Análise

Passou da hora de termos uma ministra negra no STF

Os gargalos no Judiciário brasileiro precisam ser pensados de formas complexas, e isso inclui a composição das cortes

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Com a proximidade da aposentadoria da ministra Rosa Weber, a demnda pela indicação de uma ministra negra comprometida com debater raciais e de gênero volta à tona - José Cruz/Agência Brasil

Não é de agora que as discussões sobre a composição do Supremo Tribunal Federal (STF) estão fervilhando. O debate já havia se aberto quando da necessidade de se indicar um sucessor para a vaga do ex-ministro Ricardo Lewandowski. Mesmo com o entendimento de que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva indicaria Ricardo Zanin, diversos setores da sociedade já apresentavam a necessidade de se pensar a composição da principal corte do país de forma a compor um grupo garantista e prezar pelo texto constitucional juntamente com a representatividade necessária quando pensamos o que é a estrutura social brasileira.

Com a proximidade da aposentadoria da ministra Rosa Weber, o tema volta com força. Indicar um homem para uma vaga ocupada por uma mulher poderia ser deletério, visto a baixa representatividade feminina no STF. Em entrevista recente à revista Marie Claire, a ministra Cármen Lúcia afirmou que "não há razão para que não haja uma mulher negra no STF".

Pensar a composição do STF e não apenas do STF deveria ser uma preocupação mais cotidiana nossa, pois a forma com que o direito é pensado, interpretado e proferido é algo que atinge a todos nós, mas especialmente mulheres, negros, indígenas, LGBTQIA+, pessoas com deficiência e outras camadas da sociedade. Digo isso por que pensar o direito precisa estar aliado com os desafios de construir uma sociedade mais igualitária, e isso perpassa por entendermos o impacto que o racismo, machismo LGBTQIA+fobia, psicofobia, diferenças de classe e tantas outras formas de marginalização social operam para a negação de direitos.

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Durante os meses em que o tema da composição do STF esteve e está posto no debate público, tenho visto argumentações rasas se contrapondo à necessidade de mais representatividade na principal corte do país, como se uma perspectiva de direito mais garantista fosse dicotômica com a necessidade de representatividade entre os ministros da Suprema Corte. 

Só os dados apresentados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e pelo Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) sobre a composição do judiciário brasileiro já deveriam ser alvo da nossa preocupação. Em levantamento realizado pelo CNJ se aponta que apenas 12,8% dos magistrados no Brasil são negros; já a pesquisa realizada pelo CNMP aponta que mulheres negras e homens negros são apenas 6,5% e 13,2% do total de membros que ingressaram nos últimos cinco anos.

Ao mesmo tempo, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública aponta que os negros são 68,2% do total das pessoas presas em nosso país. Há uma discrepância enorme entre quem é alvo das interpretações do nosso ordenamento jurídico e quem opera esse ordenamento jurídico. Essa assimetria gritante já deveria ser algo a alertar nossos sentidos.

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Além disso, o último período tem nos demonstrado o quanto no Brasil prevalece um desrespeito ao preceito liberal importante, que é o de garantir o devido processo legal nos territórios periféricos. As chacinas acontecidas nas últimas semanas acontecidas na Bahia, São Paulo e Rio de Janeiro deixam esse desrespeito à Constituição Federal e ao princípio do devido processo legal escancarado mais uma vez. 

Estes fatos revelam gargalos no sistema judiciário brasileiro que precisam ser pensados de formas complexas. Isso inclui a composição das cortes brasileiras, mas não estamos falando apenas sobre ter mulheres negras nesses espaços; estamos falando de mulheres negras que formulam sobre o direito numa perspectiva garantista, antirracista, decolonial e olhando para como é possível garantir o direito constitucional brasileiro frente a emergência da alta letalidade policial, além de outras questões relativas a raça e gênero que nos tornam desiguais e que não podem ser descartadas quando operamos o nosso ordenamento jurídico.

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Enfrentar as sistemáticas desigualdades raciais colocadas no sistema judiciário e os desrespeitos à Constituição Federal por causa do racismo e machismo tanto estrutural quanto institucional é um dos principais desafios da nossa Justiça. Quando falamos que temos juristas negras que estão à altura dos desafios postos ao STF como são Lívia Sant’Anna Vaz, Adriana Cruz e Soraia Mendes, nós também estamos falando que é preciso pensar a Justiça desse país para quem realmente precisa desta Justiça. Ou será que ela não é para nós negros e, especialmente, mulheres negras?

Ter uma ministra do STF negra, por si só, não vai resolver todos os gargalos existentes no Brasil derivados da colonização e de como o racismo e o machismo operam em nossas vidas. Porém, ter uma ministra negra e com compromisso com os debates raciais, de gênero e com o garantismo é sinalização importante para mais da metade da população desse país. Sinal de que não apenas as nossas vidas importam, mas de que se inicia verdadeiramente uma etapa da história do país de pensar a garantia de direitos para negros e negras de forma mais efetiva.

*Luka Franca é membra da Coordenação Estadual do MNU São Paulo.

**Este é um texto de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Thalita Pires