreendedor. Todo mundo sai ganhando. 

Chegamos a 2023, neste Dia Mundial dos Oceanos, com o compromisso firmado entre países na ONU para que 30% das águas marítimas se tornem área de proteção até 2030. Nesse contexto, o Brasil precisa pretar contas ao mundo sobre a possibilidade de exploração de petróleo na Foz do Amazonas? 

Eu acho que vai além disso. O Brasil tem muito potencial para ser o exemplo. Para fazer acordos, arranjos institucionais, cooperação entre países que possam viabilizar outros formatos de desenvolvimento. A conversa saiu de um bloco para exploração e foi para o debate sobre que tipo de país e que tipo de desenvolvimento queremos daqui pra frente. É muito bom termos espaço para  discutir isso.

O Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, maior Painel de cientistas sobre o clima desde  a década de 1980, afirma que precisamos diminui globalmente 43% dos gases de efeito estufa até 2030 e que para isso não deveríamos abrir nem um bloco de petróleo a mais. Um aumento de 1,5° na temperatura média global pode significar 70 a 90% de mortalidade dos corais do mundo. Não é trivial.

Em relação as áreas marinhas, estamos em 26% das áreas marinhas protegidas do Brasil. Mas a nossa efetividade de gestão está longe de ser boa. Temos unidades de conservação sem plano de gestão, sem plano de uso público, sem plano de manejo.

Temos visto agora, depois de 6 anos, um movimento de tentar ajustar isso. É um bom momento para o Brasil olhar para outras oportunidades. Então, de fato, essa discussão nos leva para qual futuro de país nós queremos.

A Petrobras está com 83% do portfólio dela de investimentos em petróleo e gás ainda. Por que estamos apostando em energias de matriz fóssil, abrindo fronteiras que sabe-se lá quando vão fechar ou como vamos fechar.

A perspectiva de um furo de petróleo que se abre hoje é de 6 a 7 anos para começar a dar retorno, talvez 10. Em 2033, será que o petróleo estará valendo o mesmo que agora? O questionamento que deixamos é de que país queremos lá na frente.

Será que, à custa das populações da costa amazônica, do litoral amazônico, vamos repertir as histórias que vimos em Tucuruí ou em Belo Monte? Eu acho que não é o melhor caminho a ser tomado. Nosso conselho é que sejam revistas algumas é algumas opções para o desenvolvimento econômico.

Caso essas opções sejam de fato definidas, que elas sejam feitas com transparência, com bons estudos, com diálogo com as comunidades, com as organizações locais, para não caírmos no problema que estamos vendo agora, eudos com fragilidades e uma série de riscos que tiveram muito tempo para serem sanados.

Edição: Felipe Mendes