DE QUEM É A CULPA?

Americanas admite fraude para aumentar lucro, mas blinda acionistas bilionários

Gigante do setor de varejo declarou que antiga diretoria simulou contratos e manipulou balanço da empresa

Brasil de Fato | Curitiba (PR) |
Americanas manipulou R$ 45 bilhões em contas para aumentar lucro e gerar bônus a executivos - Foto: Tânia Rego / Bolsa de Valores

A empresa Americanas admitiu nesta semana que sua contabilidade foi fraudada para que ela apresentasse lucros mais altos do que realmente obtinha. Na terça-feira (13), em comunicado e em depoimento concedido pelo atual presidente da companhia, Leonardo Coelho, à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que investiga o que ocorreu na empresa, ela revelou ter detectado manipulações contábeis implementadas por um “período significativo” e que somam R$ 45 bilhões.

A cifra é mais que o dobro do valor das “inconsistências contábeis” que a empresa admitira, em janeiro, ter detectado em seus balanços. Sua origem também é muito mais grave do que a ausência de lançamento de empréstimos em seus demonstrativos de resultados –primeira explicação dada pela companhia ao reconhecer seus problemas.

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De acordo com a própria Americanas, seus antigos diretores simularam contratos que aumentaram artificialmente a receita da companhia em R$ 21,7 bilhões. Também tomaram mais de R$ 20 bilhões em empréstimos não contabilizados. Também manipularam seu débito com fornecedores, declarando dívida quase R$ 4 bilhões menor que a real.

Com mais receita e menos dívida, a companhia, no papel, lucrava mais. Quanto mais lucro, mais os diretores ganhavam em bonificações e mais dividendos eram distribuídos a acionistas.

Ainda segundo a empresa, os diretores fizeram tudo isso sem as devidas aprovações dos sócios da companhia e sem que eles soubessem das manipulações nas contas apresentadas ao público.

Essa parte da confissão, entretanto, levantou desconfianças.

A Americanas pertence, desde 1983, majoritariamente a três dos homens mais ricos do Brasil, segundo a revista Forbes: Jorge Paulo Lemann, o mais rico do país; Marcel Telles, o terceiro; e Beto Sicupira, o quarto.

Eles mantiveram pessoas de sua confiança no conselho de administração da empresa –instância máxima da gestão e que, em tese, supervisiona o trabalho de diretores. O próprio Sicupira presidiu o órgão. Sua filha, Cecília Sicupira Giusti, além de Paulo Alberto Lemann, filho de Jorge Paulo Lemann, também integrou o grupo.

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Para o presidente da Associação Brasileira dos Investidores (Abradin), o economista Aurélio Valporto, é difícil de acreditar que os três bilionários não sabiam do que se passava em sua empresa. Segundo ele, a Americanas resolveu “blindar” os seus maiores acionistas ao acusar seus ex-diretores de ocultar informações sobre a real situação da companhia.

“A impressão que ficou foi que a empresa procurou blindar o conselho de administração e os acionistas de referência”, afirmou ele, ao Brasil de Fato. “Alguns diretores que hoje são acusados pela companhia também fizeram parte do conselho. Não dá pra dizer que o grupo não sabia das fraudes.”

O economista André Roncaglia, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), também duvida das explicações apresentadas pelas Americanas sobre a responsabilidade da fraude constatada na companhia. Para ele, as últimas declarações da empresa fazem, na verdade, parte de uma estratégia jurídica para culpar ex-executivos pelas manipulações e livrar Lemann e seus sócios.

“A assessoria jurídica contratada tenta nitidamente blindar os acionistas controladores: o trio Lemann, Telles e Sicupira”, afirmou. "Há um esforço nítido de jogar a conta na diretoria anterior. Mas isso não cola.”

Histórico de problemas

Roncaglia lembrou que outras empresas do trio de bilionários já envolveram-se em suspeitas de fraudes muito parecidas com as constatadas agora nas Americanas. O banco BTG Pactual, aliás, lembrou esses casos ao recorrer à Justiça para bloquear cerca de R$ 1 bilhão da companhia por conta de dívidas com a instituição.

"Em 2005, foram acusados de terem atuado com abuso de poder de controle, ao desvirtuar os objetivos do plano de opção de compra de ações da Ambev", narrou o BTG. "Jorge Paulo Lemann, Marcel Telles e Carlos Alberto Sicupira, também foram acusados, na qualidade de administradores da Ambev, de terem infringido seus deveres fiduciários com a companhia."

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O caso foi tema de um processo da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), repartição que monitora o mercado de investimentos no país. Foi encerrado após um acordo que envolveu o pagamento de R$ 15 milhões.

O BTG relatou também o caso da Kraft Heinz, empresa que fabrica o famoso ketchup e que também já foi controlada pela Lemann. Em 2019, ela também teria admitido inconsistências de US$ 15 bilhões (mais de R$ 72 bilhões) em seu balanço (cerca de R$ 75 bilhões na cotação atual). Pagou uma multa de US$ 62 milhões (mais de R$ 310 milhões) ao governo dos EUA para encerrar um processo que corria por lá.

“O histórico da gestão e da estratégia do trio, sempre muita agressiva, levou aos mesmos problemas”, resumiu Roncaglia. “Isso envolve manipular balanço, esconder dívidas. Ou seja, não é a primeira vez que isso acontece.”

Capitalismo financeirizado

Roncaglia ainda ressaltou o problema estrutural do capitalismo que a fraude da Americanas revelou. Com boa parte da economia girando com base em como ações de empresas sobem ou descem em pregões de bolsas de valores mundo afora, essas empresas são induzidas a apresentar resultados contábeis cada vez melhores, mesmo que a realidade delas não sustente esses números.

“Não quero tirar a responsabilidade de ninguém neste caso, mas há elementos estruturais do capitalismo financeirizado que induzem esse tipo de comportamento predatório, que vai até contra a própria empresa”, disse.

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Para Roncaglia, esse comportamento precisa ser coibido para manutenção de empregos de funcionários, pela garantia de pagamento de dívidas a credores, pela arrecadação de impostos e por toda a economia.

Papel da CPI

Valporto, da Abradin, disse que espera que a CPI sobre o caso sirva para mudanças na legislação que possibilitem, inclusive, a punição dos responsáveis por esse tipo de fraude. “A CPI da Americanas é uma oportunidade para que a legislação brasileira seja revista, facilitando a punição exemplar desse tipo de criminoso e rápido ressarcimento aos lesados. O futuro do desenvolvimento econômico do país depende disso.”

A CPI foi instalada em maio e deve ser concluída no final de setembro. Ela é presidida pelo deputado federal Gustinho Ribeiro (Republicanos-SE).

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Ribeiro já disse que pretende encontrar os culpados pelas fraudes nas Americanas. Acenou com a possibilidade de quebrar sigilos bancários e de comunicações dos diretores acusados pela empresa. Não descartou também convocar Lemann, Telles e Sicupira a dar explicações sobre o caso.

Procurada pelo Brasil de Fato, a Americanas não se pronunciou sobre a responsabilidade de seus controladores e sobre o conselho de administração sobre a fraude.

Edição: Rodrigo Durão Coelho