MEMÓRIAS

Aleida Guevara, filha de Che, conta 'causos' do pai e sua atuação com os sandinistas

A ativista cubana também lembrou a 'bronca' que levou ao participar do carnaval brasileiro

Brasil de Fato | Havana (Cuba) |
Aleida Guevara - Prensa Latina

Aleida Guevara é uma renomada pediatra cubana. Aos 62 anos, é a mais velha dos quatro filhos de Aleida March e Ernesto Guevara, o Che. Ao longo de sua vida, recebeu várias condecorações internacionais em reconhecimento ao seu intenso ativismo pela paz mundial. É autora de vários livros, incluindo MST, a Semente da Esperança.

Sentada na varanda de sua casa, ela recebe o Brasil de Fato para uma longa conversa, na qual repassa sua vida e a de seus pais. Com um espírito inquieto, Aleida fala enquanto recebe dezenas de ligações telefônicas: atividades políticas, profissionais e familiares se entrelaçam nas conversas.   

"Eu não tinha sete anos quando meu pai morreu. Lembro-me de viajar em um carro, olhar pela janela e, de repente, ver muitas fotos dele. Fotos enormes. Eu ainda não conseguia ler, então não sabia realmente o que elas diziam. Perguntei às pessoas por que tantas fotos do meu pai? Ninguém me respondeu. Havia muita tristeza nas ruas. Foi a primeira vez que percebi que meu pai era alguém importante", disse Aleida.

"Não tomei consciência de sua importância até bem mais tarde. Sempre senti o carinho das pessoas. Quando eu ainda era criança, via o carinho das pessoas por minha família o tempo todo, mas não sabia realmente o porquê."

"Até que cresci e entendi que meu pai rompeu os muros. Em todo lugar que eu ia, havia grandes demonstrações de amor... sempre uma coisa extraordinária para o Che. Acho que isso realmente me deu uma ideia melhor do que meu pai era. Sempre dizemos que o argentino realmente rompeu fronteiras. Culturas tão distantes, tão diferentes, e ainda assim o homem está sempre muito presente", acrescenta.

A imagem de Che logo se tornou uma das mais reconhecidas em todo o mundo. Em 1960 - ano de nascimento de Aleida -, os Estados Unidos sabotaram um navio em um porto cubano, resultando em cem mortos e 200 feridos. Em resposta, uma multidão se reuniu do lado de fora do cemitério para o enterro das vítimas da explosão. No meio da multidão, um jovem fotógrafo chamado Alberto Korda estava registrando o evento e, naquela tarde de 5 de março de 1960, tiraria uma foto que entraria para a história: uma imagem de Ernesto "Che" Guevara com uma boina preta olhando para longe. 

Korda guardou a fotografia até sete anos depois, quando o artista Jim Fitzpatrick a reproduziu após o assassinato de Che. Essa imagem se tornou uma das imagens mais reproduzidas da história.

Che foi assassinado pela CIA na Bolívia em 1967, quando Aleida ainda era uma criança. Seu assassinato o transformou em um símbolo de rebelião contra a injustiça em todo o mundo e em uma das personalidades mais conhecidas do mundo.

O verdadeiro revolucionário é movido por um profundo sentimento de amor

"Há muitos anos, fui convidada ao Brasil para participar de um desfile de carnaval. Eles haviam montado uma homenagem à Revolução Cubana. Pensei que fosse apenas assistir ao desfile, mas quando cheguei me colocaram em um carrinho, imagine eu", lembra Aleida com uma risada.


Aleida desfilou no carnaval de Porto Alegre, em 2011 / Reprodução

"Havia um rapaz vestido como meu pai que estava super nervoso. Quando entrei no carrinho, fiquei pensando 'meu Deus, o que é isso'. Porque é claro que em Cuba algo assim seria considerado totalmente desrespeitoso. Algum tempo depois, quando minha mãe soube disso, ela ficou muito brava comigo."

"Ela não entendia por que eu havia aceitado aquele rapaz ao meu lado disfarçado de meu pai. Discutimos muito, eu disse a ela: "Mãe, o carnaval para o povo do Brasil é uma expressão popular, para eles não é uma zombaria", mas ela não me ouviu... ela ficou com raiva de mim e fiquei de castigo por cerca de um mês.

Sua mãe, Aleida March, foi uma das primeiras militantes do movimento revolucionário de 26 de julho. Nascida em Santa Clara, ela se juntou ao movimento em 1956.  Participou de várias tarefas na rede de apoio à guerrilha urbana. Em 1958, ela conheceu Guevara em Santa Clara, nas vésperas da ofensiva revolucionária contra a ditadura de Batista. Anos depois, Aleida March publicou um livro de memórias intitulado Evocaciones (Evocações), no qual narra sua vida com Che. Aleida, sua filha, o descreve como o melhor livro de romance que já leu.

"Há um pequeno livro que acabamos de fazer e que foi intitulado Che Guevara, Aleida Guevara, los valores que me enseñó mi padre (Che Guevara, Aleida Guevara, os valores que meu pai me ensinou, em tradução livre). Mas, na verdade, deveria dizer "os valores que minha mãe me ensinou". Porque foi ela quem me educou. Meu pai era o homem conhecido, o exemplo de um revolucionário integral, um homem magnífico. Mas se hoje somos homens e mulheres socialmente úteis, foi por causa da minha mãe. 

"As coisas que minha mãe nos fez sentir desde cedo, como o orgulho de sermos filhos daquele homem. Mas, ao mesmo tempo, sabendo que iríamos receber muitas coisas por sermos filhos dele, mas tínhamos de nos manter firmes no chão e abrir mão de tudo o que não tivéssemos conquistado por nós mesmos. Isso era básico para a vida", ele reflete.  

O compromisso ético sempre foi forte na casa de March e Guevara. A história é bem conhecida e retrata o imaginário e o compromisso com que esses jovens estavam empenhados em construir um novo mundo:

Depois que a revolução triunfou, Che estava trabalhando como ministro da indústria. Em uma reunião de trabalho, um colega lhe disse que a comida que estava sendo entregue nas casas não era boa. Che ficou surpreso e lhe perguntou por que ele havia dito aquilo. O camarada respondeu que talvez isso não estivesse acontecendo em sua casa porque ele estava recebendo uma cota especial de alimentos. Ao chegar em casa, Ché perguntou à sua esposa, Aleida March, se havia mais alguma coisa entrando em casa além da comida que era dada a todos os cubanos pela cartilha. E ela respondeu que sim, uma pequena cota especial. Che foi inflexível e pediu para proibir a entrada de qualquer coisa que não fosse o que as pessoas comiam.

"Crescemos como jovens cubanos normais, sem nenhum tipo de privilégio, sem nenhum tipo de diferença. E minha mãe era um bastião, uma barreira contra todas as coisas que pudessem ser diferentes. Nem mais, nem menos. Ela não permitia nenhum dos extremos. Ficava bem no meio. E foi assim que ela nos criou", diz Aleida.

Confira a reportagem em vídeo:

O último abraço de Ramón Benítez 

Ela falou de outras época da trajetória do pai. Em 1966, o trabalho de disfarçar Che foi realizado por um veterano militante comunista chamado Luis Carlos García Gutiérrez. Ao longo dos anos, Gutiérrez, que todos chamavam de Fisín, foi aperfeiçoando sua arte. Desde antes do triunfo revolucionário, Fisín foi encarregado dedisfarçar dezenas de companheiros para que pudessem escapar da perseguição e da morte. 

Após a retirada do Congo, em 1965, Che se ocultou por várias semanas na embaixada cubana em Dar es Salaam, capital da Tanzânia. Lá, Fisín teve que enfrentar uma das tarefas mais difíceis de sua vida: tornar a imagem de Che - que já era uma das figuras mais reconhecidas do mundo - irreconhecível e permitir que ele adotasse uma nova identidade.    

O trabalho de Fisín deu a Guevara aparência totalmente diferente. Careca, com a aparência de uma pessoa mais gorda, óculos de lentes grossas e uma mudança em seus dentes - que o fez distorcer a fala - o líder revolucionário adotou a identidade de "Ramón Benítez", o nome que seus passaportes falsos lhe deram. Dessa forma, Che retornou a Cuba em 1966, de forma clandestina, para se preparar para sua próxima missão na selva boliviana.

"A última vez que vi ele, já estava disfarçado como o velho Ramón Benítez", lembra a filha. "Antes de ir embora, ele queria nos ver para se despedir. Mas ninguém poderia saber que era ele, nem mesmo nós, que éramos muito pequenos e não podíamos contar a ninguém. Naquela noite, minha mãe nos levou para jantar com ele, que se apresentou como se fosse um amigo do meu pai", diz Aleida. 

"Quando chegamos, ele se apresentou e disse que era espanhol, por isso falava daquele jeito. Eu olhei para ele e disse 'mas você não parece espanhol de jeito nenhum' e aí todo mundo quis morrer... Todos imaginaram que se uma menina de cinco anos notasse, seria um problema com aquele disfarce. Mas ele estava muito calmo e, com um sorriso, me perguntou: 'Por que você diz isso? E eu simplesmente respondi: 'me ocorreu'". 

Somente os colaboradores mais próximos de Che sabiam que ele estava em Cuba. Durante aquela passagem pelo país, até aquele 2 de novembro de 1966, data do jantar com sua família, Che só havia se encontrado com Fidel Castro, Orlando Borrego e um grupo de colaboradores próximos, com os quais organizaram os guerrilheiros que o acompanhariam à Bolívia.

"Antes que ele nos visse, minha mãe tinha dito a ele que eu havia aprendido todos os seus gostos, então ele tinha que tomar muito cuidado para não levantar suspeitas. Quando meu pai bebia vinho, ele adicionava um pouco de água. Mas naquela noite, o velho Ramón se serviu de vinho tinto puro. Quando vi isso, levantei-me do meu assento e gritei para ele: 'Viu, você não é amigo do meu pai de jeito nenhum!' Todos olharam para mim com surpresa, mas ele me perguntou novamente com calma: 'Por que você diz isso?' e eu respondi que meu pai não bebia vinho assim, ele bebia com água porque era mais gostoso assim. Então me levantei e coloquei água em seu copo", diz Aleida.  

Aleida ri ao contar a anedota. Ela se diverte recriando a inocência daquela garotinha que deixava os adultos nervosos. Sua maneira de rir tem uma expressividade contagiante que transmite simpatia.  E enquanto ela fala, é impossível não notar a semelhança de seus gestos com aqueles que podem aparecer nas fotos de Che.


Che, como Ramon Benitez / Cuba Denate

Sandinistas

Desde o final da década de 1950, na Nicarágua, houve uma longa luta contra a ditadura da família Somoza. Quase 20 anos depois, em 19 de julho de 1979, a Frente Sandinista de Libertação Nacional (FSLN) derrotou o exército e assumiu o controle da capital do país, Manágua. A Revolução Sandinista havia triunfado. Dois anos depois, em 1981, o governo de Ronald Reagan nos Estados Unidos começou a financiar grupos armados que enfrentaram a revolução sandinista por meio de vários atos terroristas. Esses grupos ficaram conhecidos como "contras". 

"Os Estados Unidos haviam prometido a si mesmos não permitir que outra Cuba acontecesse na América Latina. É por isso que eles estavam por trás de todos os golpes de Estado no continente. Portanto, quando a revolução triunfou na Nicarágua, foi realmente impensável e extraordinário", reflete Aleida. 

Naquela época, Aleida estudava medicina. A certeza de querer ser médica sempre esteve com ela. Quando seu irmão mais novo nasceu, sua mãe permitiu que ela a ajudasse a cuidar dos pontos que haviam sido feitos após a cesariana em que ela havia dado à luz. Desde os primeiros dias em que cuidava de sua mãe, sempre que lhe perguntavam o que ela queria ser quando crescesse, Aleida sempre respondia que seria médica. 

No início da década de 1980, as ações dos Contras envolveram a Nicarágua em uma escalada de violência. Seus ataques sistemáticos contra a população civil tinham como objetivo semear o terror e o caos. Naquela época, o governo sandinista pediu ajuda médica a Cuba para poder atender sua população. O objetivo não era apenas atender ao número de feridos deixados pelos confrontos, mas também começar a pagar as dívidas históricas da Nicarágua com a saúde de sua população.   

"Naquela época, Cuba não tinha médicos suficientes para enviar à Nicarágua. Então, Fidel convocou os jovens que estivessem cursando medicina para que tivessem a opção de fazer o último ano do curso e se formar em um estágio internacionalista na Nicarágua. Muitos de nós decidimos ir, convencidos de que era nosso dever ajudar", lembra.

Nascido logo após o triunfo da revolução, Aleida cresceu com as mudanças que ocorreram na ilha. Se as décadas de 1960 e 1970 foram décadas de enorme politização do povo cubano, no seu caso isso se somou ao fato de ela vir de uma casa de comunistas históricos. Aos 15 anos, ela começou sua militância na União dos Jovens Comunistas (UJC). Já nos anos de universidade, ela era uma jovem rebelde, com pouca paciência para deixar passar as coisas que não pareciam certas. 

"Foi uma experiência chocante: chegamos em uma Nicarágua em guerra. Recebemos a ordem expressa de que não poderíamos intervir nos debates internos do país. Só iríamos colaborar como médicos. Essa sempre foi uma lição que, como cubano, mas acima de tudo como médico, eu sempre tive em mente: a tarefa de alguém é ir para ajudar, não para interferir e dizer como as coisas devem ser feitas". 

A Nicarágua foi uma grande escola para aqueles jovens. O sonho da revolução parecia ter se reacendido após os genocídios contra os revolucionários perpetrados no Cone Sul, durante as ditaduras no Brasil. Argentina, Uruguai e Chile. Aleida fala, alternando lembranças de dezenas de episódios que ilustram o cotidiano daqueles anos. No entanto, ela comenta que o que teve o maior impacto foi a oportunidade de comparar as conquistas que seu país havia alcançado com os esforços de outro fazia para deixar para trás anos de opressão.

A ameaça dos EUA de invadir a Nicarágua fez com que ela não pudesse completar todos os anos que estava planejando ficar no país. Pouco depois de retornar a Cuba, decidiu se alistar para outra missão médica internacional, dessa vez em Angola. Embora o país tivesse conquistado sua independência de Portugal em 1975, após declarar a independência, o país foi mergulhado em uma guerra civil fomentada pelo apartheid da África do Sul. 

Com todas essas experiências, Aleida foi aprendendo e construindo o internacionalismo prático de Cuba. A solidariedade que essa pequena ilha do Caribe espalhou para os povos do mundo. A mesma solidariedade internacional com as lutas dos povos do mundo pelas quais Che deu sua vida. Aleida enfatiza o que considera ser o mais importante dessas experiências: aprender a ouvir e aprender com o povo.

 "O homem ou a mulher que decide se tornar um médico sabe que tem de se dedicar totalmente à saúde e à vida das pessoas. Meu pai também costumava dizer que um médico que só sabe sobre medicina nem sequer sabe sobre medicina. E isso é verdade", reflete Aleida.

"O médico tem que ter um diapasão muito grande, porque ele é a pessoa que está mais próxima da dor humana.  Assim, o médico se torna um centro muito importante da comunidade. Quando ele é realmente um médico, não estamos falando de mercenários médicos. Aqueles que só vão a consultórios particulares para tirar dinheiro das pessoas e lucrar com a dor do ser humano. Não estou falando deles, estou falando de médicos que realmente sentem isso. Eles sabem que a medicina não é uma mercadoria, é um direito humano e, como tal, deve ser respeitado.  

Centro de Estudos Che Guevara 

Por que Che tem esse hábito perigoso de continuar nascendo? pergunta o escritor uruguaio Eduardo Galeano em no poema El Nacedor. A pergunta poderá ser feita novamente em 2023, ano em que se comemora o 95º aniversário do nascimento de Che Guevara. 

Em frente à casa onde Aleida cresceu, o Centro de Estudos Che Guevara está sendo concluído. Juntamente com sua mãe e uma equipe de pesquisadores e educadores, elas estão liderando o projeto, que tem como objetivo pesquisar e disseminar o trabalho do líder revolucionário. 

"Che é um homem que viveu muito pouco tempo, foi assassinado quando tinha 39 anos de idade. Mas nesse período de vida ele foi muito produtivo. Ele estava sempre criando, sempre falando e sempre agindo. Ele é um grande pilar para a formação de valores humanos. E nós temos que aproveitar isso", reflete Aleida. 

"Sobretudo, nas novas gerações. Daí a importância do Centro de Estudos que, em uma de suas facetas mais importantes, está investigando como atingir mais os jovens e as crianças, como tornar a imagem do Che mais digerível para todas essas diferentes faixas etárias, para que elas possam tê-lo como amigo. Como alguém com quem podem contar."

"É para isso que estamos trabalhando, estamos procurando maneiras de chegar até eles com histórias para poder chegar até eles com coisas simples sobre o Che que os levarão a procurar mais informações e estudar o trabalho do Che com mais profundidade", acrescenta.

Edição: Rodrigo Durão Coelho