Assista ao vídeo

Conheça a história da reconstrução de Havana Velha

Para manter uma 'cidade viva', preservação da capital passa por enfrentar agressões do mar e do bloqueio dos EUA

Internacional |
Havana Velha - Imagem: Edgardo W. Olivera

A cada ano, o centro histórico de Havana, conhecido como Havana Velha, atrai milhares de turistas. Com paisagens que combinam a reconstrução da era colonial com prédios destruídos pela passagem do tempo, para muitos cubanos Havana Velha é a chance de ver Cuba em um só lugar. Com uma mistura de culturas e regionalismos, além de suas atrações turísticas, reúne centenas de cubanos de todas as partes da ilha que chegam à capital para viver, fazendo com que ela deixe de ser um mero cartão postal para se tornar uma cidade viva.

A capital cubana, San Cristóbal de La Habana, foi fundada há mais de 500 anos, o que a torna uma das cidades mais antigas do continente. Sua arquitetura colonial espanhola data do século XVI e a cidade ainda inclui um forte da era colonial. Atualmente, é a maior cidade da ilha, sendo o centro econômico e cultural e o principal centro turístico do país. 

San Cristóbal de La Habana tem um dos centros históricos melhor preservados da América Latina. Mas a antiguidade da cidade também representou um enorme desafio em termos de preservação.

"Havana é uma cidade de contrastes, uma cidade autêntica. Ela tem um equilíbrio incrível entre o moderno e o antigo, o sofisticado e o básico, e o natural. Aqui convergem diferentes tipos de cultura, educação ou trabalho. Eu diria que é uma cidade de contrastes. A pessoa que chega aqui é forçada a se perguntar como é possível que tanta coisa possa se reunir em um só lugar", diz Diana García Fernández, coordenadora jurídica do Escritório do Historiador, para o Brasil de Fato. "É incrível como, ao caminhar pela Havana antiga, você pode ver algo muito bonito ao lado de algo muito destruído ou em processo de reparo. É uma cidade que sofre mutação, que é autêntica, que muda. As pessoas que a visitam hoje e voltam daqui a alguns anos veem contextos completamente diferentes.

Caminhar por Havana Velha é caminhar nesse contraste. O contraste entre uma cidade colonial totalmente restaurada e prédios que ainda estão em más condições.

Mas salvar o patrimônio histórico não foi o primeiro impulso após o triunfo da revolução. A antiguidade dos edifícios tornava mais fácil derrubá-los e construí-los novamente. Foi o historiador Eusebio Leal quem iniciou o projeto para salvar Havana Velha.  Foi ele quem criou a Rede de Oficinas do Historiador e Conservador de Cidades Patrimônio, iniciativa que está presenta na capital e outras 14 localidades.

O trabalho diário da Oficina do Historiador consiste em buscar soluções de construção para os danos causados aos edifícios, principalmente pela passagem do tempo, mas também por crises econômicas e pela agressividade implacável do mar, que danifica especialmente as construções costeiras. 

"Quando Eusebio Leal iniciou o programa, ele foi de casa em casa, local por local, conversando com os vizinhos para criar um fundo comum de ajuda econômica para restaurar Havana Velha. Ele buscou de todas as formas possíveis obter recursos para a preservação histórica de Havana. Até que esse projeto se tornou uma política de Estado", disse Eugencio Fernando Acosta, membro do Escritório do Historiador, ao Brasil de Fato. 

"A primeira coisa foi convencer os membros da comunidade, e para isso tivemos que mostrar mudanças concretas. Hoje somos seus continuadores. Somos uma entidade autofinanciada e com autogestão. Nosso objetivo é ser uma cidade autossustentável e inteligente", acrescenta Acosta. 

Havana, um Patrimônio da Humanidade 

Em 1982, o centro histórico da capital cubana foi declarado Patrimônio da Humanidade pela UNESCO. Isso deu um enorme impulso ao trabalho de preservação da cidade. 

De acordo com Diana García Fernández, o projeto de Leal se destacou por ter ido "à essência, ao autêntico, ao autóctone e ao natural. Foi isso que permitiu, naquele momento histórico, conseguir, pelo caminho mais difícil, realizar o trabalho da melhor maneira possível. Para que não fosse uma cidade-museu, mas uma cidade viva. Não para torná-la uma cidade de exposição para as pessoas passarem, mas uma cidade autêntica onde as pessoas estivessem vivendo".

Além de restaurar o patrimônio local e reconstruir casas, o Escritório do Historiador de Havana Velha realiza programas locais de dança ao ar livre, oficinas de artes e artesanato e aulas de literatura e canto. Ele também administra um programa de Residências Abrigadas para Idosos, que são prédios reformados com pequenos apartamentos para idosos que desejam morar lá.

Para muitos cubanos, Havana Velha é a cubanidade em um só lugar.  Ela reúne toda a diversidade nacional, sua mistura de culturas, juntamente com pessoas de outras províncias que vêm à capital para visitar e, muitas vezes, para se estabelecer. 

A origem da propriedade de casas no centro histórico de Cuba também faz parte do legado histórico de Havana. Após o triunfo da Revolução, foi sancionada a reforma urbana em outubro de 1960, por meio da qual os títulos de propriedade das casas foram entregues às famílias que moravam nessas casas pagando altos aluguéis — o que lhes consumia grandes porcentagens de seus salários. Por outro lado, os antigos proprietários foram indenizados pelo Estado de acordo com o ano de construção e o valor do aluguel que haviam perdido. 

Como resultado desse processo, muitas famílias pobres que alugavam apartamentos nessa parte da cidade se tornaram proprietárias de casas antigas que antes pertenciam às antigas famílias aristocráticas de Cuba. Hoje, um dos grandes desafios é o reparo desses prédios antigos para que essas famílias possam continuar a morar neles.

Leal ao seu tempo 

"Não, você só pode ir para o futuro a partir do passado" era uma frase que Eusébio Leal costumava repetir nas diversas entrevistas. Historiador por vocação e profissão, ele é considerado um dos intelectuais mais importantes da ilha. 

Leal fez grande parte de sua educação de forma autodidata. Aos 16 anos, depois de abandonar a escola, começou a trabalhar no governo municipal, onde foi contratado pelo então historiador da cidade, Emilio Roig, que sempre considerou seu mentor. 

Aos 32 anos, ingressou na Universidade de Havana, apesar de, naquela época, ter concluído apenas a sexta série do ensino fundamental. Para isso, prestou exames de proficiência acadêmica, o que lhe permitiu entrar na universidade por decreto do reitor para se formar em história em 1974. Foi lá que ele obteve seu doutorado.  

Os cantos de Havana, assim como seus habitantes, ainda mantêm vivo o espírito do historiador, sem o qual a cidade não seria o que é hoje. Uma de suas histórias mais conhecidas retrata tanto o caráter quanto a paixão de Eusebio Leal. No início da década de 1970, Havana estava passando por várias obras de remodelação da cidade. Conta-se que, naquela época, era esperada a visita de uma ministra soviética. Para recebê-la, começaram as obras de pavimentação de uma rua feita com velhas pedras de madeira. Mas quando a escavadeira chegou, o jovem deitou sobre as pedras do calçamento, gritando "por cima do meu cadáver, por cima do meu cadáver". Leal estava colocando o seu corpo a serviço da cidade que ele estava determinado a proteger.

A vida e o trabalho de Eusebio Leal foram marcados pelo desejo de salvar o patrimônio histórico de Havana. Ele conseguiu preservar e recuperar alguns dos edifícios mais importantes do período colonial e muitas construções que foram resgatadas das ruínas. Seu trabalho mais recente foi a restauração completa do edifício do Capitólio Nacional, o antigo parlamento de Cuba, construído em 1928, mas abandonado após a revolução até sua recuperação em 2019, em meio às comemorações do 500º aniversário de Havana.

Hoje, a Rede de Escritórios do Historiador e Conservador de Cidades Patrimoniais tem a tarefa de preservar não apenas a memória de Leal, mas, acima de tudo, o legado de seu trabalho. 

Atualmente, em frente à entrada do Museu da Cidade, antigo Palácio dos Capitães Generais, há uma estátua de bronze de Eusébio Leal. A peça foi feita por José Villa Soberón, ganhador do Prêmio Nacional de Artes Plásticas de Cuba, e toda a equipe que o acompanha em sua emblemática oficina na esquina da Teniente Rey com a Cuba, em Havana Velha. A estátua foi inaugurada no primeiro aniversário da morte de Leal em 2021.

"Leal é para alguns um grande político, para outros um grande diplomata. Para outros, ele é um símbolo de enorme humildade. Para mim, Leal é a pessoa que me motivou a colocar meus esforços a serviço de Cuba e da Velha Havana. Talvez se não houvesse um Leal, eu não teria o paradigma de que era possível defender a beleza e a alegria a partir de uma posição de trabalho. Para mim, esse é Leal", diz Eugencio Fernando Acosta, emocionado.

Edição: Thales Schmidt