No Rastro das Lutas

Mais de 520 pessoas foram resgatadas de trabalho análogo à escravidão este ano no Brasil

Teceiro episódio da série fala sobre as formas modernas de exploração do trabalho escravo no Brasil

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Nas últimas décadas, houve um aumento de resgates de mulheres imigrantes submetidas à exploração em oficinas têxteis - Foto: Divulgação/ MPT

Até março deste ano, mais de 520 trabalhadores e trabalhadoras foram resgatados no Brasil em condições análogas à escravidão, de acordo com dados do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE). A Organização Internacional do Trabalho (OIT) afirma que, só em 2021, cerca de 28 milhões de pessoas foram vítimas de trabalhos forçados em todo o mundo.

O trabalho análogo à escravidão em suas formas modernas é o tema desta terceira reportagem da série No Rastro das Lutas, Movimentos populares abrindo caminhos para a democracia e direitos no Brasil, produzida em parceria entre o Brasil de Fato e a Coordenadoria Ecumênica de Serviço (CESE) - que completa 50 anos de atuação esta semana.

Para Soledad Requena, assessora de Gênero do Centro da Mulher Imigrante e Refugiada (CEMIR), o trabalho análogo à escravidão ainda existe em suas formas modernas porque atende a uma demanda do capitalismo. "Eu estou convencida de que o trabalho análogo ao de escravo é um efeito do sistema capitalista. A gente faz tudo para enfrentá-lo. Tudo para erradicá-lo, mas é um assunto que responde ao sistema. O sistema capitalista precisa do trabalho análogo ao de escravo", a afirma Requena, que também é consultora Internacional em Gênero e Migração e atua no combate à escravização de trabalhadoras há oito anos.


Soledad Requena, consultora de Gênero e Migração do CEMIR, que sistema capitalista precisa do trabalho análogo à escravidão / Arquivo pessoal

Frei Xavier Plassat, frade dominicano da Comissão Pastoral da Terra (CPT) atua no combate ao trabalho análogo à escravidão no Brasil desde 1989. Em 2008, recebeu o Prêmio Nacional de Direitos Humanos em reconhecimento à sua atuação. Ele defende que o combate a formas modernas de escravização precisa ser preventivo. "Não adianta combater quando o leite já derramou, lá onde acontece o trabalho escravo é tarde demais para combatê-lo, a gente só pode resgatar trabalhador, eventualmente. Mas onde se combate o trabalho escravo é ao longo da rota do trabalho escravo", afirma o frei.

Ele explica ainda que o Brasil tem um conceito jurídico muito avançado sobre o que é o trabalho análogo à escravidão. "O artigo 149 do Código Penal descreve o que é trabalho escravo em forma objetiva e moderno, ao dizer que trabalho escravo contemporâneo não é somente acorrentar uma pessoa, impedindo que ela possa ir e vir. Isso é uma das formas. Mas a principal forma é impor um trabalho degradante, uma jornada exaustiva, impor uma dívida impagável, criar condições que alteram efetivamente a liberdade profunda da pessoa", diz.

Embora casos de trabalhadores resgatados nessas situações sejam comuns desde a década de 1980, apenas em 1995 o Brasil reconheceu a existência de trabalho análogo à escravidão no país e passou a combateê-lo. E só em 2002 que é criado o Plano Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo.

De acordo com Frei Xavier Plassat, é neste documento de 2002 que é instituído o direito ao seguro desemprego para as vítimas do trabalho análogo à escravidão. Também é a partir deste plano nacional que se cria a Lista Suja, cadastro onde consta o nome das empresas que foram flagradas explorando trabalhadores.

"Houve a tentativa também alterar a Constituição Federal para inserir um artigo que prevê o confisco da propriedade de quem pratica o trabalho escravo. Até o momento, esse artigo não foi regulamentado porque, quando foi tentado regulamentar, a bancada ruralista tentou deturpar o conceito do trabalho escravo", explica o frei.


Frei Xavier Plassat, frade dominicano da Comissão Pastoral da Terra (CPT) atua no combate ao trabalho análogo à escravidão no Brasil desde 1989 / Arquivo pessoal

Aplicação da lei

Para Soledad Requena, apesar de importantes avanços na legislação, ainda há no Brasil entraves à sua efetivação. Ela ressalta, inclusive, que o período pandêmico foi um fator que dificultou tanto o combate quanto a prevenção. "Em termos de legislação, o Brasil avançou muito em relação ao enfrentamento ao trabalho análogo escravo. Porém, como tudo no Brasil, no papel está maravilhoso, mas em termos efetivos, aí que vêm nossas dificuldades", acrescenta.

Ela destaca ainda a necessidade de o Estado brasileiro entender e lidar melhor com o fenômeno migratório e, principalmente, com a feminização desse processo. Isto porque as mulheres imigrantes, atualmente, são um dos grupos que têm se tornado alvo de exploração de trabalhos forçados.

Ainda de acordo com Soledad Requena, aproximadamente 30% dessas mulheres imigrantes são chefes de família, que chegam ao Brasil com filhos pequenos. A maior parte desse contigente é de mulheres latino americana: bolivianas, peruanas, paraguaias, colombianas; e também pessoas refugiadas do continente africano. "Por sua condição de serem mulheres com pouco conhecimento do idioma, com enormes dificuldades de comunicação e com muito temor em relação ao que pode acontecer, elas se submetem a situações de trabalho análogo a escravo", explica a assessora de Gênero do CEMIR.

Frei Xavier Plassat complementa apontando o perfil mais comum encontrado nos 64 mil trabalhadores resgatados desde 1995 que expõe a origem racista desse crime. Do total de resgatados, ⅔ são do norte e nordeste, sendo 40% do nordeste e 22% do norte, outros 21% são do centro-oeste. Ele destaca que dos 64 mil resgatados, 75% são afrodescendentes. "Na população brasileira, o afrodescendente é no máximo 55%. A gente tem 75% no caso do trabalho escravo. Então, não é invenção dizer: o racismo continua prevalecendo. O trabalho escravo tem cor!", afirma.

E aponta que a luta pela erradicação do trabalho análogo à escravidão passa pela reforma agrária e pelo respeito aos territórios dos povos originários. Soledad Requena reforça ainda a necessidade de avançar na implementação de políticas públicas voltadas para as trabalhadoras e trabalhadores resgatados.

Ela conta que, na experiência do CEMIR, em acompanhar mulheres resgatadas, não é incomum as que saem do trabalho escravo, compram suas próprias máquinas de costura e acabam entrando em um regime de trabalho precário, em um processo cíclico de precarização da vida. "Se um grupo de pessoas são resgatadas, a gente tem que dar uma resposta efetiva. Está previsto um ajuda moradia por três meses, mas eu acho que tem que ter mais tempo. Não é tão fácil resgatar as pessoas, tirá-las dessa situação delas e, com três meses, deixá-las ao destino", diz.

A série de reportagens e podcasts ''No Rastro das Lutas: Movimentos populares abrindo caminhos para a democracia e direitos no Brasil'' é mais uma iniciativa que se relaciona com as ações dos 50 anos da CESE, trazendo uma abordagem voltada para sensibilização da sociedade acerca da contribuição social, cultural, econômica e política dos movimentos sociais no país. E conta com apoio do programa Doar para Transformar.

Edição: Alfredo Portugal