Jaquirana é um município gaúcho localizado em uma das regiões mais encantadoras do Brasil. Segundo dados do censo do IBGE, de 2022, tem apenas 3.690 habitantes, o que o coloca na posição de 4.491º dos 5.568 municípios brasileiros, do ponto de vista populacional. Ainda que esta posição revele que se trata de um município pequeno, Jaquirana é uma terra equiparável a São Paulo, pois também tem no seu entorno um grande ABC (São José dos AUSENTES, BOM Jesus e CAMBARÁ do Sul). Pode ser comparada a algumas cidades dos Alpes Suíços, porque tem tanta neve e geada no inverno que a paisagem montanhosa, onde estão encaixados rios sinuosos e cachoeiras formidáveis, tornam-se um deleite aos olhos e à alma.
Apesar da grandiosidade de seus encantos e contrastes, Jaquirana é, também, uma terra onde só os resistentes e valentes permanecem. A cidade está encolhendo. Quem vive o rigor do inverno desta região e precisa labutar desde as madrugadas geladas até o anoitecer cortado pelo minuano, sabe que o jaquiranense é antes de tudo um bruto. O bruto, aqui utilizado, não significa rude ou tosco, mas obstinado. Sobreviver às noites geladas, com temperaturas em torno de zero grau, em casas sem calefação é um desafio que somente pessoas obstinadas conseguem enfrentar. Essa firmeza nem sempre é uma questão de decisão, já que muitos não têm outra alternativa senão acostumar-se à rudeza do inverno. Outros o fazem por teimosia e amor por essa terra, onde costumes seculares passaram a conviver com o modernismo das tecnologias e das redes sociais.
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Entre os hábitos repassados de geração em geração está o fogo de chão (herdado dos povos originários que habitavam a região, possivelmente os Kaguás), que foi substituído pelo fogão à lenha desde a chegada dos colonizadores. É no torno do fogão que, mais do que calor para amenizar corpos encarangados, acontece todo convívio familiar e social. Entre conversas, piadas, histórias de alegrias, assombrações e infortúnios circula o velho e bom chimarrão que ajuda a aquecer o corpo e o espírito desse bravo povo.
Mas para ter o calor do fogão é preciso ter lenha, que tem ficado a cada dia mais escassa. A figura do lenhador, homem rústico, que sabia andar nas matas e encontrar árvores aptas para este uso, seja porque já tinham concluído seu ciclo de vida seja porque eram abundantes e facilmente repostas pelos processos naturais, foi condenada e está em extinção.
É neste contexto que vive o vô Pitoco, apelido carinhoso dado pelo neto Tuco, que é o xodó desse homem que mistura, em um olhar azul turquesa, a gentileza, a generosidade e a rusticidade. A sintonia dos dois era de outras vidas. Se um tinha um problema no braço, logo o outro também tinha dores que exigiam cuidados. Quando vô Pitoco começou a puxar de uma perna devido ao reumatismo, Tuco igualmente foi visto arrastando a perna com dor nas juntas. São unha e carne.
Divertem-se juntos. Um é a sombra do outro.
Vô Pitoco já nasceu lenhador. Sua primeira foto registrou um gurizote em um carro de boi transportando lenha com o irmão. Desde muito pequeno saia com seu machado (e reparem, não era uma motosserra) para o mato atrás de bracatingas (Mimosa scabrella) e de bugres (Cordia ecalyculata). Conhecia as árvores, seus encantos, seus ciclos e seu potencial de reprodução e de gerar calor. Eu acho que ele conversava com a mata e pedia permissão a cada golpe do seu machado, e elas sempre permitiam que algumas fossem abatidas, porque ele espalhava suas sementes para outros locais, onde os pássaros ou o vento tinham falhado. Além disso, ele preferia as árvores já caídas porque elas tinham completado o ciclo de vida. E assim limpava a áreas para que outras pudessem encontrar luz e calor para germinar e crescer.
Vô Pitoco cortava lenha para meia Jaquirana. Todos sempre tinham encomendas que ele atendia na velocidade de suas incursões pelas matas. Mas o tempo é duro com as pessoas que vivem os rigores do inverno serrano. Cansado da lida, resolveu trabalhar em uma das tantas serrarias instaladas em Jaquirana. Afinal, ele estaria trabalhando com arvores, que era quase tudo que conhecia. Mas ao invés de machado, foi trabalhar em uma máquina (serra elétrica), com a qual não tinha intimidade.
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No lugar das suas conhecidas árvores nativas (que exalavam um cheiro de relva) passou a corta pinus (Pinus elliottii), espécie exótica, que se adaptou muito bem à fria região do sul do Brasil. Já não interagia com a mata. As grandes toras eram trazidas para serem transformadas em madeira que abastece outras plagas e não mais os fogões das famílias jaquiraneses.
Por falta de costume, distração ou saudade da mata, o lenhador teve dois dedos decepados. E daí veio o apelido Pitoco. Para além dos dedos, perdeu o emprego. Resolveu voltar para a mata e encontrar suas velhas conhecidas. Contou a elas seu desgosto e como o cheiro da resina do pinus lhe causava dor. Essa árvore estrangeira não entende de diversidade e interação. Ela é egoísta e não compartilha o solo com outras espécies, as sufoca. São absolutas e reinam solitárias por grandes extensões. Mas pagam caro por isto. O fogo, nestas áreas, é quase sempre devastador devido à resina que sufoca quase tudo, mas que se torna um combustível para labaredas avassaladoras.
Vó Pitoco, um pouco mais alquebrado e mutilado voltou a cortar lenha, ainda que o corpo já não tivesse mais vigor. Levava pequenas carretas de madeira para sua casa para ir vendendo aos poucos para quem lhe encomendasse um metro aqui outro acolá. Fatigado, encontrava alegria nas risadas sapecas do Tuco, nas conquistas da sua filha, quase “doutora”, ou nas aventuras dos netos e netas, todos ruivos. Uma pinga antes do almoço também lhe dava conforto para seguir na lida.
Mal sabia vô Pitoco que o Congresso Nacional havia votado, há quase 25 anos, uma lei que ficou conhecida como Lei dos Crimes Ambientais (Lei nº 9.605/1998) que se destina a punir, com sanções penais e administrativas, as condutas e atividades lesivas ao meio ambiente. Ele que conversava com as árvores e espalhava suas sementes foi transformado em criminoso pelo rigor da Lei depois de uma denúncia anônima.
Qual foi a intenção ou quem foi o denunciante até hoje não se sabe. O processo se arrastou por alguns anos, mas o veredito chegou. O tempo de espera levou o sono, o resto de alegria e de saúde de Vô Pitoco. Nem o riso do Tuco aplacava sua melancolia. De martelinho em martelinho foi ficando desassossegado e, como um sinal da tristeza contida, sempre tinha uma lágrima escorrendo pelo canto de seus olhos, que podia ser uma disfunção ocular, mas que revelava sua dor.
Chegado o veredito, foi estabelecido pela Justiça que o lenhador não podia mais ser o que sempre foi - um lenhador. Também deveria doar toda produção (apreendida) e que já estava apodrecendo no quintal, para instituições de caridade da região. Mas a vida sempre surpreende. A instituição contemplada foi um orfanato de crianças desvalidas de quase tudo. E do “crime” do lenhador fez-se um bem.
Por algum tempo, aquelas crianças teriam a garantia de ter um pouco de calor para aquece-las no frio enregelante do inverno. Foram tantos os abraços e agradecimentos que vô Pitoco entendeu que todo mal carrega um bem. Quem o denunciou não sabia, mas estava devolvendo a fé ao lenhador. Mesmo velho e sem muitas forças, ele sabia que continuaria suas incursões pelas matas, transportando sementes e encantamentos em troca não de lenha, mas de sossego para sua alma. O machado foi aposentado, ainda que muito barulho de serrarias ecoe nas periferias de Jaquirana.
A pergunta que me abate é qual o caminho que precisaremos trilhar para aperfeiçoar as leis ambientais, ainda que elas sejam mecanismos necessários para amenizar conflitos e proteger a natureza? Porque elas conseguem alcançar um lenhador que enchia de calor os lares jaquiraneses, mas não têm força para impedir o avanço dos devastadores das florestas brasileiras, que sem intimidade com as matas, as devastam por ganância e cobiça?
* Ambientalista, feminista e professora ([email protected])
** Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Marcelo Ferreira