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Narrativa antiocidental e guerra acirram ataque à comunidade trans na Rússia

Ativistas trans ouvidas pelo Brasil de Fato contam como a comunidade LGBTQIAP+ tornou-se o'inimigo interno' do Kremlin

Brasil de Fato | Rio de Janeiro (RJ) |
Imagem de arquivo de uma manifestação do orgulho lgbtqia+ realizada em São Petersburgo, na Rússia. - Olga Maltseva / AFP

O Conselho da Federação da Rússia, equivalente ao Senado, aprovou por unanimidade um projeto de lei que proíbe a cirurgia de redesignação sexual no país na última quarta-feira (19). O documento prevê a proibição da alteração do marcador de gênero em documentos de pessoas trans, bem como "intervenções médicas voltadas para a mudança de sexo". A medida gera um alerta na comunidade LGBTQIAP+ russa e tem como pano de fundo a retórica de que é preciso proteger os valores russos contra a influência ocidental.

O projeto de lei foi aprovado após três leituras no Parlamento. Agora, a última etapa para a lei se tornar definitiva é a assinatura do presidente russo, Vladimir Putin. O procedimento é encarado como mera formalidade, considerando a reiterada defesa do conservadorismo na Rússia em oposição aos direitos da comunidade LGBTQIAP+ no discurso de Putin.

Ainda em 2021, em coletiva de imprensa realizada em dezembro, ao se referir à transexualidade, Putin afirmou que o povo da Rússia "tem proteção contra o obscurantismo".

"Eu tenho uma abordagem tradicional: uma mulher é uma mulher, um homem é um homem. Uma mãe é uma mãe. Um pai é um pai. Espero que nossa sociedade tenha uma proteção moral interna, ditada por nossas tradicionais confissões religiosas da Federação Russa", disse Putin na ocasião.

Agora, a segregação da comunidade LGBTQIAP+ na Rússia começa a sair do plano retórico e afetar efetivamente a vida das minorias sexuais no plano jurídico. Em dezembro de 2022, Vladimir Putin assinou uma lei que proíbe completamente a disseminação de materiais que as autoridades russas consideram como "propaganda de relações sexuais não tradicionais". A letra da lei não é clara em relação ao que as autoridades podem interpretar como "propaganda LGBT", logo qualquer demonstração pública de "relações não tradicionais" ou disseminação de conteúdo LGBTQIAP+ na mídia, produção artística, etc., torna-se passível de processo penal.

No caso do mais recente projeto de proibição da redesignação sexual, os termos são mais concretos e representam dificuldades objetivas à vida das pessoas que alteraram seus marcadores de gênero e/ou realizaram cirurgias de redesignação sexual, mas sobretudo às pessoas que ainda pretendiam realizá-lo.

Durante as leituras do projeto na Duma (câmara baixa do Parlamento russo), os deputados aprovaram diversas emendas ao projeto original que minam ainda mais os direitos das pessoas transgênero: agora, aqueles que mudaram seu marcador de gênero serão proibidas de adotar crianças; se duas pessoas são oficialmente casadas e um dos cônjuges tiver mudado o marcador de gênero, esse casamento poderá ser anulado pelas autoridades; e os cartórios não poderão fazer alterações nos documentos com base em atestados de que a pessoa é trans.

Em entrevista ao Brasil de Fato, a pesquisadora e ativista trans Yana Kirey-Sitnikova explica que para as pessoas transgênero que já fizeram a alteração do marcador de gênero em seus documentos, o projeto de lei não é claro e a tendência é que os casos de pessoas que buscarem ajuda médica, seja terapia hormonal ou procedimento cirúrgico após terem alterado os documentos, sejam levados aos tribunais e a decisão dependerá da interpretação judicial.

"Os juristas divergem em opiniões, se pode ser fornecida ajuda médica, ou seja, terapia hormonal e operações para pessoas que já mudaram o sexo no registro civil. Isso não está claro porque, do ponto de vista legislativo, aqueles que já alteraram os documentos devem defender seus corpos na forma a que correspondem os seus documentos. Essa é a lógica. Mas ao mesmo tempo está escrito que se proíbe essas alterações, então vai depender da prática jurídica", explica.

Já para aqueles que não mudaram os documentos, "está tudo claro que não haverá assistência médica", acrescenta a pesquisadora. "Mas ao mesmo tempo, de acordo com meus estudos e de outras pessoas, metade das pessoas trans na Rússia tomam hormônios de forma independente, sem consultar o endocrinologista. Esses hormônios são comprados na farmácia sem prescrição, ou no caso de testosterona, em sites especializados ou no mercado negro. Para estes tudo continuará como antes, operações poderão ser feitas no exterior", acrescenta.

A ativista trans Irmina Letter é categórica ao dizer que o projeto de lei representa um "genocídio" das pessoas transgênero na Rússia, na medida em que mina as condições de vida dessas pessoas, além aumentar a tendência a suicídios

"A partir do momento da assinatura e publicação [da lei], no território da Rússia não será permitido determinar diagnósticos de transexualidade, consequentemente não será permitido mudar marcadores de gênero de seus documentos, nas certidões de nascimento, identidade, passaporte. Não será permitido receber legalmente terapia hormonal, cirurgias plásticas, atendimento psicológico, não será permitido se casar e ter filhos. Na verdade, na minha visão, isso é um genocídio, porque uma grande quantidade de pessoas hoje se veem em um nível de depressão aguda, próximas ao suicídio, porque eles não podem viver aquela vida que lhes pertence em condições confortáveis", afirma em entrevista ao Brasil de Fato.

O argumento é corroborado pela coordenadora do Programa de Aconselhamento para Igualdade de Transgêneros da organização de defesa dos direitos LGBTQIAP+ "Vykhod", Nef Cellarius. Em entrevista ao portal Krym Reali, ela afirma que uma medida como essa estimula a formação de todo um setor de serviços médicos clandestinos, que tende a ser de má qualidade, "o que também aumentará a mortalidade entre pessoas trans". De acordo com a ativista, "este é um precedente quando todo um grupo de pessoas é essencialmente privado de alguns direitos humanos".

Nef Cellarius cita a definição de genocídio adotada pela ONU, que enquadra a criação de condições de vida insuportáveis. "As pessoas transgênero agora estão sendo criadas em condições de vida insuportáveis. E todo o resto, muitos, olham e ficam em silêncio. Afinal, se o Estado conseguiu fazer isso com alguns transgêneros que ninguém nota, o que os impede de fazer o mesmo com algum outro grupo da população?", conclui.

A ativista Irmina Letter conta que, inclusive, já foram relatados dois suicídios de pessoas trans apenas durante o processo de análise do projeto de lei na Rússia.

"Após a segunda leitura do projeto na Duma estatal foram confirmados oficialmente dois suicídios, porque as pessoas não entendem como continuar vivendo, como trabalhar, como ter relações, como viver nesse mundo. E isso em apenas duas semanas em que a Duma estatal analisou o projeto, foram relatados dois suicídios oficialmente. E o que será amanhã? O que acontecerá depois que Putin assinar a lei? Todos devemos nos esconder? Isso é realmente assustador", conclui.

Qual a relação com a guerra da Ucrânia?

O recrudescimento do ataque aos direitos LGBTQIAP+ na Rússia não está desconectado da guerra na Ucrânia. A onda conservadora que atinge direitos de minorias na Rússia está inserida na narrativa contra valores tidos como ocidentais. Essa retórica foi amplamente explicitada pelos deputados russos. Um exemplo foi o discurso proferido por Leonid Slutsky, presidente do Partido Liberal Democrático da Rússia, durante a sessão de leitura do projeto na Duma.

"Como disse o presidente [Vladimir Putin]: 'Vamos determinar por nós mesmos onde nossas linhas vermelhas são traçadas'. Se essa linha vermelha não for traçada, podemos nos encontrar em uma situação em que, como no Ocidente, as crianças serão empurradas para a redesignação de gênero de maneira sutil, praticamente desde a escola", disse.

Pyotr Tolstoy, deputado do Partido Rússia Unida, também discursou na mesma linha ao defender o projeto.

"Nós as aprovamos [as leis] porque a Rússia mudou desde o início da operação militar especial [na Ucrânia]. E esses rapazes, que hoje defendem nosso país com armas em suas mãos, eles devem retornar para um país diferente. Não aquele mesmo país de antes da operação militar especial", disse.

Yana Kirey-Sitnikova conta que inicialmente planejava postergar a alteração do marcador de gênero de seus documentos, mas a intensificação da retórica antiocidental na Rússia em meio à guerra da Ucrânia fez com que ela apressasse a sua documentação na Rússia enquanto era possível. Hoje ela vive fora do país.

"A guerra da Ucrânia exerceu um papel primordial. Eu já senti isso, justamente um ano atrás eu fui mudar os meus documentos, apesar de eu ter planejado fazer isso mais na frente, eu entendi que essa retórica antiocidental em algum momento se voltaria para as pessoas trans, isso era claro para mim. Havia uma confirmação de que isso é uma pressão sobre o Ocidente, e ainda havia a lógica de que as pessoas trans queriam escapar da mobilização, como se as pessoas propositalmente mudassem para o sexo feminino para não serem convocadas", conta.

Já a ativista Irmina Letter argumenta a discriminação da comunidade transgênero na Rússia tem relação inversamente proporcional aos êxitos militares do país na Ucrânia. "No contexto de uma guerra de grande escala, em que não há resultados positivos da Rússia na Ucrânia e eles não podem mostrá-los à sua população, há um resultado 'incrível' na luta contra o 'inimigo interno', com a comunidade LGBTQIAP+. Eles proibiram a 'propaganda', que, na visão deles, teve um resultado muito positivo, e agora eles proíbem a mudança de gênero", analisa.

De acordo com Letter, o discurso retórico que é apresentado à população para justificar a guerra na Ucrânia vincula um suposto desumanismo "neonazista do regime de Kiev", como sustenta o Kremlin, com valores progressistas do Ocidente. Assim, todos os valores tidos como "liberais" nos costumes são incorporados à narrativa de uma suposta ameaça do Ocidente aos valores tradicionais russos.

Nas sessões parlamentares em que o projeto de lei foi discutido, uma defesa sistemática dos deputados da proibição de redesignação sexual era justificada com o aumento do número de pessoas trans na Rússia ano após ano. Yana Sitnikova conta que justamente essas estatísticas fizeram com que o Parlamento adotasse essa espécie de "agiotagem": "Os parlamentares falavam que se não proibíssemos agora, em alguns anos a metade dos russos mudaria de sexo, havia essa retórica", cita.

"Realmente, vinha crescendo o número de pessoas mudando o sexo no registro civil, mas isso porque tornou-se mais acessível no sentido de acesso à informação, as pessoas antes não sabiam sobre si, agora elas acharam uma palavra para se designar e o que fazer com isso. O acesso aumentou e isso levou ao aumento do número de pessoas trans, e assim recebemos essa reação conservadora", completa.

Edição: Thales Schmidt