Cessar-Fogo?

Conflitos no Sudão são retomados em meio a negociações de paz

Diálogos são liderados pelos EUA e Arábia Saudita; lideranças políticas enxergam esforços com ceticismo

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As Forças Armadas Sudanesas têm realizado incursões aéreas em áreas residenciais ocupadas pela RSF na capital Cartum - ICRC

Os combates entre as Forças Armadas Sudanesas (SAF) e as Forças paramilitares de Apoio Rápido (RSF), que entraram no seu terceiro mês no dia 15 de junho, recomeçaram na madrugada desta quarta-feira. Os ataques ocorrem após o término de um cessar-fogo que teve inicio no dia 18 de junho. 

Em entrevista ao Peoples Dispatch, o porta-voz nacional do Partido Comunista Sudanês (SCP), argumentou que o cessar-fogo estava ajudando, principalmente, as partes em conflito a recuperarem suas tropas e a retomarem os combates com maior intensidade.

Os EUA e a Arábia Saudita, que lideram as negociações entre SAF e RSF em Jeddah desde 6 de maio, disseram em um comunicado conjunto, no último 17 de junho, que as duas partes concordaram em “permitir o livre acesso e a entrega de assistência humanitária.” Eles também se comprometeram a não realizar ofensivas, reabastecer suas forças ou reforçar suas posições durante a trégua.

Embora compromissos semelhantes também tenham sido feitos no cessar-fogo anterior, que durou uma semana no final de maio, Elfadl afirmou que quase nenhuma ajuda chegou às pessoas presas nas zonas de guerra. “O acordo apenas provou ajudar ambas as partes em guerra a se reorganizarem, se reabastecerem e a fortalecerem as tropas. O que se seguiu foi o pior dos combates”, disse ele, expressando preocupação de que os combates se intensifiquem ainda mais após o término do novo cessar-fogo.

A RSF, cujos combatentes são em sua maioria de um grupo de tribos nômades de língua árabe espalhadas pelas fronteiras nacionais da região, “está trazendo mais combatentes de países vizinhos como África Central, Níger etc”, alegou.

“O exército está mobilizando tropas de diferentes partes do Sudão”, disse ele, acrescentando: “Não temos esperança de nenhum resultado positivo de Jeddah. A luta só se intensificou e se espalhou desde que essas negociações começaram lá [em 6 de maio]. Ambos os lados estão agora mais fortes do que antes.”

“Mesmo que esse cessar-fogo dure três dias, depois disso o inferno recomeça”, acrescentou, insistindo que “inferno” é a palavra mais adequada para descrever o que os civis estão enfrentando, especialmente em Darfur, no oeste do Sudão e na região da capital do país.

Na capital Cartum e em suas cidades irmãs de Cartum Bahri (Norte) e Omdurman, os aviões da SAF bombardearam áreas residenciais densamente povoadas com artilharia e ataques aéreos, enquanto a RSF matava, saqueava e estuprava civis no solo e ocupava suas casas e propriedades.

Um número crescente de civis tem sido deslocado ou capturado no fogo cruzado, especialmente nas últimas semanas desde que o exército despachou infantaria adicional para engajar o RSF em batalhas de rua nos bairros residenciais que ocupam.

Além de várias casas, Elfadl disse que a RSF também ocupou e destruiu o Centro Cultural Abdel Karim Merghani. O Centro Cultural se descreve como uma “biblioteca, um recurso de pesquisa, um local de palestras e artes performáticas e uma editora para a cultura e história escrita do Sudão”.

A sede do Partido Comunista Sudanês (SCP) também foi ocupada pela RSF no dia 25 de maio. Somente no dia 18 de junho os integrantes do SCP, inclusive Elfadl, puderam entrar novamente em seu gabinete. “Embora as tropas do RSF já tenham desocupado o quartel-general, todo o bairro de Cartum 2 está agora sob o controle do RSF”, disse Elfadl. Ele acrescentou que as Forças Armadas Sudanesas (SAF), nesse meio tempo, têm forçado os civis a desocuparem a cidade para que possam lutar contra o RSF.

“Aconselho aos civis que, se os elementos do RSF ocuparem as casas de vocês e forçarem vocês a saírem, os vizinhos, por sua vez, devem evacuar as casas adjacentes às casas ocupadas também, porque, a partir de agora, vamos atacá-los em qualquer lugar”, anunciou o general Yasir al-Atta em 16 de junho.

Logo após este anúncio, as SAF desencadearam dois dias de bombardeio pesado e ataques aéreos em áreas residenciais ao redor da região da capital, durante os quais estima-se que 217 pessoas tenham sido mortas em Cartum e suas cidades irmãs, disse Elfadl. A maioria das mortes ocorreu na parte norte de Cartum e nas partes norte e central de Omdurman, onde ele reside.

Milhares de mortos em dois meses

Nos dois meses de combates, mais de 3.000 pessoas foram mortas e mais de 6.000 ficaram feridas, disse o ministro da Saúde Haitham Ibrahim em 17 de junho. Esses dados parecem excluir os assassinatos na capital do estado de Darfur Ocidental, El Geneina, porque todos os hospitais “estão fora de serviço” na cidade que está sitiada e incomunicável. De acordo com um relatório publicado na segunda-feira, 19 de junho, por uma organização que representa a tribo sitiada em Darfur, mais de 5.000 pessoas foram mortas somente em El Geneina até 12 de junho.

Em uma declaração naquele dia, Fadil Omar, porta-voz de um Comitê de Resistência local, disse: “A cidade de Geneina agora está isolada, com seus bairros residenciais e campos de deslocados isolados do mundo… Digo isso com completa certeza: nenhum lugar nesta terra está mais miserável que Geneina.”

Ele acrescentou que os relatórios indicam que “a maioria dos doentes renais da região e aqueles com doenças crônicas, especialmente aqueles que sofrem de problemas cardíacos, já morreram ou estão à beira da morte. As mulheres grávidas também estão enfrentando condições altamente desafiadoras e há relatos de casos de estupro na área”.

Dois dias após a declaração de Omar, o governador de Darfur Ocidental, Khamis Abakar, foi morto em 14 de junho. Ele é o mais alto funcionário do governo a ser morto desde que a guerra estourou entre as SAF e as RSF. As imagens o mostram sendo detido por um grupo de pessoas armadas, incluindo várias com uniforme das RSF. Outro vídeo supostamente mostrava seu cadáver ensanguentado, caído no chão com cortes, inclusive na lateral do seu pescoço.

Os ativistas da sociedade civil, as Forças Armadas Sudanesas (SAF) e a Organização das Nações Unidas (ONU) acusaram as Forças paramilitares de Apoio Rápido (RSF) de seu assassinato. Negando a acusação, as RSF alegaram em comunicado que haviam tomado sua custódia e o levado para a sede em El Geneina “para proteger o governador”, mas “dois bandidos” o mataram após sequestrarem-no da custódia das Forças paramilitares de Apoio Rápido (RSF)

Abakar era membro do Movimento Justiça e Igualdade (JEM), que estava entre os grupos armados em Darfur em guerra com o estado sudanês em 2003. Em protesto contra a marginalização política e econômica sob o regime islâmico do ex-ditador Omar al Bashir, as tribos sedentárias de agricultores da região, que falam línguas africanas locais, apoiaram os grupos rebeldes armados.

O regime, por sua vez, armou e organizou em milícias um grupo de tribos nômades de pastores de gado de língua árabe, cuja competição com os fazendeiros africanos por recursos vinha se intensificando, particularmente desde o aumento da desertificação em meados da década de 1980.

Essas milícias, conhecidas como Janjaweed, cometeram atrocidades em massa em coordenação com as SAF, cujo comandante de Darfur na época era Abdel Fattah al Burhan, o atual chefe das SAF. Os primeiros cinco anos da guerra civil deixaram entre 200.000 e 300.000 mortos e milhões de deslocados até 2008. Em 2009, o Tribunal Penal Internacional (TPI) indiciou Bashir por genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra, mas ele continuou a governar por mais uma década.

Os Janjaweed, entretanto, fundiram-se para formar as RSF em 2013 sob o comando de Mohamed Hamdan Dagalo, também conhecido como Hemeti. Desde então, ele assumiu o controle de grande parte das minas em Darfur, que abriga a maioria dos depósitos de ouro do Sudão. O Sudão é o terceiro maior produtor africano do metal precioso.

Após meses de protestos pró-democracia em massa, que eclodiram em dezembro de 2018, forçaram a remoção de Bashir em abril de 2019, seus generais de confiança, o chefe das SAF Burhan e o chefe das RSF Hemeti, formaram uma junta militar, tendo o primeiro como presidente e o último como seu vice.

Depois que as RSF reprimiu a manifestação em massa pró-democracia fora do QG das SAF com um massacre em 3 de junho de 2019, a junta concordou em compartilhar o poder com uma coalizão de partidos de direita em agosto daquele ano e formou uma união para um governo de transição civil-militar.

Acordo de paz de Juba chega a um beco sem saída; Darfur de volta à guerra civil

Em agosto de 2020, vários grupos armados, incluindo o JEM em Darfur, assinaram o acordo de paz de Juba. O que não trouxe paz a Darfur. Desde a assinatura do acordo, várias centenas de milhares foram deslocadas em ataques das tribos árabes nômades, armadas e apoiadas pelas RSF, acusadas de realizar uma campanha de despovoamento com o apoio das SAF.

No entanto, os líderes de diferentes grupos armados que compartilharam o poder do Estado, incluindo Khamis Abakar, posteriormente apoiaram o golpe militar de Burhan e Hemeti em outubro de 2021 para remover os civis do governo de transição. Desde então, todo o poder do estado estava concentrado na junta militar liderada por Burhan e Hemeti, com os ex-comandantes rebeldes também desfrutando de suas partes.

Elfadl argumentou que Abakar havia se tornado um dos “colaboradores usados pela junta militar”. Depois que a luta interna e fervilhante pelo poder entre os líderes da junta, Burhan e Hemeti, explodiu em uma guerra em 15 de abril, colocando as SAF e as RSF umas contra as outras, as RSF, junto com as tribos árabes das quais suas tropas vêm, desencadearam um assassinato em massa das tribos africanas. A maioria das vítimas vivia em acampamentos, deslocadas durante a guerra civil.

Nestas circunstâncias, Abakar, que vem dos Masalit, a maior tribo da comunidade agrícola africana sob ataque em Darfur, rompeu com Hemeti e começou a organizar a defesa de sua comunidade, explicou Elfadl. “Então as RSF o removeram do gabinete do governador por assassinato.”

Em entrevista horas antes de ser morto, ele acusou as RSF e suas milícias árabes de repetirem um “genocídio”. Ele exortou a comunidade internacional a parar com os assassinatos, apontando que “os civis estão sendo mortos aleatoriamente e em grande número… Não vimos o exército deixar sua base para defender as pessoas”.

O assassinato de Abakar é mais uma reiteração de que o acordo de paz de Juba é um beco sem saída, não oferecendo saída para a espiral de violência, argumentou Elfadl.

O Partido Comunista Sudanês (SCP), a Ordem dos Advogados de Darfur e a Coordenação Geral de Deslocados e Refugiados criticaram o acordo como um mero arranjo de compartilhamento de poder entre a junta e os líderes rebeldes. As questões-chave de recursos e reabilitação das Pessoas Deslocadas Internamente (IDPs) ainda precisam ser consideradas com seriedade, tornando a paz em Darfur ainda fora de alcance.

Outros estados na região de Darfur, incluindo Darfur do Sul e Darfur do Norte, também sofreram ataques e assassinatos. No final do mês passado, Minni Minnawi, ex-líder rebelde da maior facção do Exército de Libertação do Sudão, pediu às pessoas que se armassem. Minnawi assinou o acordo de Juba e passou a apoiar o golpe depois de ser nomeado governador regional de Darfur (incluindo cinco estados).

O chamado às armas de Minnawi, argumentou Elfadl, é uma indicação de seu “desespero”. “Depois do acordo de Juba, seu próprio grupo armado se dividiu em diferentes grupos e ele não pode mais contar com eles. Então ele está pedindo que outros peguem em armas”, disse Elfadl. “Não havia necessidade de ele convocar as pessoas a pegar em armas. As armas estão por toda parte em Darfur e uma guerra civil já está em andamento. Ele está apenas alimentando-a ainda mais.”

Seu chamado às armas, reitera Elfadl, “é apenas uma confirmação clara de que o acordo de Juba não trouxe paz alguma a Darfur. Pelo contrário, Darfur está passando pela pior violência que já viu desde o início da guerra civil em 2003.”

“As consequências foram devastadoras para as comunidades, com mais de 100.000 pessoas forçadas a fugir pela fronteira para o Chade”, disse Toby Howard, coordenador da agência de refugiados da ONU (ACNUR) em Darfur, na semana passada. Outros cem mil estão desabrigados dentro de Darfur.

Em todo o Sudão, quase 2,5 milhões de pessoas foram deslocadas desde o início da guerra em 15 de abril. Este número inclui cerca de 1,9 milhão de pessoas que foram deslocadas internamente e outras 550.000 que fugiram para países vizinhos, informou a Organização Internacional para as Migrações (OIM) na segunda-feira, 19 de junho.

Elas incluem mais de um milhão de crianças, 270.000 das quais foram deslocadas em Darfur, que tinha a maioria dos 3,6 milhões de deslocados internos que já viviam em acampamentos no Sudão até o final de 2022.

O acordo de cessar-fogo reduziu a escala de violência em Darfur, embora ataques tenham sido relatados no norte de Darfur. Mas o cessar-fogo expirou às seis da manhã de quarta-feira, 21 de junho.

Forças democráticas lutam pela paz

Nenhuma resolução para o conflito no Sudão pode ser negociada pelos EUA e pela Arábia Saudita em Jeddah, argumentou Elfadl, acrescentando: “A resolução deve ser encontrada aqui no Sudão”. Deixado às potências internacionais para pôr fim ao conflito, adverte, o Sudão será lançado para uma situação comparável à do Iraque, Síria ou Líbia. A guerra, ele argumentou, só pode ser interrompida de forma decisiva depois que o poder for “usurpado” dos generais, e eles forem levados a julgamento por iniciar esta guerra.

Para isso, “estamos tentando, como primeiro passo, encontrar o acordo mais amplo possível sobre um programa mínimo comum para o futuro do Sudão, entre todas as diferentes forças políticas que realmente se opõem a esta guerra”.

Já em partes do Sudão onde não há luta ativa, os manifestantes estão tentando recuperar as ruas com manifestações anti-guerra e pró-democracia, especialmente em Atbara, uma cidade do nordeste com uma história de militantes trabalhistas que viram os primeiros protestos da Revolução de Dezembro, em 2018. “Port Sudan e algumas outras cidades na região leste também testemunharam protestos”, disse Elfadl.

“Embora ainda não seja grande o suficiente, é o começo. As forças democráticas no Sudão, que são a maioria da população, estão gradualmente tentando voltar a ocupar as ruas e reivindicar a revolução. Sim, ainda está em fase embrionária. Mas é o começo de uma longa marcha para voltar à escala das manifestações de massa que caracterizaram o Sudão antes do início da guerra em 15 de abril”.

O artigo foi atualizado para refletir a retomada dos combates em 21 de junho.