entrevista

Presidente do CNS sobre crimes cometidos na pandemia: 'Vamos cobrar a responsabilização'

Presidente do Conselho Nacional de Saúde, Pigatto diz ser preciso reparar os direitos violados pelo governo Bolsonaro

Brasil de Fato | Porto Alegre (RS) |
Fernando Zasso Pigatto preside o Conselho Nacional de Saúde, uma instância colegiada e integrante da estrutura do Ministério da Saúde - Foto: Arquivo Pessoal

O gaúcho Fernando Zasso Pigatto preside o Conselho Nacional de Saúde, uma instância colegiada e integrante da estrutura do Ministério da Saúde. É o CNS que fiscaliza, acompanha e monitora as políticas públicas de saúde. Integrado por 48 conselheiros e suplentes, representa os usuários, funcionários e gestores do SUS. Estão juntos também representantes de movimentos sociais, ONGs, além de entidades de prestadores de serviço e empresariais, entre outros segmentos.

Nesta entrevista a Brasil de Fato RS, Pigatto nota que o CNS passou grandes dificuldades nos últimos quatro anos com a “tentativa de desmonte do SUS, retirada de direitos e de ataques à vida, à democracia e ao controle social”. Na véspera da abertura de mais uma conferência nacional de saúde, onde quatro mil pessoas são aguardadas, ele promete que o encontro irá marcar “uma virada histórica”. 

Acompanhe:  

Brasil de Fato RS - Começou no domingo (2), em Brasília, a etapa nacional da 17ª Conferência Nacional de Saúde (CNS) com o tema “Garantir Direitos e Defender o SUS, a Vida e a Democracia”. Como é possível dizer que o SUS, a vida e a democracia estiveram sob ameaça nos últimos quatro anos, o que é preciso para defendê-los?

Fernando Pigatto - A conferência é um processo de construção coletiva. Mesmo na adversidade conseguimos promover etapas preparatórias, conferências municipais, estaduais e livres. Sua própria convocação em 2021 foi uma resposta aos retrocessos que tentavam se impor à sociedade brasileira. Voltamos às mobilizações de rua ainda num contexto adverso, de tentativa de desmonte do SUS, retirada de direitos e de ataques à vida, à democracia e ao controle social. Conseguimos superar as adversidades com muito trabalho, em rede com os conselhos municipais e estaduais, além de entidades e movimentos sociais. Somos resistência e esperança por um SUS público, igualitário e para todas as pessoas.


"A conferência é um processo de construção coletiva. Mesmo na adversidade conseguimos promover etapas preparatórias, conferências municipais, estaduais e livres" / Foto: Arquivo Pessoal

Entre os propósitos da 17ª CNS está o objetivo de incidir sobre os planos nacional e estaduais de saúde, bem como nos planos plurianuais nacional, dos estados e do DF. Se não tivermos orçamento garantido, as políticas públicas não serão executadas. Vamos contribuir com o Plano Nacional de Saúde ao remeter propostas e diretrizes.

Se não fosse o SUS e o controle social, teríamos muitas mais vidas perdidas

Tivemos até há pouco um presidente que disse que a vacina contra covid-19 poderia causar Aids ou transformava pessoas em jacarés. O Brasil terminou a pandemia com mais de 700 mil mortes. Afirma-se que, com menos negacionismo, vacinação mais cedo e esforço do governo federal através de campanhas de conscientização, seriam poupadas metade das vidas perdidas. Qual a punição que merece quem deixou a tragédia ser bem maior do que poderia ser? Você acredita que ele será punido?

O CNS pediu a representantes da Organização das Nações Unidas (ONU) e a outros órgãos nacionais e internacionais que o governo brasileiro seja responsabilizado pelas ações erráticas e omissões no combate à pandemia da Covid-19, que levou a óbito mais de 700 mil pessoas no país. Fizemos a entrega formal do relatório “Violações dos Direitos Humanos no Brasil: Relatório de Casos no Contexto da Pandemia da Covid-19”. O documento aponta a responsabilização de culpados e a reparação dos direitos violados.

Precisamos fazer do luto a luta e não podemos deixar cair no esquecimento. Vamos continuar cobrando a responsabilização de quem cometeu crimes durante a pandemia. Apesar do governo brasileiro ter negado a existência do vírus, se não fosse o SUS e o controle social, teríamos muitas mais vidas perdidas. Uma gestão pública que não leva em consideração a sociedade perde a oportunidade de unir forças, encontrar soluções e transformar realidades. O controle social não se dá por acaso, é base de muita luta. 

Publicamos dezenas de recomendações, moções, pareceres técnicos, cartas abertas, notas públicas, lives, projetos de formação, campanhas... Do início de 2020 até dezembro de 2021, emitimos um posicionamento do CNS a cada três dias! Trabalhamos promovendo debates, deliberando ações e recomendações ao Ministério da Saúde e outros órgãos do Executivo, além de acionar inúmeras vezes o parlamento, como ocorreu durante a CPI da Pandemia, instaurada no Senado, em que o Conselho foi peça fundamental, fornecendo um dossiê para as investigações. O CNS também realizou campanhas, produziu pareceres técnicos e outras iniciativas. Todo o material publicado está disponível no site do CNS.

Apoiamos o relançamento do Mais Médicos com toda força e prioridade

Recentemente, o Conselho Federal de Medicina publicou a seguinte mensagem: “Você confiaria a vida da sua mãe, ou de qualquer pessoa amada, a alguém que não comprovou conhecimento em medicina? A resposta é clara! Por isso, pessoas que possuem diploma de medicina obtido no exterior só podem exercer a profissão no Brasil após aprovação no Revalida. Isso é indispensável para a segurança do paciente e a eficácia do atendimento”. Como avalia essa afirmação? 

Em 2019, o CNS elaborou a recomendação 026 para que o MEC ampliasse o reconhecimento de diplomas de médicos estrangeiros no país, considerando que o Brasil é o único país do mundo com mais de 100 milhões de habitantes que dispõe de um sistema de saúde público, universal e gratuito. 


"Precisamos fortalecer o Movimento Nacional pela Vacinação para que a gente volte a alcançar os índices de vacinação que tínhamos até 2015 e 2016" / Foto: Arquivo Pessoal

Ressaltamos também que o programa Mais Médicos obteve reconhecido êxito até meados de 2018, quando alcançou resultados significativos no provimento de médicos em municípios/regiões de maior necessidade, com ampliação da cobertura da atenção básica, inclusive para a população indígena, com mais de 70% dos municípios brasileiros atendidos pelo projeto, beneficiando 63 milhões de brasileiros. 

É importante, portanto, que o CNS continue monitorando e avaliando, especialmente agora com a retomada do programa, como se dá este processo de seleção e permanência dos profissionais médicos, atendendo a alta demanda que o país e sua população possuem, sem prejudicar a qualidade e eficiência da cobertura assistencial em todo o território. Estamos apoiando o relançamento do programa com toda a força e prioridade, porque ele nunca deixou de existir, apesar de ter sido atacado e enfraquecido pelo governo anterior.

A pandemia só potencializou  a importância do SUS e seus desafios

Como avalia o comportamento do Conselho Federal de Medicina durante a pandemia?

O CNS tem posição explícita sobre a atuação errática e omissões do governo federal durante a pandemia e criticamos da mesma forma órgãos ou entidades que corroboraram com o agravamento da situação, que gerou tristezas, dores, sofrimentos, adoecimentos e mortes naquele período. Atuamos com a responsabilidade de quem defende a ciência e o SUS. Vamos sempre estar do lado da vida e da democracia. A pandemia só potencializou a importância do SUS e seus desafios. 

Qual o papel do CNS e como incide sobre as questões relacionadas à saúde?

O Conselho Nacional de Saúde (CNS), tem como missão fiscalizar, acompanhar e monitorar as políticas públicas de saúde nas suas mais diferentes áreas, levando as demandas da população ao poder público. É responsável por realizar conferências e fóruns de participação social, além de aprovar o orçamento da saúde e acompanhar a sua execução, avaliando a cada quatro anos o Plano Nacional de Saúde. Tudo isso para garantir que o direito à saúde integral, gratuita e de qualidade, conforme estabelece a Constituição de 1988, seja efetivado a toda a população no Brasil.

Precisamos fortalecer a vacinação para que voltemos aos índices que tínhamos até 2016

Vimos, nos últimos anos, um aprofundamento das desigualdades sociais e o acirramento da insegurança alimentar. Como isso afeta a saúde e como superar esse quadro?

A fome no Brasil é um problema histórico que, após uma queda considerável, voltou a crescer nos últimos anos. Afeta hoje uma parcela de 15,5% da população do país, ou seja, cerca de 33 milhões de pessoas. A insegurança alimentar e nutricional é resultado das más condições de vida, de trabalho, emprego e renda e da falta de acesso a políticas sociais voltadas à garantia de direitos.

No Brasil, a fome afeta em especial as pessoas em situação de maior vulnerabilidade social, como as mulheres, população negra, população LGBTQIA+, pessoas com deficiência, população em situação de rua, ribeirinhos, indígenas, pessoas que vivem em territórios de quilombos e população privada de liberdade. Recaem sobre o SUS todas as consequências da insegurança alimentar e nutricional e da ‘carga dupla da má nutrição’, como a desnutrição, obesidade, hipertensão, diabetes e suas consequências.


"O posicionamento do governo anterior sobre a pandemia foi no sentido de colocar em prática um projeto de morte" / Foto: Arquivo Pessoal

Com a mudança de governo, vimos de volta a imagem do Zé Gotinha, em um momento em que o país apresenta baixíssimos índices de vacinação. O Brasil já foi referência em relação à imunização...

A gente precisa fazer com que a vida seja preservada. O Zé Gotinha chega com força. Precisamos fortalecer o Movimento Nacional pela Vacinação para que a gente volte a alcançar os índices de vacinação que tínhamos até 2015 e 2016. É um movimento de todo o país para que novamente voltarmos a ser exemplo para o mundo. Envolver as escolas, envolver os órgãos públicos, inclusive dos programas sociais do governo, como o Bolsa Família. 

O posicionamento do governo anterior foi   de colocar em prática um projeto de morte

Qual sua avaliação sobre a saúde nos últimos anos e as expectativas com o novo governo e também com a conferência? 

O posicionamento do governo anterior sobre a pandemia foi no sentido de colocar em prática um projeto de morte. Para aquela turma, há pessoas descartáveis. E todo mundo sabia quem morreria mais – a população de periferia, a população preta, a população pobre, a população idosa, que para eles não precisava existir. E um vírus veio para ajudar a exterminar parte dessa população descartável. Mas agora, temos um acúmulo de mais de três décadas do SUS, que nos autoriza a constatar que, nos momentos de maior participação, é que avançamos nas políticas públicas, em mais garantias de direitos e na consolidação da saúde como direito humano. Estamos novamente nesse caminho, passando por um novo momento de reafirmar o controle social, os princípios do SUS, os próprios conselhos e a democracia. 

Vínhamos de um tempo e de um processo em que a conferência municipal elegia a delegação que iria para a estadual e a conferência estadual elegia a delegação para a nacional. Mais de quatro mil pessoas são aguardadas em Brasília para definir propostas e diretrizes que nortearão o SUS nos próximos anos. Ao todo 4.434 pessoas foram eleitas delegadas, 4.048 das conferências estaduais e 386 das conferências livres para deliberar sobre cerca de 1,5 mil propostas e diretrizes, elaboradas em conferências municipais, estaduais e conferências livres.

Foram 99 conferências livres em todo o país, com possibilidade de participação ampliada, com as mais variadas temáticas: saúde da população negra, educação popular em saúde, comunicação em saúde, saúde da mulher, saúde do trabalhador e da trabalhadora são alguns exemplos. Vai ser uma virada histórica do processo de conferências e vem num momento de retomada da participação, reafirmação e radicalização da democracia.


Fonte: BdF Rio Grande do Sul

Edição: Ayrton Centeno