“O passado não reconhece o seu lugar, está sempre presente” (Mário Quintana)
Tomei a liberdade de intitular esse texto dialogando com a obra de Mário Quintana. Olhar para o cotidiano dos embates na sociedade e, em particular, em nossas escolas, é se deparar com uma multiplicidade de passados que se manifestam das mais diversas formas.
Ao mesmo tempo, consternado, recordo outra frase impressionante, porém de outro autor. Millôr Fernandes certa vez proferiu “o Brasil tem um grande passado pela frente”.
Ambas as frases, auto explicativas, ligam passado-presente-futuro e soam como alertas a balizar nossos embates cotidianos pelo futuro, pois, é justamente no presente que somos convocados a tomar partido frente às diversas situações de barbárie. Barbárie cotidiana espetacularizada digitalmente até à banalidade a ponto de transformar o injustiçado em responsável pela injustiça que lhe foi impingida.
A todo instante aqueles que não têm um alvo em suas costas, que não são seguidos em shoppings centers, aqueles que transitam sem ser importunados pela polícia, aqueles que não são encontrados por “balas perdidas”, tentam nos convencer de que a violência do Estado é necessária para manter a ordem, inclusive dentro das escolas públicas.
Tomaram coragem de um tempo para cá, principalmente depois do flerte nazifacista do governo Bolsonaro, para sair do esgoto e defender todo o tipo de política autoritária, reacionária, racista, lgbtfóbica, misógina e machista. Teve até deputado declarando voto contrário à igualdade salarial entre homens e mulheres recorrendo à bíblia.
Nesses tempos, em que somos convocados a defender o óbvio, é preciso gritar em alto e bom som que educação só faz sentido quando produz a autonomia do sujeito para que ele, por si só, seja capaz de ler o mundo e se posicionar diante dele balizado por laços de solidariedade, empatia, senso de justiça e com capacidade de questionar toda e qualquer arbitrariedade. Essa concepção implica, para dialogar com as frases acima, pensar, justamente, qual sujeito para qual sociedade estamos formando.
Nesses tempos em que somos convocados a defender o óbvio, é preciso, com todas as forças, apontar aqueles que querem fazer do passado um eterno presente e fazem de tudo para obliterar o futuro. Fazem-no pois sempre foram beneficiados e assim querem que permaneça. Para esses, a escola deve formar para a adaptação, formar para a aceitação das relações sociais desiguais e injustas, para culpabilização da vítima. São os defensores da “Escola que não toma partido”, do Homeschooling e da militarização das escolas.
Para esses, que se comprazem com a hierarquia, a ordem e a disciplina, a escola deve formar para obediência irrestrita às ordens hierárquicas, um protótipo de militar cumpridor de ordens capaz de disparar oitenta vezes contra um carro de família ou de transformar uma viatura policial em câmara de gás! São os saudosistas do tempo da “cas(v)erna”, para quem é inconcebível a autonomia para além daquilo que lhe foi permitido pensar e dizer. São o restolho do “Manda quem pode”!
Para esses representantes do passado que agem para oprimir aqueles e aquelas que lutam por um futuro mais humano, é preciso dizer que a disciplina da escola pública é a disciplina do estudo, do método de produção do conhecimento, é a disciplina das relações interpessoais ancorados nos princípios do respeito, da solidariedade e da empatia e não a disciplina da obediência cega da hierarquia que busca impedir a reflexão crítica da realidade e da própria relação hierárquica.
Em “Educação após Auschwitz”, Theodor Adorno (1965), escreveu: “Quem ainda insiste em afirmar que o acontecido [Holocausto] nem foi tão grave assim já está defendendo o que ocorreu, e sem dúvida seria capaz de assistir ou colaborar se tudo acontecesse de novo”. Eu tomaria a liberdade de dizer, tendo por base o nosso atual momento histórico, que, quem não vê conexão entre a militarização da educação, a violência policial, o encarceramento e extermínio da juventude negra e o silenciamento da diversidade e das identidades com as situações que vivenciamos nas escolas, no “chão da escola”, já está defendendo o que acontece e já assiste a tudo o que acontece.
Para aqueles e aquelas que apostam no futuro e se lançam contra um passado que não reconhece seu lugar, cantemos junto com Belchior: “No presente, a mente, o corpo é diferente e o passado é uma roupa que não nos serve mais”