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Por que Margarida Alves não foge da luta? Legado histórico segue em Marcha há 40 anos

História de coragem da líder sindical está presente em reivindicações contemporâneas de mulheres em todo o Brasil

Brasil de Fato | Alagoa Grande (PB) e Esperança (PB) |

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Na década de 80, Margarida Alves se tornou a primeira mulher a presidir um sindicato de trabalhadores rurais - Reprodução

O "andar junto" das edições da Marcha das Margaridas tem um sentido mais amplo que o numérico. A expectativa de 100 mil mulheres cobrando direitos em Brasília, nos próximos dias 15 e 16, se soma a uma coletividade de vozes, coragem e esperança afirmadas pela história da líder sindical assassinada há exatos 40 anos. 

Pisando o chão do mesmo território de Margarida Alves, hoje a também líder sindical Roselita Vitor, da rede de sindicatos paraibanos do Polo da Borborema, sugere uma consciência histórica que ultrapassa o olhar restrito a apenas homenagens a sua conterrânea.    

"Margarida expressa que é 'melhor morrer na luta do que morrer de fome' na certeza de que não era uma mulher só", define Rose, como é conhecida, ao espelhar as lutas populares contemporâneas com a de décadas atrás.

A frase emblemática de Margarida Alves no dia 1º de maio de 1983 retratava uma luta sindical iniciada nos anos 1970, em que trabalhadores e trabalhadoras de canaviais não tinham nenhum direito, no sentido literal.

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"No sindicato de Alagoa Nova [na Paraíba], a gente perguntava se o dinheiro dava para o povo comer durante a semana. Tinha uns trabalhadores que diziam que não, que a comida só dava até quarta-feira", recorda a agricultora Maria de Lourdes Sousa, conhecida como Dona Quinca, de Remígio (PB).

Em plena ditadura militar, Margarida não se intimidou com latifundiários e governantes de extrema direita da região, alas da sociedade que não queriam ouvir falar em temas como carteira de trabalho, jornada de oito horas, 13° salário, descanso semanal, férias e licença maternidade. 

"Naquela época, nos anos 1980, os canavieiros na Paraíba não tinham nenhum direito. Descobriu-se daquela época que a Consolidação das Leis de Trabalho (CLT) tinha chegado a Pernambuco e Alagoas, mas na Paraíba ainda não tinha", recorda o sindicalista Manoel Antônio de Oliveira, assentado da reforma agrária, no Engenho Geraldo desde 1984, em Alagoa Nova (PB). 


A cada ano, um dos treze municípios do Polo da Borborema é escolhido para a realização do ato da Marcha / Foto: Túlio Martins

Na resistência contra os direitos trabalhistas, se destacava o chamado Grupo da Várzea, formado por famílias ricas e com poder político no estado da Paraíba. A articulação envolvia donos de vastas extensões de terras e usinas de processamento de cana de açúcar. Em Alagoa Nova, um dos locais mais emblemáticos neste cenário de opressão era a Usina Tanques, contra a qual Margarida Alves movia dezenas de ações judiciais por exploração trabalhista. 

Para o professor e historiador Jadson Vieira, de Alagoa Nova, "existiam várias Usina Tanque na Paraíba, no sentido da exploração. E Alagoa Grande aglutinava essa relações de conflito". Ele lembra que a legislação trabalhista era uma realidade no país, mas disputada no cenário rural do Brejo paraibano. 
 
"Então, esse contexto histórico faz com que esse conflito cresça e Margarida traga isso para as suas lutas. Nesse processo de construção de uma identidade de liderança camponesa e sindical, Margarida inova, sobretudo, num processo em que ela traz para as pautas de lutas da época uma inserção num contexto de mulher", ressalta Jadson.

Margarida Alves coordenava uma comissão formada por representantes organizações sindicais e da igreja para mobilizar e cobrar que os direitos fossem cumpridos para trabalhadores e trabalhadores de canaviais. O trabalho era feito de porta em porta, com educação e comunicação popular. A utilização de panfletos e grupos de estudos sobre as leis eram algumas das ações realizadas de forma escondida dos usineiros ou dos agentes a serviço da ditadura militar. Porém, o cenário era ainda mais complexo ao se considerar as injustiças sociais. 

"Como é que conseguiríamos fazer uma greve ou paradeiro com canavieiros que comiam do que ganhavam de forma minguada?", questiona Seu Nequinho, ao destacar que, após estudos de ação estratégica, foram mobilizados recursos de organizações sociais para sustentar a paralisação das atividades canavieiras. Ele lembra ainda que os aparelhos do governo ditatorial reduziram o poder dos sindicatos na época, mas Margarida sempre arrumava uma forma de reivindicar.

Ao mesmo tempo, as pessoas da comissão recebiam ameaças constantemente. Emocionado, Seu Nequinho lembra do último discurso que Margarida fez, em cima de um caminhão, em Sapé (PB), quando "ela disse que ia tocar o barco para frente, custasse a vida dela, mas ela faria isso", afirma. 

De acordo com Maria da Soledade Leite, pouco antes do assassinato de Margarida Alves, em 12 de agosto de 1983, a líder sindical confessou um acirramento das perseguições. Na versão, Margarida teria feito o relato a Dona Penha, uma de suas amigas mais próximas. 

"No dia 11 de agosto [de 1983] elas estavam em um seminário em Guarabira [PB], e Penha notou que ela estava triste, diferente, sem aquela alegria". De acordo com Soledade, Margarida tentou esconder, até que depois revelou que a vida dela estava ainda mais em perigo naquele momento.  

Dona Quinca era jovem quando conheceu Margarida. Hoje ela expressa sua admiração pela presença histórica da lutadora com versos que fluem em um misto de emoção e resignação.   

"Margarida já sabia que por ali existia uma arma para lhe matar. Margarida era, mulher de coragem, força e fé. Não temia os patrões, dizia em seus discursos 'É melhor morrer na luta, do que nós morrer de fome'. 'É melhor morrer na luta, do que nós morrer de fome'. 'É melhor morrer na luta, do que nós morrer de fome'.". 

Situação das mulheres

A história revolucionária de Margarida Alves se deu um contexto de avanços diante de uma cultura patriarcal. O recorte temporal pode ser considerado como um dos elementos para a imagem de uma mulher liderando as pautas trabalhistas diante de alguns homens. 

"As mulheres não se sindicalizam porque os maridos diziam que as elas não sabiam falar, que tinham que ficar em casa. Quando se questionava o porquê da falta de mulheres nos sindicatos, os maridos diziam que não podiam porque tinham os filhos para cuidar, tinha os animais", contextualiza a repentista Soledade. 

Como um desbloqueio, Soledade afirma que a luta de Margarida foi como um grito diante uma elite que explorava de diversas maneiras e silenciava as mulheres.   

"Depois da morte de Margarida para cá foi que as mulheres 'criaram línguas', aprendemos a falar e a nos respeitar enquanto mulher, como ser humano, e lutar por nossos direitos", analisa, ao exemplificar que as pessoas que oprimiam "queriam que os filhos dos trabalhadores fossem os escravos deles, para cuidar das cocheiras, dos animais. E que as filhas fossem 'as negrinhas das cozinhas' para serem exploradas por eles e pelos filhos. E muitas vezes até outras coisas a mais", relata ao dizer que é possível "entender bem o que essas palavras querem dizer”.  

Por outro lado, elas resistiam em redes de apoio e solidariedade. Dona Quinca recorda um dos fios dessa teia de fortalecimento do protagonismo das mulheres na região. 

"A minha mãe ficava rezando. Eu gosto até dizer que a minha mãe não dizia: 'minha filha não vai fazer isso não, senão você morre', como muita gente diz. Ela dizia: 'eu tenho orgulho da minha filha'. Isso para mim era uma força muito grande", destaca ao exemplificar novas sementes diante desse entusiasmo com a mãe. "Eu presenciei uma mulher, que eu fui andar com ela - para convidar o povo -, e quando eu cheguei, o marido estava com a faca na mão. 'Eu não disse para você?!'. 'Mas seu João, você com uma mulher corajosa como essa, que tem coragem de sair, na luta convocando o povo para permanecer na terra. Você tinha que receber ela com beijo e abraço'", relata.

Marchas

Além da Marcha das Margaridas, realizada desde 2000 na capital federal, o Polo da Borborema realiza, desde 2009, a Marcha pela Vida das Mulheres e pela Agroecologia. A cada ano uma edição é realizada no território paraibano que compreende 13 sindicatos de trabalhadoras e trabalhadores rurais, 150 organizações comunitárias e uma organização regional. Neste ano de 2023, a Marcha foi realizada na cidade de Montadas.

"Agroecologia é a porta que encontramos para favorecer conhecimentos, democratização do poder político das mulheres aqui nesse território e do poder político do movimento sindical, na construção de um outro modo de vida, de um outro modelo de desenvolvimento para a agricultura familiar no Polo da Borborema, eu diria que Margarida também já fazia isso, quando ela estava contra um modelo opressor em que as terras estavam na mão do latifúndio, em que a cana é era a cultura que prevalecia", explica Rose, ao explicar que grandes empreendimentos do setor de energia eólica ameaças o modo de vida de famílias no território.  

*Com colaboração de Adriana Galvão, da ASPTA.

Edição: Thalita Pires