Ponto de vista

Mulheres morrem apenas por se amarem

Precisamos de dados confiáveis da violência contra as lésbicas para criarmos políticas que as protejam

Brasil de Fato |
Exigimos viver em um país seguro mulheres lésbicas - Foto: Paulo Pinto / FotosPublicas

 

“Ô vizinho, você ficou sabendo do casal que foi assassinado dentro da própria casa?

Tô sabendo não, tô trabalhando demais vizinho… nesta cidadezinha tão pacata agora tá violenta assim?

Mas é que elas eram um casal de mulheres…tão falando que foi crime de preconceito por elas serem daquele jeito, sabe? Sapatão…

Oxente, mas isto não justifica não. O criminoso já tá na cadeia?

Tá não, dizem ainda que foi o tio que matou e fugiu pelo mundo. 

Ave Maria, Deus abençoe e conforte essa família. 

Amém, vizinho, Amém!”

Essa é uma história de mais um casal de lésbicas que foi assassinado dentro da sua própria casa por uma pessoa próxima. Em casos como este, a maioria das investigações são arquivadas, principalmente quando se tratam de mulheres pobres, pretas e periféricas, em que a família não tem recursos para conseguir acesso à Justiça.

O nome para esta situação é lesbocídio, que são crimes de ódio contra mulheres que se relacionam entre si. Parece mais um nome e mais uma complexidade no vocabulário LGBTQIA+, mas é muito importante que os casos de lesbocídio sejam categorizados desta forma. Esse é um caminho para um acompanhamento efetivo de política pública e para o entendimento se há uma evolução ou não nesta temática, para, assim, criar estratégias específicas e assertivas que são diferentes dos casos de feminicídio.

A má notícia é que os indicadores relacionados a mulheres lésbicas são praticamente inexistentes em todo o país. Para entender um pouco desses números, primeiramente, precisamos saber quantas pessoas se autodeclaram como mulheres lésbicas ou bissexuais/pansexuais, então, vamos aos dados apurados em 2019 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). O  levantamento indica que 2,9 milhões de pessoas de 18 anos ou mais se declaram lésbicas, gays ou bissexuais.

A divulgação foi polêmica, pois segundo outras pesquisas realizadas por universidades, como a Universidade de São Paulo (USP), a população LGBTQIA+ chega a quase 20 milhões no Brasil, uma diferença exorbitante. Mas vamos ao que interessa, deste percentual quantas são mulheres que se relacionam com mulheres?”

Apenas 0,9% deste número se consideram lésbicas. O próprio IBGE disse que a pesquisa ainda é um “experimento” e que muitas pessoas não se sentem confortáveis em se autodeclarar da comunidade LGBTQIA+. Isso se dá a muitos fatores, seja pela própria pessoa que não se autodeclara por medo; ou pela própria família que nega, já que muitas vezes o censo é realizado por uma única pessoa do domicílio que responde por todos que moram ali. 

O próximo passo é entender o percentual de mulheres que sofrem violência por lesbofobia. Segundo o Anuário de Segurança Pública de 2022, há um descaso na produção de dados e também imposição de barreiras ao atendimento da população LGBTQIA+.

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É importante explicar que não existe nenhuma lei específica contra crimes à população LGBTQIA+, dessa forma, os crimes referentes à lesbofobia são regidas pela mesma lei de injúria racial e racismo, portanto, além da falta de capacitação dos profissionais no entendimento e acolhimento às vítimas, existe uma confusão no registro destes dados e consequente, não há relatórios com números assertivos. 

Apesar de ser uma missão quase impossível conseguir estes indicadores, felizmente, coletivos, organizações da sociedade civil, familiares e a própria mídia têm buscado apurar esses casos. Segundo Gênero e Número (2022), em média seis lésbicas foram estupradas por dia em 2017, sendo que 61% aconteceram mais de uma vez e a grande maioria dos agressores são homens próximos, que convivem inclusive na mesma residência. 

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Não existe motivo que justifique o estupro, contudo muitas pessoas acreditam na “cura lésbica” através de reza, casamento forçado e estupro. Essas “soluções mágicas” não existem e causam problemas muito maiores como a depressão, suicídio e homicídio. A partir do Dossiê sobre Lesbocídio do Brasil de 2014 a 2017, foram identificadas 54 mortes de lésbicas em 2017, um aumento de 237% em relação à 2014; e 19 casos de suicídio no mesmo ano, um percentual que representa 32% de toda a comunidade LGBTQIA+.

Já que dá tanto trabalho, por que investir?

Porque 1% de mais de 200 milhões de pessoas é muita coisa. Vamos imaginar que você trabalhe em uma empresa que tenha milhões de clientes, mas 1% faz reclamações diárias graves sobre o atendimento da empresa, diversas estratégias serão direcionadas para solucionar este problema. Agora imagine se houvesse uma morte de um cliente relacionado à empresa?  Mobilização geral. Manifestações. Caos. Se centenas de mulheres sofrem crimes de diversos tipos relacionados à lesbofobia no país, a segurança nacional deveria estar se mobilizando da mesma forma, já que os casos de violência custam muitos recursos para o Estado. 

Mas não é somente sobre recursos. 

Nós queremos viver em um país inclusivo e principalmente, seguro. O nosso imposto e o nosso voto devem ser direcionados para que qualquer pessoa viva de forma segura e consiga que todos os seus direitos como cidadã sejam assegurados. 

Mais questionamentos, menos violência, menos crimes contra mulheres lésbicas. O que precisamos é de políticas públicas que mudem este cenário. Hoje eu vou dormir pensando nestes números, e eles não vão sair da minha cabeça tão cedo, porque, mais do que números, eram mulheres que amavam e só queriam ser livres.

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DJ Ana Karolina de Souza Santos, Ana Paula Campestrini, Marielle Franco, Jeyciele Moura dos Santos, Clara Ferreira de Oliveira, Rosely Roth, entre outras mulheres vítimas de lesbofobia, presente!

*Juliana Gonçalves é fundadora e diretora do Instituto Rebbú, é especialista em gênero e suas interseccionalidades, acredita que a mudança só acontecerá se for coletiva. 

** As opiniões expressas nesse artigo não representam necessariamente as do Brasil de Fato

Edição: Rodrigo Durão Coelho