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Como o surgimento de novos centros culturais está mudando Havana

Apostando na fusão de tradição e contemporaneidade, conheça os novos espaços culturais cubanos

Havana (Cuba) |

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O Coca Blue e la Zorra Pelua, um dos novos espaços culturais de Cuba - Coca Blue y la Zorra Pelua

Ao pôr do sol em Havana, o tradicional Malecón - como é chamado o longo muro que se estende ao longo da costa norte e atravessa a cidade - torna-se o ponto de encontro de famílias, amigos e casais para assistir aos últimos minutos do sol se afogando no mar. Violões, músicas e danças acompanham a passagem. E, enquanto a luz permite, fotógrafos, profissionais ou amadores com seus celulares, tentam capturar as cores do entardecer. 

As diversas expressões artísticas fazem parte da vida cotidiana de Havana. Desde os recitais nos bairros até as praças onde grupos de jovens se reúnem para dançar. Desde o triunfo da Revolução em 1959, o acesso à cultura sempre esteve no centro das preocupações das políticas públicas. E, nos últimos anos, acompanhando as mudanças na ilha, as iniciativas culturais dos cubanos têm se multiplicado.  

"Havana é muito fotogênica. Tem muitos tons de cores e texturas. Os edifícios antigos e até mesmo destruídos, em conjunto com os carros velhos, formam paisagens muito fotográficas", reflete Osmel Azcuy ao subir as escadas para o terraço do Malecón 663. Muitas das paredes decoradas com fotografias do próprio Osmel são prova da qualidade fotogênica de que ele está falando.  

Ao chegar ao terraço, Osmel se aproveita de um descuido do DJ e assume o controle da música por um tempo. Osmel trabalha no Malecón 663, um hotel butique localizado no meio do caminho entre Havana Velha e o centro de Havana, há quase quatro anos. O local promove exposições, recitais e feiras de designers. O edifício Malecón, que fica de frente para o calçadão que lhe dá o nome, tem três andares e cada um de seus quartos é decorado de forma a homenagear as diferentes épocas de Havana durante o século XX. 

"Cheguei ao Malecón por casualidade. Eu havia terminado uma exposição fotográfica em Nova York e, quando me enviaram as fotos para cá, fiquei louco para encontrar um lugar onde apresentá-las. Um dia eu estava caminhando e o lugar me chamou a atenção. Então, decidi entrar e foi assim que conheci Sandra, a dona. Contei a ela sobre minha intenção de montar a exposição e foi assim que fizemos a exposição aqui e, depois disso, outros projetos começaram a acontecer até hoje".

A formação de ator de Osmel Azcuy é evidente em suas obras. O dramatismo de seus retratos privilegia a emocionalidade conceitual em detrimento da narrativa linear. Longe dos estereótipos de qualquer tipo de realismo social, como se fosse um sentido geracional, Osmel aposta em uma arte sem preconceitos e fora de mandatos. Uma arte que busca novos espaços para se mostrar. 


Obra de Osmel Azcuy / Reprodução Instagram

"Há muitos projetos artísticos muito interessantes que estão nascendo. Na pintura, na fotografia, na dança e na música. Cuba está cheia de lugares para sair. E não apenas, como as pessoas pensam, para sair para uma festa. Mas também lugares onde você pode se educar, onde você pode aprender. E, nesse sentido, acho importante que existam projetos como o Malecón, que dão às pessoas a oportunidade de ver algo diferente, algo novo. Eles estão empenhados em abrir sua mente e sair do cotidiano. Acho que é bom que haja cada vez mais lugares como esse", diz Azcuy. 

A localização privilegiada do terraço do Malecón 663 permite que você veja os principais edifícios de Havana: o Capitólio, o Farol, o Hotel Presidencial. Pontos cardeais de uma cidade construída de frente para o mar. Ao mesmo tempo, é um dos espaços que mais tem colaborado com exposições internacionais de arte, muitas delas ligadas às Bienais de Havana.

A noite no Malecón   

"Quando montamos esse projeto, o fizemos pensando no lugar que gostaríamos de visitar se fôssemos a Havana. Um lugar onde diferentes expressões artísticas teriam um lugar. Mas, acima de tudo, onde a cubanidade estaria em primeiro lugar", diz Sandra Exposito, uma das criadoras do Malecón 663, ao Brasil de Fato

Todos os objetos dentro do prédio foram desenhados por artistas cubanos. E tudo o que está à venda, de alimentos à roupas de grife, é produzido com materiais da ilha. Sandra Exposito observa que, além da escassez que pode existir, como resultado do bloqueio, eles sempre se propuseram a fazer tudo com o que têm. 

Dentro do edifício, a grande maioria dos móveis foi feita com materiais reciclados. Além disso, de acordo com uma filosofia sustentável, materiais descartáveis, como plásticos, foram proibidos.  

"Às vezes, há uma ideia de que o que vem de fora é melhor. E nós nos propusemos a trabalhar na direção oposta. Privilegiando o que é produzido aqui com o que temos aqui. E foi crescendo de pouco a pouco, para nós é uma alegria muito grande que os jovens venham com propostas para mostrar o que fazem conosco. Foi assim que se gerou uma comunidade muito bacana, de jovens que estão experimentando e fazendo coisas novas com muito valor e criatividade", diz Sandra. 

A criação do espaço foi quase uma coincidência. Sandra nasceu na França e viajou para Cuba no final dos anos 1990 para aprender a dançar salsa. De volta à sua terra natal, ela se apaixonou por um músico cubano que estava em turnê pela Europa. Eles decidiram se mudar para Cuba e construir uma vida lá. 

Depois de alguns anos, ela e o marido compraram um apartamento no prédio com a ideia de morar em frente ao Malecón. Naquela época, o prédio estava abandonado, então eles tiveram que começar a reformá-lo para torná-lo adequado para morar. No entanto, quando o trabalho começou, eles descobriram que a arquitetura do próprio edifício estava muito danificada. Isso os obrigou a fazer reformas em todo o prédio e eles foram, pouco a pouco, comprando o restante dos apartamentos.

Quando se encontraram com um espaço tão grande só para eles, decidiram abrir as portas para transformá-lo em um espaço cultural. A primeira coisa que fizeram foi convidar jovens arquitetos, muitos dos quais ainda não haviam terminado seus estudos, dando-lhes liberdade para fazer experiências com o espaço. Como muitos desses espaços em Havana, o Malecón 663 acompanhou as diferentes mudanças legislativas que ocorreram em Cuba. Eles começaram como um grupo de Trabalhadores Autônomos (TCP) até se registrarem como uma pequena empresa (Mipyme) hoje. Um lugar a partir do qual eles acompanharam as mudanças culturais que vêm ocorrendo na ilha nos últimos tempos, dando espaço às novas expressões artísticas cubanas.

Uma pequena fazenda de arte em Havana 

"Para tentar entender o Caribe, é preciso entender a diversidade que compõe essa região. Do lado de fora, muitas vezes vemos uma imagem feita para consumo de exportação que não consegue capturar a riqueza ou a multiplicidade real do Caribe. Estamos falando de uma região que talvez seja uma das mais plurais em sua conformação, cuja história inclui os povos nativos, as conquistas espanholas, francesas, holandesas e inglesas, bem como a população africana escravizada", diz Adrián Villazon, gerente cultural do Coco Blue e do Zorra Pelua, para o Brasil de Fato.

Adrián fala com entusiasmo enquanto visitamos a galeria do Coco Blue e la Zorra Pelua, um centro cultural localizado no coração do bairro de Vedado, onde são realizadas várias atividades artísticas e pedagógicas destinadas a promover a arte cubana contemporânea. 

"A professora e pesquisadora de arte caribenha Yolanda Wood Pujols sempre se refere ao Caribe como um espaço 'multi': multifacetado, multilíngue, multicultural, multiétnico, multirreligioso. Em outras palavras, uma região heterogênea, diversa e plural. No nosso caso, como parte do Caribe hispânico, nos encontramos nesse meio-termo. Por um lado, somos parte do Caribe, mas também fazemos parte da América Latina. E isso gera uma imensa riqueza em nossas expressões culturais, que são, por definição, diversas", acrescenta. 

O Coco Blue e la Zorra Pelua, um espaço criado pelo artista visual José Emilio Fuentes Fonseca, mais conhecido como Jeff, propõe abrigar parte dessa multiplicidade cultural. 

Com uma longa carreira artística, Jeff se tornou uma figura conhecida na cidade em 2009 quando, para a Bienal de Havana, criou uma série de 12 esculturas de elefantes de metal em tamanho natural, que ele movia à noite para que amanhecessem em diferentes partes da cidade. Hoje, a manada repousa na praça do Centro Empresarial Miramar. 

Durante a pandemia, em um terreno que havia se tornado um depósito de lixo, Jeff construiu o que hoje é o Coco Blue e la Zorra Pelua. Um espaço que, por si só, é uma obra de arte As tábuas de madeira e as vigas de ferro sobre as quais a arquitetura do local foi construída foram todas feitas de caixas de elevador descartadas da Rússia. Assim como a grande maioria dos objetos que compõem o espaço também são reciclados.  

"Quando se pensa ou se refere a Cuba em termos de música, sempre vem à mente a salsa, as baladas e a trova. Mas, acima de tudo, as novas gerações começaram a implementar novos estilos ou a fundi-los. A cena cubana contemporânea está experimentando muito com a fusão. Está até mesmo resgatando gêneros ou ritmos que deram origem ao que conhecemos hoje como música cubana, fundindo-os com ritmos e gêneros provenientes da América Latina, dos Estados Unidos ou da Europa. Nossa abordagem aqui, especialmente com essas novas mudanças que estamos tentando promover o tempo todo, é abrir espaço para toda a criação cubana - seja ela tradicional ou jovem - que é sempre bem-vinda", diz Adrián Villazon. 

Além de oferecer um espaço visual para novos artistas e linguagens artísticas, o espaço cultural está criando um sistema de bolsas para ajudar jovens artistas. Principalmente para aqueles que são do interior do país e que muitas vezes têm dificuldade de chegar à capital da ilha. Parte dos lucros obtidos com os serviços gastronômicos, shows e exposições oferecidos pelo local é destinada a um fundo que serve para apoiar essas bolsas de estudo. 

"Sabemos que há artistas que são extremamente bons e merecem oportunidades. E embora haja um grande esforço do Estado para que eles possam estudar e realizar seu trabalho, nós também queremos poder dar nossa contribuição. Especialmente neste contexto difícil pelo qual estamos passando. Acreditamos que todos devem ter oportunidades e é por isso que também criamos este espaço", diz Adrián Villazon com orgulho. 

Longe dos selos turísticos, a vida cultural de Havana é cheia de vida e vem passando por enormes mudanças. Com novos gêneros, novas linguagens e, acima de tudo, novos espaços para se desenvolver.

Edição: Thales Schmidt