14 MORTOS ATÉ AGORA

Ex-ouvidor da PM de SP: 'Ação do Estado não pode ser por vingança'

Para ele, comoção pela morte de colega não pode levar a atos 'fora da legalidade democrática'

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Ato nesta quarta (2) contra a operação que já matou 14 pessoas na Baixada Santista em represália à morte de um policial - Gabriela Moncau

Ouvidor da Polícia Militar de São Paulo em duas ocasiões (1995-2000 e 2018-2020), Benedito Mariano defende a apuração rigorosa dos policiais envolvidos na Operação Escudo, realizada no Guarujá, litoral paulista, em represália à morte de um policial militar da Rota, força especial da Polícia Militar paulista, ocorrida na última quinta-feira (27/07).

"A ação do Estado não pode ser por vingança, mas racional. Assim que houve a operação, o governador de São Paulo falou em oito mortes. Subiu para 10 e agora são 12 óbitos [número que já subiu para 14]. A Ouvidoria da Polícia, que está acompanhando, já fala na investigação de 19 mortes. Em qualquer um dos casos, nenhuma operação com esse número de mortes foi bem executada", disse em entrevista à DW, ressaltando que "resposta da corporação não pode estar fora do parâmetro da legalidade democrática".

Mariano também criticou o fato de o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, e o atual Secretário de Segurança Pública de São Paulo, Guilherme Derrite, terem celebrado as mortes após a operação.

"Foi um ato precipitado. Considero que qualquer manifestação antes da investigação que é feita pela própria polícia é ruim."

O ex-ouvidor defende uma melhor formação dos policiais, inclusive com a introdução de uma disciplina permanente sobre o racismo estrutural. "Uma polícia democrática e cidadã precisa ser antirracista", destaca.

DW: Como o senhor avalia a ação da Polícia Militar de SP no Guarujá? Houve excesso da polícia?

Benedito Mariano: O assassinato de um policial militar merece recusa da sociedade e as condolências são fundamentais. A partir daí, a resposta do poder público a partir do assassinato do policial é fundamentalmente identificar e prender o autor do crime. Há um suspeito identificado que está preso.

É óbvio que a morte de um companheiro gera comoção na instituição policial, mas a resposta da corporação não pode estar fora do parâmetro da legalidade democrática. A ação do Estado não pode ser por vingança, mas racional. Assim que houve a operação, o governador de São Paulo falou em oito mortes. Subiu para 10 e agora são 12 óbitos [número que já subiu para 14]. A Ouvidoria da Polícia, que está acompanhando, já fala na investigação de 19 mortes. Em qualquer um dos casos, nenhuma operação com esse número de mortes foi bem executada. É preciso haver uma apuração rigorosa.

Qual devef ser o papel da Ouvidoria neste momento? Ela atua em parceria com outros órgãos para averiguar o que houve?

A ouvidoria tem o papel de controle social da atividade policial. A ouvidoria não apura. Quem faz isso são as Corregedorias da polícia. Mas a ouvidoria acompanha a apuração e deve, especialmente num caso grave como esse, elaborar relatórios públicos. Esses documentos serão anexados ao inquérito policial e encaminhados ao Ministério Público.

É importante dizer também que muitas informações chegam ao conhecimento da polícia por meio da Ouvidoria, como denúncias e afins, por ter autonomia em relação ao comando das polícias.

Como identificar o excesso de ação policial?

Doze mortes confirmadas já é indício de que não foi uma boa ocorrência. Para saber se houve excesso é preciso esperar os laudos técnicos. No meu período como ouvidor, sempre me manifestei sobre os relatórios feitos pela inteligência da polícia, para saber se deram as mortes, por onde os projéteis entraram, a que distância, se as vítimas portavam arma de fogo ou se houve confronto.

São esses dados que podem confirmar objetivamente o excesso. Conversei com o Cláudio Aparecido [atual ouvidor da Polícia Militar de São Paulo] e ele disse que estão chegando denúncias lá e também ao Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (Condepe) sobre torturas e abuso de autoridade. Por isso, a Ouvidoria é fundamental: ela ouve as pessoas e todas essas informações vão constar no relatório final.

Quais são os procedimentos caso fique comprovado que houve excesso dos policiais?

Há dois caminhos. Caso se confirme o excesso nas 12 mortes, cabe ao Ministério Público formalizar a denúncia. Concomitantemente, não impede que a Corregedoria faça uma manifestação administrativa com relação aqueles policiais que cometeram excesso. Por isso que a decisão do Procurador-Geral de Justiça [Mario Sarrubbo] de indicar uma equipe do Ministério Publico para acompanhar as investigações é importante, pois vai esclarecer, entre outras coisas, se a ação estava no parâmetro do Estado democrático.

Como as câmeras das fardas podem ajudar a desvendar a ação dos PMs?

A câmera do fardamento é um equipamento fundamental para entender o que houve. Já li uma reportagem na Folha de S.Paulo dizendo que uma ala política pretende retirar o equipamento, mas não acredito que isso vá acontecer. Ao contrário: vários outros estados do país estão adotando o equipamento. É um instrumento utilizado nos EUA e na Europa há décadas. É um recuo que não pode acontecer. E tem uma coisa: a adoção das câmeras foi um projeto da própria Polícia Militar, do comando da instituição. As câmeras servem para proteger o bom policial em sua atividade e para mostrar se houve excesso na ação desse policial.

Há vários estudos recentes que mostram como o uso do objeto ajudou a reduzir a letalidade policial. Nesse caso do Guarujá, a expectativa é que todos os envolvidos estejam com os equipamentos em pleno funcionamento, porque as imagens serão provas importantes nas investigações.

Tanto o governador quanto o Secretário de Segurança Pública de SP elogiaram a atuação dos policiais. Como o senhor avalia tais manifestações?

Minha resposta será baseada em uma experiência pessoal. Em 2019, quando eu era ouvidor da Polícia Militar, houve uma ocorrência em uma cidade do interior com a participação de 45 policiais e cujo resultado foi a morte de 10 pessoas suspeitas de estarem planejando um assalto a duas agências bancárias. Na época, demorei cerca de dois meses para me manifestar, porque estava analisando os relatórios da própria polícia a fim de saber o que havia ocorrido. A partir da análise dos laudos técnicos, eu e o delegado envolvido nas investigações constatamos que houve excesso da polícia na ocorrência.

Já o governador da época, João Doria, não esperou uma semana para levar os policiais envolvidos na ação ao Palácio dos Bandeirantes para condecorá-los. Foi um ato precipitado. Considero que qualquer manifestação antes da investigação que é feita pela própria polícia é ruim.

O que o episódio no Guarujá e outros recentes nos diz sobre a formação do policial no país?

Nós precisamos fazer uma reforma ampla no sistema de segurança pública brasileiro e o enfoque principal deve ser a luta antirracista. Os 350 anos de escravidão estabeleceram uma cultura de preconceito contra pobres e negros que dita a ação das forças de segurança em boa parte das cidades. Assim, jovens negros são os mais vitimados pela letalidade policial.

Uma polícia democrática e cidadã precisa ser antirracista. Defendo há anos a introdução de uma disciplina permanente nas escolas formadoras de policiais sobre o racismo estrutural, assim como um novo protocolo que limite a interpretação da "fundada suspeita" [elementos objetivos e subjetivos utilizados pela autoridade policial para realizar busca pessoal] presente no Código Penal.

A suspeição acontece em duas formas: se o indivíduo está com arma de fogo ou objeto de crime. Mas o que nós vemos é que a fundada suspeita se dá pela cor da pele e condição social.

Os eventos ocorridos no Guarujá têm alguma similaridade com os Crimes de Maio de 2006 e a onda de violência entre maio e novembro de 2012?

É difícil fazer essa comparação. Em 2006 e 2012 houve uma resposta do Estado, com muito excesso, contra organizações criminosas que estavam matando os policiais. A única similaridade é que essa operação na Baixada Santista está se dando a partir de um assassinato de um policial em serviço, mas não vejo o mesmo contexto. Mas acredito que a resposta do Estado precisa ser sempre racional, o que não aconteceu nesses dois episódios e parece não ter ocorrido agora também.

A Comissão Arns, da qual me orgulho muito de ter participado por 15 anos, declarou em nota que pode haver um fortalecimento do crime organizado, e eu concordo. A tensão pode aumentar, assim como o conflito, sobretudo se ficar comprovado ao final das apurações que houve excesso por parte dos policiais.