entrevista

Ainda desconhecido, vírus HTLV pode causar leucemia e problemas neurológicos

Bahia é dos poucos estados do país que faz triagem pré-natal no SUS para evitar infecção de bebês

Brasil de Fato | Salvador (BA) |
Único estudo no país de base populacional sobre HTLV foi realizado em Salvador e apontou uma prevalência em 2% da população - Divulgação/Sesab

O vírus linfotrópico de células T humano do tipo 1, mais conhecido como HTLV, é um retrovírus da mesma família do HIV e pode causar doenças graves, como câncer e desordens neurológicas. Atualmente, estima-se que há no país entre 800 mil e 2,5 milhões de pessoas portadoras do vírus. Para falar dessas e de outras questões importantes, o Brasil de Fato Bahia entrevistou Maria Fernanda Rios Grassi, médica e pesquisadora da Fiocruz e professora adjunta da Escola Baiana de Medicina e Saúde Pública.

Com longa experiência na área de infectologia e imunologia, com ênfase em imunologia celular, Grassi alerta para necessidade de informar a população. Explica como o vírus reage ao corpo humano, dá ênfase a triagem pré-natal e destaca realidade da doença no estado.  

Brasil de Fato BA: HTLV e o HIV são retrovírus que pertencem à mesma família e não têm cura. O vírus HTLV ainda é bem pouco conhecido. Pode nos explicar sobre ele e sobre a relação com o HIV?

Fernanda Rios Grassi: Os retrovírus foram dos primeiros vírus conhecidos pela ciência. Eles foram descobertos há mais ou menos 80 anos. E, inicialmente, estavam associados ao desenvolvimento de doenças em aves, por exemplo, sarcoma em galinhas. Por essa razão, durante muito tempo ficou “esquecido”, até que na década de 1960, 1970 foram feitas várias descobertas. Primeiro, a associação entre esses retrovírus e o desenvolvimento de leucemia em camundongos, um mamífero. A partir desse estudo modelo, conseguiu-se isolar a enzima transcriptase reversa – a enzima que caracteriza os retrovírus – e posteriormente se verificou que esses vírus se integravam ao genoma da célula e que tinham alguns genes que estavam relacionados ao desenvolvimento de câncer. Esse conhecimento, a partir de oncovírus, de vírus que levavam a doenças em animais, fez com que fosse possível o isolamento do HTLV, em 1980, e, posteriormente, o isolamento do HIV.

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Então, o HTLV1 e o HIV são os retrovírus de maior importância para a saúde humana. No entanto, existe uma diferença muito grande em relação a como esses vírus levam a doença em seres humanos. Enquanto o HIV infecta as células T, que são células do sistema imune e induz uma destruição dessas células; o HTLV também infecta os linfócitos T, mas leva a uma proliferação e uma ativação dessas células. Então, são mecanismos diferentes de infecção. O HIV infecta e destrói a célula. O HTLV infecta e induz a uma proliferação dessa célula e uma ativação celular. Esta ativação leva ao que a gente chama de uma reação inflamatória e, dependendo do local onde essa reação ocorra, a gente tem o desenvolvimento de algumas doenças associadas ao HTLV.

No Brasil, estima-se que cerca de 800 mil a 2,5 milhões de pessoas são portadores do vírus. E a Bahia é o estado detentor do maior número de casos de HTLV no país. Hoje, quais os números de infectados por HTLV no estado? E qual a razão da Bahia ser um território com maior prevalência para esse vírus? 

Durante muito tempo não se aceitava que o HTLV causava doenças. Existia um desconhecimento muito grande por parte dos médicos, dos profissionais de saúde acerca desse vírus. Apenas recentemente a Organização Mundial de Saúde (OMS) incluiu o HTLV na sua lista de infecções sexualmente transmissíveis (ISTs) que são de importância para a saúde. Isso aconteceu apenas recentemente e isso é uma pena, porque, em muitos lugares, nós não conhecemos o número de pessoas infectadas.

Aqui na Bahia, há muito tempo se faz pesquisas com HTLV. Nós sabemos que o vírus está presente no Brasil em todas as regiões, mas algumas regiões têm prevalências maiores do que outras. O Norte e o Nordeste do Brasil têm maior número de pessoas infectadas do que as regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste. Nós acreditamos que deve haver cerca de 800 mil pessoas infectadas pelo HTLV no nosso país, mas alguns estudos avaliam até cerca de 2 milhões de pessoas. Nós não temos o número exato porque esses estudos são feitos a partir de amostras de doadores de sangue ou de gestantes ou de usuários de drogas intravenosas. Então, são cálculos de estimativas feitas a partir dessas populações e que certamente não refletem o real número de pessoas infectadas. O único estudo de base populacional que foi feito no nosso país foi realizado aqui na cidade de Salvador e nesse estudo foi possível identificar que 2% da população estava infectada com o HTLV1 e isso corresponde a cerca de 50 mil pessoas, apenas na cidade de Salvador.

Nós fizemos aqui no Fiocruz um outro estudo, avaliando todas as pessoas que fizeram teste sorológico para HTLV no Lacen [Laboratório Central da Bahia] e nós estimamos que cerca de 130 mil pessoas estão infectadas por este vírus na Bahia, estando o vírus presente em quase todas as cidades do estado.


Maria Fernanda Rios Grassi, médica e pesquisadora da Fiocruz, professora adjunta da Escola Baiana de Medicina e Saúde Pública / Arquivo pessoal

Estudos recentes realizados por cientistas da Imperial College London (UK), em colaboração com grupos de pesquisa no Brasil, incluindo a Fiocruz Bahia, e publicada na Lancet Global Health afirmam que triagem de gestantes para HTLV-1 poderia evitar infecção de mais de mil bebês por ano no Brasil. Esse número grande de recém-nascidos contaminados é uma realidade totalmente evitável. O que dizer sobre isso? Na Bahia, esses testes já fazem parte do pré-natal?

A triagem pré-natal não é implementada em todo o Brasil, mas aqui na Bahia ela já faz parte dos exames feitos pela gestante, desde 2011. E a notificação dessa gestante já ocorre. O fato de você testar essas mulheres durante a gestação e oferecer a fórmula láctea, isso é capaz de impedir a infecção dessas crianças.

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Uma coisa que é muito importante e que muitos estudos mostravam é que a prevalência do HTLV é maior em mulheres e aumenta com a idade. Isso é particularmente importante no contexto da transmissão vertical, ou seja, no contexto da transmissão da mãe para o filho. Isso já está provado. O HTLV é transmitido dessa forma, principalmente, através do aleitamento materno. E quanto maior o tempo de aleitamento, maior a chance de infectar a criança. Nós temos estudos que mostram 3 gerações de uma mesma família infectadas por esse vírus que ocorreu por conta da mãe não saber que estava infectada e ter amamentado os seus filhos. Porque a amamentação é muito importante, deve ser estimulada, mas ela deve ser proscrita e não deve ser recomendada para as mulheres que estão infectadas pelo HTLV.

Recentemente foi feito um estudo que está publicado no Lancet Global Health que calculou se haveria custo-efetividade em relação à triagem pré-natal das gestantes. E, realmente, isso com que você consiga eliminar a infecção de mais de 1000 bebês a cada ano. Então, isso é muito custo-efetivo, porque essas crianças infectadas, mais adiante, poderão desenvolver doenças extremamente graves, a exemplo da leucemia que tem um custo muito grande para o sistema de saúde e uma mortalidade muito elevada. Além da paraparesia espástica tropical, essa mielopatia, que é uma doença incapacitante, numa fase produtiva, em torno dos 40 anos de idade.

Na realidade, as gestantes, todas elas devem ser avaliadas para o HTLV em todo o território nacional. Embora isso não esteja ainda implementado em todas as unidades da federação, a recomendação é que isso seja feito para todas as gestantes. Que faça parte da triagem, no momento do pré-natal, pelo menos uma sorologia para HTLV. Isso é importante porque pode prevenir a transmissão pro bebê, simplesmente suspendendo amamentação e oferecendo a fórmula Láctea.

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O HTLV também é transmitido sexualmente. Então, as pessoas que têm sexo desprotegido, que têm uma maior probabilidade de ter infecções sexualmente transmissíveis, devem ser testadas para o HTLV. Então, o uso de preservativo e a conscientização são importantes.

Apesar de não destruir o sistema imunológico, como o HIV, o HTLV pode causar doenças graves, como câncer e desordens neurológicas crônicas. Pode explicar como ele age no organismo e como essas doenças estão associadas ao vírus?

Nós sabemos agora que o HTLV está associado ao desenvolvimento de mielopatia, também conhecida como paraparesia espástica tropical. Existe uma degradação da mielina que recobre a medula espinhal, e os pacientes, progressivamente, vão apresentando perda de força muscular, hiperreflexia, dificuldade para andar, quedas frequentes, alterações urinárias, alterações de esfíncter anal. Uma série de alterações de membros inferiores e, muitas vezes, progressivo, que leva o paciente à cadeira de rodas.

Outras doenças inflamatórias são relacionadas à inflamação da úvea, que é uma camada que recobre a parte interna do olho, a uveíte, que pode levar à cegueira. Nós temos também uma dermatite infectiva, que é uma doença infecciosa, sobretudo em crianças com uma infecção por estafilococos, estreptococos, na face. Geralmente, em torno da narina e que é uma doença recorrente de difícil tratamento com reação inflamatória, também importante.

E temos mais uma outra doença associada ao HTLV que é a leucemia, linfoma de células T do adulto. Nesse caso, não é uma resposta inflamatória, e sim uma linfoproliferação. Uma proliferação exacerbada de linfócitos T, que leva à leucemia, um câncer do sangue. Uma doença extremamente grave, de difícil tratamento e que pode levar à morte do paciente muito precocemente.

Como a gente pode ver, essas doenças que são causadas pelo HTLV diferem muito daquelas causadas pelo HIV que destroem os linfócitos T fazem com que o sistema imune fique suscetível a infecções oportunistas. O paciente com HIV tem uma imunodeficiência grave e costuma morrer em decorrência dessas infecções. Isso não acontece no HTLV.

Na Bahia, quais postos de atendimentos são especializados neste serviço e onde as pessoas infectadas podem buscar tratamento e ajuda?

Existem vários centros de atendimento ao paciente infectado. Os exames são para pessoa descobrir se está ou não infectada pelo HTLV. E são realizados no Sistema Único de Saúde (SUS). Então, se uma pessoa quer ser testada, ela pode ir, por exemplo, a uma Unidade Básica de Saúde (UBS) e solicitar o teste. Vai ser feita a coleta, e o teste é feito no Laboratório Central (Lacen). O exame é composto de duas etapas. Numa primeira etapa, é feito um exame de triagem e, se esse exame for positivo, ele é então testado para um exame confirmatório. O tratamento e o acompanhamento do paciente infectado pelo HTLV podem ser feitos nas Unidades no Centro de Testagem Anônima (CTA) em várias cidades. Já tem CTA, por exemplo, em Barreiras, Cruz das Almas, Guanambi, Ilhéus, Irecê, Itabuna, Jacobina, Vitória da Conquista... Enfim, várias cidades onde tem CTA já estão também atendendo pacientes com HTLV.

Aqui em Salvador, nós temos o Quinto Centro e o Semai, que fica na Liberdade, e atende pacientes infectados. Além disso, tem o Centro de Referência da Escola Baiana de Medicina, que também atende pacientes com HTLV. É importante a gente dizer que esses atendimentos são todos pelo Sistema Único de Saúde, não tem custo.

É muito importante que as pessoas que têm o histórico de doença sexualmente transmissível ou tem alguém em sua família que tem HTLV que faça também o teste. Isso é muito importante. E que vá ao médico para fazer a avaliação neurológica, oftalmológica, fazer exames de sangue para verificar se o vírus está fazendo alguma alteração nessa pessoa.

Fonte: BdF Bahia

Edição: Gabriela Amorim