VENEZUELA

Blanca Eekhout: a experiência da Venezuela na construção da democracia está sob ataque

Em seus 24 anos de existência, a Revolução Bolivariana construiu uma nova forma de estrutura popular e democrática

|
Blanca Eekhout faz parte da Assembleia Nacional da Venezuela - Grecia Colmenares

Desde o seu início, projetos progressistas e anti-imperialistas enfrentam constantes e enormes desafios. Há a urgência de resolver os problemas socioeconômicos do povo: fome, desemprego e acesso à saúde e educação. Mas como resolver essas questões sem avançar as forças de produção e desenvolvimento econômico? Ao mesmo tempo, como a economia pode desenvolver-se em um mundo capitalista sem reproduzir a exploração dos trabalhadores? E além disso, como isso pode ser alcançado face a resistência de uma oligarquia local rancorosa e um imperialismo determinado que, juntos, coordenam ações de desestabilização, cerco, sabotagem, campanhas na mídia e mesmo tentativas de golpe e assassinato?

No processo dos Dilemas da Humanidade, ao pensar na construção do socialismo, estas são questões fundamentais. Em seus 24 anos de existência, a República Bolivariana da Venezuela confrontou-se com todas essas questões e outras mais com uma perspectiva criativa e centrada nas pessoas. Como todo processo, ela cometeu erros e acertos. Seu caminho oferece muitas lições àqueles que ousam pensar sobre como construir um mundo pós-capitalista.

Blanca Eekhout, vice-presidenta da Assembleia Nacional venezuelana e Presidenta da Comissão de Construção de Comunas, falou sobre esse caminho e como o Projeto Bolivariano Chavista criou novos métodos de construção do poder popular e democracia apesar das circunstâncias adversas.

A Revolução Bolivariana continua a existir apesar da implacável agressão imperialista. Ela enfrentou mais de 900 medidas coercitivas, tentativas de assassinato e de invasão coordenada por gangues mercenárias, ações criminosas e atos terroristas, como as “guarimbas”. Em resumo, a Revolução enfrentou todos os tipos de coisas terríveis.

Acima de tudo, há uma guerra econômica permanente [contra a Venezuela]. Se trata de uma guerra multifatorial e travada de todos os lados, mas uma de suas manifestações mais óbvias é a série de tentativas de saquear nossa economia e enfraquecer nossa indústria petrolífera.

Tem sido horrível, mas apesar das centenas de dificuldades com as quais lidamos, temos construído algo extraordinário e que nunca parou. Trata-se da construção de um novo poder, um poder diferente: o poder popular. Estamos erguendo nosso processo constituinte que é nada mais do que a transformação da estrutura legal da República pelo povo. São as pessoas os responsáveis por decidir sobre leis e o romper com as centenárias amarras coloniais. Ao fazer isso, elas colocam no centro seus desejos, demandas, lutas e sonhos. Ao longo desse processo, nós temos estabelecido um novo Estado, um Estado que é de direito, comunal, igualitário e justo.

Nós tornamos [a Venezuela] um modelo que é participativo e centrado em pessoas, construído de baixo, pelo povo. Para nós, este é o socialismo do século XXI, esta é a Revolução Bolivariana, esta é a construção coletiva do socialismo pelo povo e com o povo em um ato de democracia verdadeira, profunda e radical. Nós somos específicos sobre que tipo de democracia [queremos], pois em muitos aspectos ela se tornou uma falácia, uma mentira. Vemos uma democracia “representativa” na qual apenas os setores oligárquicos exercem poder. O povo é convocado a votar a cada quatro, cinco ou seis anos, ato o que, na maioria das vezes, nem mesmo é respeitado, ou, por meio de fraude, o povo tem seu direito de participação no processo eleitoral negado.

Portanto, em nosso caso, a democracia é permanente, um fato constante. É uma democracia em construção, que é coletiva e trata do exercício soberano do desejo, da soberania popular. Digo que em circunstâncias muito complexas e passando por diferentes fases, nós tivemos avanços gigantescos e encaramos dificuldades enormes que por vezes pareceram paralisar o processo.

A Venezuela, por exemplo, alcançou os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio antes da maioria dos países. Conseguimos acabar com o analfabetismo. Fomos de país sem uma alta taxa de alfabetização para sermos o país com a quinta maior taxa mundial de matriculados em universidades; nesse quesito, somos o segundo na Nossa [sic] América. Fomos de taxas de pobreza de 40-50% para a superação da pobreza com um programa alimentar que foi tão bem-sucedido que existem hoje programas alimentares das Nações Unidas (ONU) que levam o nome [do ex-presidente venezuelano] Hugo Chávez. Fomos capazes de desenvolver um plano que nos permitiu tornar moradias não em negócio, commodity ou privilégio dos poderosos, mas em um direito de todos os cidadãos da República, um direito humano que é fundamental: o direito à moradia e a uma vida digna.

Nós alcançamos grandes e extraordinários avanços. Eles foram conquistados, acima de tudo, pelo povo, com o povo e por eles, com seu conhecimento e participação coletiva. Eu acredito que este é um dos elementos fundamentais no combate a esta terrível guerra contra a Venezuela. Nós provamos que é possível construir uma vida digna e justa quando o povo assume o poder. É possível colocar nas mãos do povo as mais importantes decisões.

É o próprio povo quem decide o caminho a trilhar e segue em frente, e isso não apenas na política, mas também na cultura e economia. Ele pode criar um novo modelo de Estado que só pode existir numa abordagem popular. Isso não foi feito por meio de decreto, muito menos é um fato apenas constitucional ou constituinte. Foi e continua sendo um exercício permanente e diário feito no território. Isso nos permitiu ter no momento 49 mil conselhos comunais organizados em quase 4 mil comunas, bem como experiências diferentes de organização dos nossos trabalhadores com os conselhos laborais produtivos, organizações camponesas e avanços admiráveis dos povos indígenas.

Em todo esse trabalho de estabelecimento do poder popular, o papel das mulheres também tem sido decisivo. Na Venezuela, elas conquistaram bandeiras e lutas de décadas, mas também se tornaram protagonistas fundamentais na construção desse poder popular em todo o território nacional. Tudo isso, reforço, tem sido um escudo para que, no meio de uma guerra tão brutal, criminosa e selvagem, continuemos de pé com uma revolução.

Nos comprometemos a erigir outro modelo de Estado e sociedade que é basicamente a construção de uma comunidade, bem como fazer desse estabelecimento do socialismo algo gratificante para nós, um ato consciente de celebração e luta popular.

Tudo isso tem sido combatido com uma guerra que quer quebrar nossa economia, mudar o regime, nos desmoralizar, dizer que este não é o caminho e nos dividir. Acima de tudo, ela procura silenciar esta experiência de modo que as pessoas ao redor do mundo não saibam sobre ou acreditem que se alguém seguir este caminho de construção do poder popular, ela irá se deparar com guerra, fome, destruição, pobreza, tristeza, migração e destituição.

Todos esses atos bélicos, então, são acompanhados por uma gigante campanha midiática de demonização da Revolução Bolivariana e assustadores casos de cerco para que nem a verdade nem a proposta de um mundo diferente saiam da Venezuela.

Paralelamente a essas transformações internas, a Venezuela também avançou na construção de um outro mundo. O país lançou a ALBA (Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América) e a Petrocaribe para que o petróleo venezuelano não permanecesse nas mãos das grandes transnacionais e pudesse chegar ao Haiti.

Esse recurso se tornou uma ferramenta para as pessoas do Caribe se ergueram contra a estrangulação imperialista que os fez dependentes, pois o petróleo venezuelano já havia ido para os Estados Unidos, que o vendeu a preços inacessíveis ao resto do Caribe. A Venezuela tomou posse do petróleo como um dos mais importantes elementos de promoção da unidade e desenvolvimento da América Latina e Caribe. Pela primeira vez em quase um século de exploração de petróleo, ele chegou à Argentina e Uruguai. Mas o petróleo também alcançou todo o Caribe e o Bronx diretamente. Isso significa dizer que o fluxo do petróleo não seguiria os interesses transnacionais, mas sim a energia da vida.

Esses tipos de projetos só podem surgir a partir de uma perspectiva diferente do mundo, na qual a solidariedade é o motor fundamental das nossas relações. É uma visão da diplomacia dos povos. É uma perspectiva e necessidade construir um mundo diferente, diferente daquele que o capitalismo e o colonialismo nos impôs, o mundo que se tornou paradigma da modernidade.

Nós sabemos o que nos tornou aquela famosa frase do Obama (“Uma inusual e extraordinária ameaça aos interesses dos Estados Unidos”). Mas não se trata dos interesses dos Estados Unidos; somos uma ameaça às oligarquias. A Venezuela é uma ameaça ao império hegemônico que impõe uma visão única do mundo e que nega as cosmovisões de todos os povos, dos povos indígenas aos africanos condenados ao barbarismo da permanente exploração, a pilhagem da América Latina, silenciada e negada.

Para nós, é fundamental entender que a Venezuela levantou sua voz no momento mais terrível porque foi precisamente o momento quando parecia que tudo estava perdido. O fim da história havia sido anunciado, era o boom dessa coisa neoliberal bárbara. A Venezuela apareceu e gritou em 1989: pessoas em Caracas, Guarenas, Valencia, e muitos outros lugares disseram não para o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Banco Mundial e suas receitas de morte. Aquele grito teve uma importante ressonância em 1992, exatamente 500 anos após a barbaridade da ocupação do solo americano – nossa Abya Yala, Pachamama – daquele ato criminoso de colonização. Em 1992, apenas três anos após aquele levante, nosso Comandante Chávez liderou a rebelião civil-militar.

Aquele ato extraordinário quando tudo parecia perdido – ele se ergueu e isso foi traduzido em ação permanente e constante acumulação de força que nos permitiu continuar. Essa acumulação de força não é militar. Era a força dos sonhos que levaram a 1998 [ano no qual Chávez foi eleito presidente] e ao triunfo com um projeto que mais uma vez carrega o sonho de Bolívar, indo às suas raízes mais profundas. Diante de uma ameaça tão brutal como a do neoliberalismo e da colonização representada pela ALCA (Área de Livre Comércio das Américas), a única resposta era a natureza radical da existência da América Latina. E isso foi levantar as bandeiras da independência com Bolívar na vanguarda, mas também com Zamora, Tierra e homens livres. Terror à oligarquia. Agora dizemos terra, homens e mulheres livres. Com eles, estava Simón Rodríguez, que propôs um modelo diferente de educação e que o poder deveria estar onde vivem as pessoas, que não poderíamos condenar a humanidade a estar na periferia.

Então isso nos levou a construir esse sonho que triunfou eleitoralmente, mas esse triunfo não significa tomar o poder. Portanto, fica a questão: como levar adiante?

A resposta foi a chamada para a Assembleia Constituinte para que pudesse coletivamente construir o sonho. Isso nos fez avançar nas lutas históricas. Mas, acima de tudo, nos permitiu nos reconhecermos como latino-americanos. Todo esse enorme progresso que alcançamos com a Revolução não seria possível sem a relação com Cuba, sempre ao nosso lado desenvolvendo missões educações que nos possibilitaram acabar com o analfabetismo, missões médicas que trouxeram saúde para os bairros [urbanos], interior do apaís, milhões e milhões de seres humanos que nunca haviam tido acesso a atendimento médico.

 Construímos sonhos, os tornamos realidade. Essa utopia tornou-se verdade a partir do exercício permanente e consciente da ação política. Mas o Comandante sabia que tínhamos que aproveitar o momento para construir as bases desse novo Estado e por isso construímos os conselhos comunais e as comunas, organizações nos territórios e elaboramos as leis do Poder Popular.

Hoje é a nossa vez, em meio a toda essa complexidade, de avançar nessas leis. Em 2012, ele [Chávez] nos chamou para uma mudança de rumo (golpe de timón). No ano passado comemoramos dez anos de radicalização, porque estamos sempre avançando. Contudo, diante da pressão imperial, muitas vezes não alcançamos os saltos qualitativos e quânticos necessários.

Nesse momento, o Comandante convocou-nos a fazer da comuna o epicentro da ação política, cultural e social.

E, bem, sofremos esta ação brutal que foi a saída física do Comandante Chávez. Ddigo que foi produto desse plano de assassinato porque era uma doença inoculada. Pensaram que com o desaparecimento de Chávez a Revolução estaria derrotada.

O que eles não sabiam é que Chávez não era um homem: Chávez é um povo, Chávez é história, Chávez é um projeto de humanidade. Por isso viram, no meio do seu plano, que o povo seguiu e aí eles disseram “Ah, esta é uma ameaça incomum, extraordinária, porque tiramos o líder e essas pessoas continuam marchando”.

Então há a tentativa de assassinato contra o verdadeiro soberano que é o povo venezuelano. Por isso que este bloqueio e estas ações criminosas visaram assassinar em massa o nosso povo, gerando uma guerra civil, nos condenando à fome.

Mas temos à frente da República um lutador, um operário, um trabalhador sindical, que assumiu o legado e defesa do Comandante. Diante de todas as pressões, ele mesmo tem estado firme, não se desviou do curso, não se rendeu nem caiu na armadilha da guerra que os impérios tentaram iniciar.

Dez anos depois, ele nos chamou de volta ao comando – e é aqui que estamos agora. Estamos neste momento na radicalização das comunas e na reforma das leis do Poder Popular para garantir que sejam viáveis num momento complexo onde a realidade venezuelana mudou, pois o plano de bloqueio teve impacto, ele enfraqueceu o sector público e impediu-nos de colocar toda a força que havíamos conseguido como Estado ao serviço do povo.

Mas o povo resistiu e lá está o Comandante Operário Presidente Nicolás Maduro, inovando e criando. Diante da tentativa de nos levar à guerra pela fome, criou os Comitês Locais de Abastecimento e Produção (CLAP, em espanhol). Ele disse: “Bem, há pouca comida e com pouca comida, o que fazemos? Como fazemos isso? Iremos multiplica-la e a única maneira de fazê-lo é partilhá-la equitativamente. Isso só pode ser feito pelo povo.” Portanto, são as pessoas que garantem a distribuição dos alimentos e isso tem operado milagres.

Sem as comunas, conselhos comunais e organização popular, já teríamos sido derrotados há muito tempo. A unidade dos patriotas tem sido fundamental, assim como a existência de um partido unido e a união cívico-militar. Mas tudo isso não poderia ter sido mantido se não houvesse uma organização popular nos territórios que, em meio à desesperança semeada pelo bloqueio sufocante, pela tentativa de golpe, permaneceu esperançosa. Isso só é possível porque existe um povo consciente, organizado e mobilizado no território, revolucionando.

Somos um país que tem Estado e esta união cívico-militar é decisiva, bem como o papel do Presidente Nicolás como líder. Mas o poder não está só em [Palácio de] Miraflores [sede do governo venezuelano]. O poder está espalhado por todos os conselhos comunitários. A consciência da nossa liderança e do nosso presidente de que isso é fundamental nos permitiu enfrentar as adversidades e continuar em pé.

Às vezes parecia que estávamos sozinhos neste mundo, pois a campanha foi muito brutal. Mas no meio do que parecia ser a solidão, havia um povo consciente e consciente de que somos todos Chávez.

Este texto faz parte da série Vozes dos Dilemas, que busca trazer as perspectivas e os principais debates das diferentes organizações, intelectuais e lideranças políticas que fazem parte do processo dos Dilemmas of Humanity.