No Rastro das Lutas

No Rastro das Lutas: Empreendimentos de energia limpa ameaçam convivência com semiárido

Nesta terceira reportagem da série, movimentos falam sobre avanço de grandes obras sobre o semiárido

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Organizações do semiárido têm avançado em implantação de estratégias de convivência com o bioma - Agência Brasil

Foi-se o tempo em que a visão estereotipada do semiárido estava relacionada, exclusivamente, com a seca, a pobreza, a migração de pessoas para o sudeste. Essa imagem construída e projetada por muitas décadas como uma região reduzida à escassez de chuva não corresponde ao entendimento que as populações locais têm de si e do seu lugar.

Marcadas por um contexto de políticas de assistencialismo, coronelismo e um território subjugado e explorado em cima disso, especialmente, nas décadas de 70 e 80, existiu todo um movimento que entendia a urgência de construir uma nova narrativa sobre o semiárido que, ao contrário do que pensa o senso comum, é uma região cheia de riquezas naturais. Para Marina Rocha, agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT) na Bahia e com atuação no território da Diocese de Juazeiro, acompanhando as comunidades tradicionais de Fundo de Pasto e Ribeirinhas, o semiárido é uma região de vida. De vida, em todos os sentidos.

“Temos a água, a água no subsolo, a água do Rio São Francisco, dos lagos e lagoas. É aqui também que se tem a possibilidade de produzir uma infinidade de alimentos. Desde a produção de caprinos, ovinos, até a apicultura, a produção de mel. Tem também toda a vida das pessoas no semiárido, os povos ribeirinhos, os povos das comunidades de fundo e fecho de pasto, temos também quilombolas, indígenas, então, aqui é uma região rica. Ela tem um peso muito forte quando se fala em termos de nordeste, e também em termos de Brasil”, declara Marina com orgulho do lugar onde vive e trabalha como defensora da terra e de territórios ameaçados pelos grandes empreendimentos do capital, como agronegócio.


Criado no governo Lula, o programa que levava cisternas ao Semiárido foi praticamente abandonado por Bolsonaro / Foto: ASA Brasil

Apesar de toda essa riqueza pontuada por Marina, a região sempre foi marcada por conflitos e muita disputa para construir o bem viver. A agente da CPT olha para o passado e relembra uma experiência potente vivida no semiárido e, que além de ter gerado uma nova convivência com o bioma, mobilizou políticas públicas e novas tecnologias para a vida no local. A construção e o uso das cisternas trouxeram grandes soluções.

“Não se pode negar que foi um momento novo para as populações do semiárido. E isso a gente nota de forma mais forte, no final dos anos 90 e início dos anos 2000. Muitas mudanças aconteceram com a construção e com acesso a essas cisternas das populações do campo. A gente percebe que o maior impacto foi para a vida das mulheres. Geralmente as mulheres, que andavam atrás de água, carregando na cabeça, principalmente água para o consumo humano. Isso, graças a Deus, já não existe mais”, conta Marina.

Ela diz ainda que, quando a comunidade se organizava naquela época para discutir a realidade local e apontar soluções, a presença masculina era majoritária. Mas, atualmente, há um aumento da presença das mulheres e de seu protagonismo dentro das organizações. “Importante também nesse processo foi o trabalho educativo que favoreceu as pessoas entenderem que essas cisternas eram de uso do consumo humano, bem como a cisterna de produção”, declara Marina, ao destacar a diferença que essa ação trouxe para a vida das pessoas da comunidade.

Se há algumas décadas, a luta dos movimentos populares era pela instalação de cisternas que trouxesse mais qualidade de vida para as comunidades, mais recentemente, a ameaça ao território vem da instalação de parques eólicos e solares. A questão tem despertado muitas preocupações no Nordeste do país. Roselita Vitor, camponesa da reforma agrária e coordenadora do Polo da Borborema, no agreste da Paraíba, é ativista experiente no assunto e pontua mudanças representativas na última década.


Chegada dos grandes empreendimentos de energia eólica tem ameaçado convivência com semiárido / Divulgação/Ari Versiani/PAC

“Esse modelo centralizado que tem se expandido no semiárido não dá para gente dizer que ele favorece a convivência com o semiárido e com agroecologia. Por quê? Porque é um modelo que desmata. É preciso desmatar uma área enorme para a construção de uma usina solar. Desmata-se para abrir estrada, desmata-se para construir a base dos aerogeradores e é um modelo que consome muita água para produzir. Então, como é que a gente pode dizer que esse modelo que está aí, de produção de energia é uma energia limpa?”, aponta Roselita.

Ela pontua ainda que diversas famílias de locais onde esses grandes empreendimentos estão sendo instalados passam por extremo sofrimento psíquico ao ver o local onde sempre viveram e seus modos de vida tradicionais impactados pelas obras das ditas energias limpas.

Outra combativa no tema, Marina tem o mesmo entendimento de Roselita quanto aos prejuízos assinados pelas energias eólica, solar e pela mineração. No ponto de vista dela, os impactos negativos são enormes, especialmente, para os jovens e as mulheres.

“Nós entendemos que a energia renovável é necessária para colaborar com a preservação ambiental. Ninguém tem dúvida sobre isso. Agora, o que não se pode admitir é que para a implantação dessas energias haja a expulsão das comunidades do campo e a destruição total da natureza. Como nós sabemos, a nossa região é rica em vento, em sol, em água e tudo isso é aproveitado pelas grandes empresas para gerar mais capital”, afirma Marina.

Preocupadas com a vida futura na região e cheias de proposições e ideias alternativas que possam favorecer as pessoas das comunidades, Marina e Roselita projetam um futuro diferente para o semiárido. “Por que não pensar em descentralização da energia? Por que pensar em grandes projetos que destroem tudo? Destroem a natureza, destroem a vida das pessoas, expulsa as pessoas de seus territórios, mexe com a fauna, a flora, com toda a riqueza do semiárido. Por que não pensar em projetos pequenos que venham a favorecer a vida das comunidades e que essa produção de energia seja, em primeiro lugar, para as comunidades?”, pontua Rocha, da CPT.

“A outra grande pergunta que nós fazemos é: para onde vai essa energia? Então, a energia produzida não fica nas comunidades, às vezes nem fica no município. Essa energia está sendo produzida para a região do sul, para o agronegócio, para as grandes empresas, mas as famílias agricultoras têm desenvolvido uma série de experiências, de produção de energia, a partir de placas solares para pequenas indústrias de polpas nas suas comunidades, padarias. Tem famílias que têm placas solares na sua casa. Tem cooperativas de produção de energia, por exemplo, lá no médio Sertão, na Paraíba, que vai para várias famílias”, declara Roselita.


Roselita Vitor afirma que o modelo energético centralizado adotado atualmente não favorece aos povos tradicionais do semiárido / Arquivo pessoal

Marina conta que esses empreendimentos avançaram muito sobre o semiárido na última década, promovendo devastação de biomas e emigração forçada de comunidades. “A gente já vê toda uma destruição sem precedente. Imagine se esses empreendimentos continuarem sendo implantados de forma desenfreada em nome da ‘energia limpa’”, questiona.

Roselita, além de ser camponesa e militante pela reforma agrária, é também coordenadora da ASA-Paraíba. Ela relembra um importante momento para ampliação desse debate, em março deste ano, após a ASA-Brasil ter entregado ao presidente Lula a carta “Energia Verdadeiramente Limpa para um Semiárido Vivo”.

“O documento da ASA expressa claramente que não dá para construir a convivência com o semiárido de uma forma individualizada e danosa, assediando as famílias agricultoras com a história de uma falsa renda. Um modelo que desmata, um modelo em que afeta a vida das pessoas”, reforça. Ela destaca ainda que, ao se falar nas energias renováveis, é comum se ocultar impactos sociais, na saúde da população, no território e na natureza.


Marina Rocha destaca os impactos positivos da política de construção de cisternas no semiárido / Arquivo pessoal

Mirar as experiências boas do passado para fortalecer os caminhos do amanhã. Roselita enumera o modelo de produção que se quer e o que não se quer nem hoje e nem nunca no semiárido do Brasil. “Nós não queremos um modelo de produção de energia que se apropria da terra das famílias agricultoras, a partir de contratos que nem são analisados e que as famílias nem tem acesso a um advogado para compreender o que tem ali. E que de uma forma discreta se apropria da terra das famílias agricultoras”, afirma.

Ela defende ainda que o semiárido não precisa desse modelo de produção de energia que se apropria de bens comuns, como a terra, o vento ou o sol, para fins exclusivamente privados, que excluem as comunidades. Deixando para essas apenas o ônus da produção e implantação de um grande empreendimento. “Nós não queremos um modelo de energia que agride a natureza, que afasta os animais do nosso bioma. Então, queremos uma energia que seja justa, que seja uma energia apropriada pelas comunidades onde as pessoas tenham o direito de continuar e viver no semiárido, nas suas comunidades, mantendo seus modos de vida”, conclui.

A série de reportagens e podcasts ''No Rastro das Lutas: Movimentos populares abrindo caminhos para a democracia e direitos no Brasil'' é mais uma iniciativa que se relaciona com as ações dos 50 anos da CESE, trazendo uma abordagem voltada para sensibilização da sociedade acerca da contribuição social, cultural, econômica e política dos movimentos sociais no país. E conta com apoio do programa Doar para Transformar.

Edição: Gabriela Amorim