Opinião

Artigo | Dois anos após assassinato de presidente, Haiti segue mergulhado em crise

EUA defendem intervenção estrangeira, mas Brasil e Canadá recusam o papel

São Paulo (SP) |
Protesto no Haiti contra intervenções estrangeiras - Richard Pierrin / AFP

Ao longo das últimas semanas, as intensas mobilizações internacionais de governos e da ONU colocaram o tema da crise haitiana em um patamar de alta relevância da agenda política internacional. Importantes encontros como a visita do secretário-geral da ONU, António Guterres, ao Haiti no dia 1 de julho, a participação de Guterres e do secretário de Estado dos EUA, Anthony Blinken, na cúpula da Comunidade dos Estados Caribenhos (CARICOM) em Trindade e Tobago no dia 5 de julho, o encontro do presidente Lula com o primeiro-ministro haitiano Ariel Henry em Paris no dia 22 de junho, e o recente anúncio do chanceler brasileiro Mauro Vieira de buscar fortalecer a Polícia Nacional Haitiana, feito durante encontro com a chanceler canadense – estas movimentações indicam o aumento da disposição internacional em buscar alguma solução para a grave situação humanitária e política pela qual passa o Haiti. 

Dois anos atrás, na madrugada de 7 de julho de 2021, o então presidente Jovenel Moïse foi assassinado na sua casa por um grupo de mercenários formado por ex-soldados colombianos. Desde então, a crise multidimensional do país tem se aprofundado, com seus aspectos políticos, securitários e humanitários se reforçando mutuamente. O aumento da violência cometida pelas gangues em disputas por territórios dificulta o fornecimento de serviços básicos à população haitiana (como saúde, educação, alimentação, transporte, comércio e moradia) e a realização de eleições. Por outro lado, a ausência de um único funcionário do governo que tenha sido eleito democraticamente (o Senado está vazio e o atual primeiro-ministro Aruel Henry foi nomeado por Moïse poucos dias antes de ser morto) coloca o país em uma grave crise de representatividade, exaurindo a legitimidade das instituições políticas, enfraquecendo os acordos internos propostos pelo governo de fato, e gerando um vazio de governança, prontamente ocupado pelas gangues.  

Com a crise política e securitária, os dados humanitários têm se tornado cada vez mais alarmantes. Recentemente, o secretário-geral da ONU advertiu que a insegurança na capital, Porto Príncipe, onde as gangues controlam de 50% a 80% da cidade, havia “alcançado níveis comparáveis àqueles de países em conflito armado”. Segundo dados da ONU, em 2022, 73.500 pessoas deixaram país; a taxa de homicídios aumentou mais de 30% frente ao ano anterior, e os sequestros mais que duplicaram. Atualmente, cerca de 5,2 milhões de pessoas (pouco menos da metade da população de quase 12 milhões) precisam de assistência humanitária, e a ONU tem apenas 23% dos US$ 720 milhões solicitados para a ajuda. Segundo Jacqueline Charles, do Miami Herald, um documento interno da ONU recentemente divulgado indica que, com mortes, renúncias, exonerações de policiais, a força conta atualmente somente com 3.500 membros em serviço ativo para todo o país. Em 2022, este número, de acordo com dados do Escritório da ONU no Haiti, era de pouco menos de 9.000.

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Tabela com dados de segurança do Haiti: As linhas indicam os números de homicídios, sequestros, policiais mortos e imigrantes haitianos detidos pelos EUA.

As dinâmicas entre os atores e os processos mais imediatos que levaram ao assassinato de Moïse nos dão uma síntese importante para compreendermos o atual contexto da política e da violência no Haiti. Até onde se sabe, o plano foi elaborado por haitiano-americanos que viviam no sul da Flórida, com a participação de um candidato à presidência, alguns policiais, um ex-informante da DEA (agência antidrogas dos EUA) e empresas privadas de segurança norte-americanas. As empresas privadas de segurança, por exemplo, algumas delas com conexões internacionais, têm atuado no Haiti desde o final dos anos 1980.

Saques e violências cometidas a partir do final da ditadura Duvalier, além da incapacidade do Estado em conter as gangues armadas aparentam ter sido um fator significativo que aumentou a demanda por estes serviços. Segundo relatório da UNODC de abril, os dados mais recentes (que datam de 2012), indicam que cerca de metade dos clientes das empresas privadas de segurança são embaixadas estrangeiras e ONGs, com o restante consistindo em bancos, outras empresas e escolas. Dados quantitativos variam entre 75.000 e 90.000 indivíduos trabalhando no setor, com cerca de 100 companhias em todo o país. Ou seja, era uma quantidade ao menos 5 vezes maior que o número de pessoas que compunham a Polícia Nacional Haitiana naquele momento. Em 2019, por exemplo, mercenários norte-americanos foram presos com armas e equipamentos militares, aparentemente contratados por Moïse para ajudar a movimentar US$ 80 milhões de uma conta no Banco Central. Eles foram soltos em poucos dias e enviados de volta aos EUA.

O Haiti não possui nenhuma indústria de armamento. O mesmo relatório da UNODC aponta que, embora o Haiti esteja sob um embargo de armas por parte dos EUA, membros das agências públicas de segurança e empresas privadas conseguem importar armas, munições e equipamentos através de uma série de exceções na legislação norte-americana. Entre 2016 e 2020, os EUA aumentaram o seu apoio à Polícia Nacional Haitiana de US$ 2,8 milhões para US$ 12,4 milhões, sem que este aumento contivesse o aprofundamento da crise que enxergamos agora. De fato, a grande maioria do armamento utilizado pelas gangues chega ao país através dos EUA, em uma rota que passa pela Flórida e em alguns casos, pela República Dominicana ou Jamaica, e congressistas norte-americanos têm pressionado para a realização de investigações sobre o tráfico de armas dos EUA para o Caribe.

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Indicativo do volume de armas de fogo apreendidas por fonte no Haiti (2020-2022).

Uma nova intervenção militar à vista?

A ideia de uma intervenção militar no Haiti não é uma novidade do atual momento. Nos EUA, desde 2019, jornais como New York Times e Washington Post têm defendido recorrentemente uma intervenção no país – embora confrontada com a resistência de congressistas norte-americanos. No entanto, com o aprofundamento da crise haitiana, as pressões por uma intervenção internacional têm crescido e, em 2022, o governo Biden se juntou à República Dominicana, que defendida uma intervenção no Haiti desde ao menos junho daquele ano. Em outubro daquele ano, os EUA submeteram ao Conselho de Segurança da ONU uma resolução para a criação de uma força militar e policial de intervenção. Contudo, desde então, a proposta segue travada, devido à resistência de Rússia e China.  

Os secretários-gerais da ONU e da OEA também passaram a defender publicamente uma intervenção no Haiti desde o final de 2022. Guterres passou a incentivar a criação de uma “força de reação rápida liderada militarmente” – uma espécie de operação alternativa às missões de paz tradicionais da ONU, mas que teria “todo o apoio do Conselho de Segurança”. Além disso, o secretário-geral da ONU também tem reiteradamente se pronunciado para que um grande país assuma a liderança desta operação, em claro gesto a EUA, Canadá e Brasil, que seguem relutantes em assumir esta função. Nos EUA, além das resistências no Congresso, lideranças militares norte-americanos também já se manifestaram desfavoravelmente à ideia. Desde o ano passado, o governo Biden iniciou uma grande campanha para pressionar os governos do Canadá e do Brasil a assumirem a liderança desta operação.  


O ex-presidente haitiano Jovenel Moïse foi assassinado em sua casa no dia 7 de julho de 2021 / Jovenel Moïse/Twitter

Do lado do Canadá, o país tem sido contrário a uma nova intervenção militar no Haiti, com resistências também dentro das suas Forças Armadas e do Parlamento. A política do país tem sido de apoiar e tentar fortalecer a Polícia Nacional Haitiana com equipamentos e treinamento, e de impor sanções a indivíduos da elite política e econômica haitiana tidos como ligados às gangues e a violações de direitos humanos. Em fevereiro de 2023, durante encontro da CARICOM, o primeiro-ministro do Canadá, Justin Trudeau, destacou que as missões passadas foram fracassadas em conter a recorrência das crises haitianas.

No Brasil, a posição do governo tem sido de evitar ceder às pressões norte-americanas e de assumir qualquer protagonismo na crise haitiana, conforme recentemente deixou claro Celso Amorim, assessor de Relações Exteriores de Lula. A posição segue a mesma linha da declaração do Grupo de Puebla de outubro de 2022, em que Amorim e Aloizio Mercadante reconheceram o papel que as frequentes ingerências estrangeiras tiveram na recorrência de crises no Haiti. A última iniciativa do Brasil foi manifestada pelo chanceler brasileiro, Mauro Vieira, que disse ter discutido com o Canadá sobre “modalidades de fortalecimento da Polícia Nacional Haitiana”, destacando que o Brasil está pronto para cooperar com o Haiti novamente. O anúncio veio alguns dias após Lula se encontrar com Ariel Henry em Paris, de onde o presidente cobrou uma maior presença do tema do Haiti nas discussões na Europa.

Em Paris, o presidente Lula disse ter discutido com Henry sobre a possibilidade do Brasil cooperar com o Haiti de forma bilateral. Esta posição pode ser entendida como uma tentativa de atuar na crise haitiana – mesmo que sem o protagonismo do passado –, e o primeiro fruto parece ter sido a disposição, anunciada por Vieira, de auxiliar as polícias haitianas em parceria com o Canadá. Trata-se de uma rota aparentemente mais prudente do que o envolvimento na Minustah, missão da ONU que foi liderada pelo Brasil e que foi responsável pelo cometimento de diversas violações no Haiti e pelo ressurgimento do cólera no país.  

Portanto, são dois grandes obstáculos para que uma nova intervenção militar ocorra no Haiti: que Rússia e China suspendam o veto no Conselho de Segurança das aspirações dos EUA, e a disposição de algum país em liderar este malfadado empreendimento.

* João Fernando Finazzi é doutor e mestre em Relações Internacionais pelo Programa San Tiago Dantas (Unesp, Unicamp, PUC-SP) na área de Paz, Defesa e Segurança Internacional e pesquisador do Grupo de Estudos em Conflitos Internacionais (PUC-SP). Faz parte do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os EUA (INCT-INEU). Suas áreas de concentração são Conflitos Internacionais, Intervenções Internacionais, Política Externa dos EUA, Operações de Paz, Policiamento e Haiti.

** As opiniões expressas nesse texto não representam necessariamente a posição do jornal Brasil de Fato.

Edição: Thales Schmidt