BRASIL NO MUNDO

No primeiro semestre de governo Lula, Brasil volta a falar com América Latina e cobra responsabilidade do norte global

Para especialista, gestão atual recupera imagem do país, mas enfrenta cenário mais difícil

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Desde que chegou ao governo, Lula já fez mais de dez viagens internacionais; cerca de 20% de sua agenda de governo foi cumprida fora do país - Ricardo Stuckert/PR
O Brasil, se pretende ser líder regional, terá que se equilibrar em várias tendências políticas

A cada cinco dias dos primeiros seis meses de governo Lula, um foi dedicado a viagens ao exterior. O presidente da República saiu dez vezes do Brasil e visitou um total de 14 países, sem contar as visitas de chefes de Estado e autoridades diplomáticas ao Palácio do Planalto. A marca que fica é de um país que chama o norte global às suas responsabilidades, mas que quer abraçar desafios que talvez fujam de seu alcance. 

A avalição é de Paulo Velasco, professor de Política Internacional da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e especialista em política externa brasileira. Em entrevista Brasil de Fato para um balanço do primeiro semestre da terceira gestão Lula na seara internacional, o professor reconhece que, depois de tempos de inoperância na agenda global e latino-americana, o Brasil volta a ter "proeminência no espaço regional."

Segundo o Velasco, já é "uma marca de Lula dar ênfase à política externa". O presidente contou com Celso Amorim como ministro das Relações Exteriores nos seus dois primeiros mandatos (2003-2010). Em suas palavras, o ex-chanceler atua bem ao lado de Lula, pois ambos "são ambiciosos em termos de projeção internacional". Atualmente, Amorim é assessor especial na Presidência da República.

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Mas agora o cenário é diferente. Lula assumiu o governo após quatro anos de gestão Bolsonaro, que se distanciou da institucionalidade do Itamaraty e implementou uma agenda estranha à tradição diplomática brasileira.  

No mundo, eclodiu a guerra da Ucrânia, que se tornou um nó geopolítico e acirrou as contradições regionais em escala planetária. E a ausência de maiores paralelos em relação aos primeiros governos Lula também se estende à América Latina, que agora vive a segunda onda de governos progressistas e de esquerda sob condições pouco semelhantes às da primeira. 

No entanto, Paulo Velasco sustenta que o Brasil volta a buscar exercer uma liderança regional. Em julho deste ano, o presidente brasileiro se sentou à mesa com o presidente da França, Emmanuel Macron, e representantes da oposição e do governo Venezuelano para buscar saídas para a crise política no país vizinho

Velasco ressalta que o "Brasil volta para a Unasul", "para a Celac" e a "falar em nome da região", mas terá que buscar "se equilibrar em várias tendências políticas". Para o pesquisador e professor da UERJ, diferentemente da primeira geração de líderes progressistas latino-americanos, agora temos esquerdas "diferentes, com nuances e agendas muito distintas".  

Além disso, existem governos mais à direita muito próximos regionalmente do Brasil, que guardam interesses comerciais e estratégicos com o país, a exemplo do Paraguai e do Uruguai.

Outro desafio, ainda segundo o especialista em política externa e integração sul-americana, é entender o que é prioridade quando o assunto é se relacionar com o mundo.

No passado, o Brasil já tentou atuar como conciliador no conflito Israel-Palestina e, atualmente, tem se colocado como possível mediador na busca para uma solução para a guerra da Ucrânia. 

Para entender com maior profundidade os impactos dos primeiros seis meses de política externa do governo Lula leia, abaixo, a entrevista de Paulo Velasco na íntegra.

Brasil de Fato: Lula chega ao final de seus primeiros seis meses de gestão tendo feito dez viagens internacionais e visitado 14 países. Qual balanço você faz da política externa nesse início de governo? 

Paulo Velasco: É uma marca do presidente Lula dar essa ênfase à política externa. Já vimos isso acontecer nos anos 2000. Nos seus dois primeiros mandatos vimos uma assertividade muito grande em termos de diplomacia presidencial.  

E agora isso volta a acontecer. São seis meses muito intensos. Em termos de agenda Internacional de trabalho, a cada cinco dias o presidente passa um no exterior, então 20% do tempo ele tem passado fora do Brasil. Isso vai muito no sentido de tentar resgatar um pouco do protagonismo internacional que o Brasil perdeu em grande parte ao longo da última década.

Não só pelo caos que foi a política externa do governo Bolsonaro, mas porque, mesmo nos governos Dilma e Temer, houve menor ênfase na agenda Internacional. Então o Brasil, de certa maneira, volta a ocupar um espaço mais proeminente na comunidade das nações sentando-se à mesa com grandes players [atores] internacionais. A gente olha essa lista de países visitados e vemos de fato que estão incluídos os grandes atores globais.  

O Lula esteve na Casa Branca, esteve em Beijing [Pequim] conversando com o Xi Jinping, participou agora de uma cúpula com a União Europeia em Bruxelas [Celac-UE], o coração da União Europeia. Participou da cúpula do G7 como líder convidado em Hiroshima, no Japão, onde ele teve, aliás, encontros bilaterais com players importantes. 

Recebeu em Brasília a presidente da Comissão Europeia, Ursula Vander Leyen, recebeu em janeiro o chanceler do governo alemão e o primeiro-ministro alemão, Olaf Scholz. São grandes atores da cena global com quem o Lula tem se encontrado para tentar justamente afirmar, mais uma vez, um protagonismo internacional do Brasil e resgatar a nossa credibilidade. Acho que esse é um ponto importante, sobretudo em agendas como a agenda ambiental e a agenda climática. 

O Brasil vinha sendo muito cobrado no governo Bolsonaro. E eram, digamos assim, variáveis que tinham que ser mais bem colocadas pela nossa política externa, o Brasil precisava se portar de forma mais cooperativa nesses temas. Então eu acho que é uma aposta por protagonismo e pelo resgate de credibilidade, e eu acho que nesse sentido são ações de fato necessárias. 

Você fala de resgate de credibilidade e eu imagino que isso faz alusão ao governo anterior, que teve uma agenda externa menos intensa. 

É exatamente por aí. Eu acho que quando a gente pensa na lógica de credibilidade a gente parte daí. Só para ter uma referência histórica, a gente parte dos anos 90. E a gente percebe, já no governo Fernando Henrique Cardoso, uma aposta muito forte no resgate da credibilidade. Era um momento de amadurecimento Internacional do Brasil já em um contexto marcado pelo Pós-Guerra Fria. E o Brasil viu ali, no governo FHC, uma oportunidade de galgar alguns degraus e ocupar um papel mais protagonista. O Brasil, de fato, já nos [primeiros] anos do governo de FHC, apostava muito fortemente na lógica da credibilidade, inclusive macroeconômica.

O plano real lançado no final do governo Itamar é uma prova disso, uma postura mais cooperativa em temas como meio ambiente, direitos humanos e até mesmo não proliferação.  

O governo FHC assinou um tratado de não proliferação nuclear por parte do Brasil com um delay [atraso] de 30 anos. O tratado é de 68 e o Brasil só adere em 98. Então, ali já temos um exemplo claro de um Brasil que buscava a credibilidade. Quando Lula assumiu o governo nos 2000 o cenário era mais positivo porque o Brasil já tinha conquistado uma credibilidade prévia e aí o Lula tinha o caminho mais fácil para se projetar internacionalmente o país. 

Agora é mais difícil, muito na linha do que você colocou. Evidente que os quatro anos do governo Bolsonaro pesaram muito para a nossa imagem Internacional e houve uma deterioração da imagem do país no exterior, sobretudo na questão climática, na questão ambiental, no desmatamento amazônico... Bolsonaro protagonizou algumas rusgas com Emmanuel Macron, por exemplo. 

Foi esnobado, para não dizer desprezado, pelas grandes lideranças internacionais - exceção feita ao Trump, com quem ele se encontrou algumas vezes, mas depois, quando o Biden assumiu a Casa Branca, o Brasil foi completamente esnobado pelo governo Joe Biden.  

E praticamente não teve encontros de alto nível, não tinha agenda de alto nível. Isso, claro, colocava o Brasil numa posição mais coadjuvante, uma posição menor na cena internacional. Então agora o que vemos nesses primeiros seis meses do governo Lula é a combinação de duas estratégias.  

Ao mesmo tempo que a gente quer recuperar nossa imagem, a nossa credibilidade, o Brasil também está buscando um maior protagonismo internacional, são ações compatíveis e que estavam sendo conduzidas em paralelo. Sempre que o Brasil se encontra, por meio do nosso presidente, com um grande líder internacional, ele afirma o compromisso com o meio ambiente, com o objetivo de recuperar a imagem e credibilidade e, ao mesmo tempo, tenta negociar algum tipo de entendimento para trazer ganhos de projeção para o Brasil no âmbito Internacional. 

No governo Bolsonaro, muitos analistas falavam que a política externa, sobretudo no período em que o grupo "olavista" esteve à frente do Ministério das Relações Exteriores, abandou princípios sólidos da diplomacia brasileira. Até que ponto há um resgate desses princípios e até que ponto existe uma marca própria do governo Lula? 

Do ponto de vista histórico, o que a gente chama de arcabouço diplomático justamente são os valores e princípios, que têm mais de um século, desde o velho Barão do Rio Branco, que é o patrono da nossa diplomacia, iluminam a nossa identidade internacional. Podemos dizer que o Lula busca convergir com esse conjunto amplo de valores, de princípios, muito mais do que o governo anterior. O governo anterior, como você muito bem colocou, em vários momentos simplesmente deu as costas para as nossas melhores tradições diplomáticas. 

Por exemplo, autonomia, o universalismo, buscamos uma relação é quase que subserviente aos Estados Unidos de Trump, abandonando, por exemplo, a inserção autonomista aqui nos caracteriza desde a década de 60 do século passado. 

O Brasil de Lula já tem um mérito em voltar a se pautar por padrões de comportamento, por princípios, por valores, que nos definem internacionalmente: o universalismo, autonomia, o apreço pelo multilateralismo. Esse é um ponto muito importante. Vimos em vários momentos, durante o período em que o Itamaraty foi sequestrado, digamos assim, pela ala ideológica do governo Bolsonaro com o Brasil, inclusive, criticando as organizações internacionais, criticando o multilateralismo, protagonizando embates desnecessários em fóruns multilaterais que sempre foram muito importantes para nós porque o Brasil no multilateralismo, claro, nesse projeto é muito mais do que individualmente. São vitrines que países como o Brasil, que não tem excedentes de poder, são vitrines muito valiosas em que podemos aparecer para podermos nos projetar. 

Houve uma renúncia durante boa parte do Bolsonaro a a práticas, princípios, valores, muito consolidados historicamente na nossa política externa. Lula já tem o mérito de resgatar esses princípios, valores e padrões de comportamento.  

Ao mesmo tempo, reconhecemos que a própria personalidade do Lula é uma personalidade que aponta muito para a busca por protagonismo, isso é do feitio dele. Ele gosta muito da agenda internacional, ele gosta muito dessa visibilidade. O plano externo oferece muito isso a ele, né? Então, de alguma maneira, afaga um pouco o seu ego. Às vezes, claro, o Brasil de certa maneira acaba dando passos maiores que as próprias pernas. Vimos isso acontecer já nos anos 2000 quando achávamos, por exemplo, que poderíamos mediar a questão Israel-Palestina, que é uma questão muito delicada, sensível, isso está muito além da nossa capacidade. Agora, eu acho que também é um equívoco o Brasil achar que pode resolver a questão da guerra entre Rússia e Ucrânia. Está fora da nossa alçada geopolítica, está fora das nossas capacidades mais limitadas de poder.  

Ele [Lula] tem como braço direito o Celso Amorim, que foi durante os oito anos de governo, já nos 2000, o seu ministro de Relações Exteriores. Agora ele [Amorim] atua como assessor especial da Presidência para relações internacionais. É diplomata já aposentado, muito experiente e em quem o Lula confia absolutamente. Os dois formam uma dupla muito profícua. Os dois são ambiciosos em termos de projeção internacional. As críticas que eu faço é que às vezes o Brasil parece superdimensionar demais o seu peso, como se houvesse um erro de cálculo.  

Há uma institucionalidade que foi sendo construída ao longo dos anos, como você mencionou. Até que ponto há uma conexão com essa institucionalidade? Você acha que podemos falar em um certo "lulismo" também na política externa brasileira? 

A política externa, além de ser uma política de Estado nacional brasileiro, independente do governo de plantão, também é uma política pública. Por ser uma política pública, a política externa, acaba sendo um produto, como qualquer política pública, de disputas, de tensões, de interesses divergentes, conflitantes, não necessariamente coincidentes. Grupos de interesse, lobbies, tensões de toda sorte.  

Para não cairmos no equívoco reducionista, a política externa reflete o interesse nacional. Mas aí eu pergunto, interesse nacional de quem, de que grupo ou de que grupos, de que atores? E aí a gente reconhece que influenciam no desenho da política externa brasileira vários players. O próprio presidente tem um papel, ele próprio desenhando e dando algumas ênfases do que ele julga importante. Lula tem uma voz muito ativa no desenho da política externa atual, como teve nos anos 2000.  

O Itamaraty, claro que não pode ser nunca escanteado, porque é uma instituição absolutamente central. Em alguns momentos tem mais peso, centralidade, em outros um pouco menos, em alguns momentos tem mais autonomia em relação ao Executivo e ao presidente. O Itamaraty, muitas vezes, consegue seguir de freio para arroubos excessivos, ações que contrariam a nossa imagem internacional. Esse foi um pouco caso durante o governo Bolsonaro. Vimos o que foi a casa, no seu todo, freando algumas iniciativas mais tresloucadas, digamos assim, do chanceler Ernesto Araújo. 

O atual chanceler, Mauro Vieira, se identifica muito com as agendas do Lula, as do Celso Amorim. Já foi ministro de Exteriores do governo de 2015 até o impeachment da Dilma, então ele já tem experiência no cargo, tem uma preocupação muito grande com temas que interessam ao Lula, como a questão do desenvolvimento do meio ambiente, as relações com a África, as relações com o sul global de um modo geral. Então é óbvio que ele não foi escolhido ao acaso.  

Na Cúpula da Celac o Brasil se sentou à mesa juntou ao Macron, presidente da França, e com representantes da oposição e do governo venezuelano para discutir uma saída para crise no país. Também foi convidado a discursar em um evento em Paris, a convite do vocalista da banda Coldplay, em que cobrou de forma contundente os países desenvolvidos pelo seu papel no combate à crise climática. Você acha que o Brasil tem se se posicionado no sentido de se consolidar como líder da região? 

Eu acho que sim. O Brasil volta a buscar [exercer] uma liderança regional. Muitas vezes sem usar a palavra liderança, porque isso pode assustar alguns vizinhos, como é o caso da Colômbia e da Argentina, que talvez não queiram ser liderados pelo Brasil. 

O Brasil com o Lula volta a buscar uma posição proeminência no espaço regional, seja latino-americano ou sul-americano, algo que não vimos muito na década passada, seja com Dilma, com Temer ou com Bolsonaro, que foi pior ainda. Vimos um Brasil acanhado na região, não ocupando os espaços historicamente preenchidos pelo país, um Brasil que fugia de suas responsabilidades regionais. Praticamente não tivemos nenhum tipo de ação em favor da atenuação da crise na Venezuela. Praticamente não tivemos nenhum papel naquele histórico acordo de paz entre o governo colombiano e as Farc, na Colômbia. 

Agora, com o Lula, voltamos a ter uma proeminência. O Brasil volta para a Unasul. O Brasil volta para a Celac. O Brasil volta a falar em nome da região. Você citou aquele encontro em Paris, em que o Brasil participou de um fórum por uma nova arquitetura financeira global defendendo de maneira muito contundente a necessidade de os países envolvidos ajudarem na busca por um desenvolvimento mais sustentável 

É o Lula chamando o norte global para as suas responsabilidades, no sentido de cooperarem conosco financeiramente, tecnicamente. Nós queremos fazer algo, mas precisamos do apoio do norte [global] e o norte tem parcelas grandes de responsabilidade nisso. Ao mesmo tempo, ele volta a insistir na questão da reforma do Conselho de Segurança, na defesa de um sistema financeiro Internacional mais justo, mais atento aos anseios, demandas e necessidades do mundo em desenvolvimento.  

Vivemos um contexto na América Latina totalmente diferente do que na primeira "onda rosa", que é como se costuma chamar esses ciclos de governos progressistas na região. Temos crises econômica e política em muitos desses países. Qual papel você acredita que o governo Lula deve cumprir na estabilidade desses governos? 

Desconfio um pouquinho do próprio conceito. Claro que há lideranças de esquerda em vários países e há uma uma tentação de se falar em uma nova onda rosa, mas são esquerdas muito diferentes, com nuances, personalidades e agendas muito distintas. Quando a gente compara, por exemplo, o Gabriel Boric, ou mesmo o Gustavo Petro, com por exemplo o Daniel Ortega e o Nicolas Maduro, não tem absolutamente nada a ver. 

De um lado, nós temos uma esquerda mais jovem com o Boric, mais progressista, afinada com agendas como feminismo, ambientalismo, as questões de gênero. O Maduro não é nada disso. O Maduro é racista, é homofóbico, é misógino. Então eles não dialogam e não com se entendem nada. E cabe ao Brasil de Lula, tentar se equilibrar um pouquinho com todas essas esquerdas e direitas também, como o Uruguai, Lacalle Pou, o Paraguai, o Equador do Guilhermo Lasso. 

Nós temos países que não são de esquerda na região e o Brasil, se de fato pretende assumir responsabilidades de um líder regional, que se equilibrar em várias tendências políticas. 

Edição: Thalita Pires