Está em curso no Brasil, pela primeira vez com tanta intensidade, um tema presente desde sempre nas pautas dos movimentos feministas e na vida das mulheres com deficiência, o direito a uma política de cuidados.
Esta é uma questão que pode ser tratada pelas diversas visões de mundo, no entanto prevalece ainda a ideia de que o “papel natural” das mulheres é de responder pelos cuidados inerentes à esfera da reprodução da vida. Desta forma, desresponsabilizar o Estado e a sociedade da obrigatoriedade de prover, por meio de políticas públicas, meios para que as pessoas possam usufruir com igualdade a uma vida plena.
Hoje, ao oferecer todo o nosso tempo e nossa vida para termos acesso aos bens básicos, como educar a nós mesmas e aos nossos filhos, criá-los com saúde, manter nossos lares limpos e organizados, alimentamos não só um sistema perverso que expropria nosso tempo, mas também produz o esgotamento da nossa energia e o nosso aprisionamento. Perguntamos, este é um sistema justo?
Mas é bom que percebamos que isso não se dá igualmente entre todas as pessoas. A começar pelas mulheres, pelas mulheres pobres, em especial as mulheres com deficiência. Sabemos exatamente o que significa viver numa sociedade que nos olha de forma diferente até mesmo no direito à maternidade, à sexualidade, ao trabalho, e nega os cuidados que deveriam fazer parte de um sistema de políticas públicas, como prevê a legislação brasileira.
O direito ao cuidado é previsto no Estatuto da Pessoa com Deficiência (Lei 13.146/2015) e na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU (2009) que é norma constitucional. Ao reconhecer em lei este direito, o país deveria garantir que as pessoas o acessem, e ao Poder Público o dever de regulamentá-lo e dar as condições para sua existência.
Sabemos que há iniciativa por parte do governo federal, que criou um grupo de trabalho interministerial para tratar do tema, e também da sociedade civil. É preciso que se criem pontos de convergência, de forma a que o projeto oficial expresse o que nós, sociedade, e mulheres com deficiência organizadas, possamos dizer o que pode mudar em nossas vidas a existência de tais políticas.
Para nós, não se trata de nos colocarmos no lugar de quem “recebe” cuidados, mas de quem hoje vem respondendo por eles na falta de possibilidade de exercer este direito. A sociedade entende por “cuidado” coisas muito diferentes. As mulheres como provedoras de todas as condições para o bem viver é a norma vigente quando educamos, cozinhamos, lavamos, limpamos, assistimos, levamos e trazemos aos filhos à escola ou ao posto de saúde.
Nós entendemos que o cuidado é o conjunto de atividades que permite dedicar-nos a tudo o que não é só cuidar: estudar, trabalhar e usufruir da vida e dos afetos. Isso requer meios para que possamos deixar de resumir nossa vida a esse trabalho ao qual despendemos mais esforço pelas nossas limitações, mas também podermos nos dedicar às nossas necessidades afetivas, emocionas, sociais, culturais, de participação política e comunitária.
Acreditamos que esta, como outras políticas públicas, não deve ser construída ou suprida por uma pessoa ou uma família isoladamente, deve ser fruto de uma política participativa, que gere políticas públicas de acordo com as necessidades, e que nos liberem de maiores barreiras além das que já temos.
Não podemos esquecer que as mulheres com deficiência também exercem o papel de cuidadoras e chefes de família, responsáveis muitas vezes por filhas e filhos, mães e pais, irmãos com deficiência. Pessoas com idade avançada que também requerem cuidado.
Usualmente, quando se trata de mulheres, que são consideradas somente no papel de cuidadoras, espera-se delas total dedicação ao cuidado, que é profundamente desigual entre as classes sociais. Enquanto as mulheres no topo da pirâmide social gastam menos de quatro horas por dia em trabalho de cuidado não remunerado, as da base, empobrecidas, gastam em média oito horas por dia.
Diante desse quadro, a mulher com deficiência, que muitas vezes necessita de cuidados, geralmente não os tem. Ao contrário, ela assume o cuidado como as mulheres sem deficiência, e sua saúde física e mental é negligenciada.
A necessidade de um cuidador ou cuidadora para a pessoa com deficiência, aposentada por invalidez ou idosa está presente nos lares e na nossa sociedade como um todo. Há inclusive um projeto de lei, de autoria da deputada Maria do Rosário, que prevê um benefício para a remuneração de cuidador/a. Mas hoje, para populações de baixa renda, este trabalho é gratuito, feito normalmente por familiares mulheres, mas não esquecemos que é um dever público do Estado.
Viabilizar políticas de cuidado para as mulheres com deficiência implica em reconhecer seu direito a uma vida plena, e não como um tema privado, mas uma garantia que o estado e a sociedade devem assegurar, respeitando a sua autonomia e a prática da não discriminação.
Nessa perspectiva, são necessárias medidas que efetivem garantias legais previstas na Lei Brasileira de Inclusão, que se materializem, entre muitas outras, em forma de serviços públicos de cuidados acessíveis, espaços de permanência temporária equipados de forma a assegurar o convívio e a sociabilidade, prioridade de vagas para creches de filhas e filhos de mulheres com deficiência e garantia de transporte escolar público para todas as crianças que integrem famílias de pessoas com deficiência. E ainda uma inadiável definição de unidades acessíveis em programas habitacionais com valores diferenciados para pessoas com deficiência, em especial mulheres com deficiência chefes de família ou de famílias monoparentais chefiadas por mulheres com deficiência e a disponibilização de equipamentos coletivos de produção de alimentos, lavagem de roupas e outros serviços que podem ser coletivos.
Por fim, é preciso falar em democracia. É preciso dar vozes às pessoas com deficiência, em especial às mulheres nessa condição. Somos uma enorme parcela da sociedade, que aos poucos, pela nossa luta, vamos deixando de ser invisíveis.
Acreditamos que um sistema de cuidados ou uma política de cuidados necessariamente tem que considerar nossas vozes, pois estamos nos limites da exclusão e da exaustão: somos mulheres, com deficiência, muitas em situação de pobreza, chefes de família, vivendo de benefícios sociais ou aposentadorias. Falamos por nós, pelas nossas filhas e filhos, e, certamente, por todas as mulheres que em nossa sociedade estão sob a lógica da divisão sexual do trabalho, mas nosso voto tem o mesmo valor. Temos que lembrar que somos cidadãs de direito, ou seja, os nossos direitos não podem ser diminuídos pelas intersecções de gênero e deficiência, entre outras, que recaem sobre nós.
* Elisandra Carolina dos Santos, coordenadora do Movimento Feminista de Mulheres com Deficiência Inclusivass do RS e do Coletivo Feminino Plural; Ewelin Canizares, do Coletivo Feminino Plural e Movimento Inclusivass; Telia Negrão, Querela Jornalistas Feministas.
* Este é um artigo de opinião. A visão das autoras não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.