ACERTO DE CONTAS

Chile pode abrir depoimentos de vítimas da ditadura para facilitar busca por desaparecidos

Projeto depende de aprovação do Congresso chileno, onde governistas são minoria

Brasil de Fato | Botucatu (SP) |
De velas em riste, chilenos foram ao Palácio de La Moneda, em Santiago, no último domingo, dizer que nunca mais haverá um golpe de Estado no país - Pablo Vera/AFP - 10/9/2023

No final de agosto, o governo chileno anunciou que assumiria a busca pelas 1.162 vítimas da ditadura de Augusto Pinochet (1973-1990) que seguem desaparecidas até hoje. Desde então, uma questão em particular é tema de debates: como conseguir as informações necessárias para uma busca bem sucedida se as informações obtidas até o momento por comissões da verdade são secretas?

A Comissão Valech, criada em 2003, que documentou torturas contra milhares de pessoas durante a ditadura, se comprometeu a manter a confidencialidade das informações obtidas durante 50 anos. O governo do presidente Gabriel Boric, segundo projeto de lei apresentados ao Congresso na semana passada, pretende suspender o sigilo dos testemunhos, para ajudar a concretizar o Plano Nacional de Busca da Verdade e da Justiça. A ideia é fazê-lo parcialmente e com reservas.

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É um desejo antigo de Boric, que apoiou proposta similar quando era deputado, em 2016. Dessa vez, seu gabinete cogitou emitir um decreto, mas ao fim decidiu submeter o tema ao Congresso, onde não tem maioria nem na Câmara, nem no Senado. O ministro da Justiça, Luis Cordero, acha possível reverter a minoria num caso como esse. “Existe um motivo de persuasão forte o suficiente para conseguirmos os votos”.

Quando a gestão de Ricardo Lagos (2000-2006) fixou o prazo de 50 anos, há duas décadas, o então presidente explicou que se tratava de um gesto de respeito às vítimas, que não queriam estar vivas quando suas confidências viessem à tona.

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Uma fala da ministra de Mulheres e Equidade de Gênero, Antonia Orellana, dá uma pista do que motiva muitas vítimas a preferirem o sigilo. “Em dias nos quais se fala que a violência sexual contra as mulheres detidas nos centros de tortura é uma lenda urbana, seria bom lembrar que mais de 3.000 mulheres disseram terem sido vítimas dessa violência”, afirmou durante o anúncio do projeto.

Na semana passada, Cordero alegou que as informações, se fossem acessadas antes de o prazo ser cumprido, seriam usadas apenas para o programa de busca, de modo que se possa conhecer as circunstâncias enfrentadas pelas vítimas e cotejar dados com os das investigações judiciais em curso.

“A finalidade é cumprir com um dos objetivos do plano, que é traçar a trajetória de cada uma das pessoas detidas e desaparecidas, de modo que essa informação possa ser revelada no momento em que haja descobertas relevantes, com consentimento prévio das vítimas ou herdeiros”, afirmou o ministro.

“Quero ser bem enfático. As vítimas decidem o que se faz com essa informação”, disse o ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Álvaro Elizalde. “Se uma vítima se opuser, está em seu direito e sempre vamos respeitar sua decisão”.

Outros projetos apresentados no mesmo pacote pretendem criar a tipificação dos delitos de desaparição forçada e uma política nacional de memória e patrimônio, para aprimorar os mecanismos de financiamento e manutenção dos espaços de memória, além de eliminar o caráter secreto, reservado ou de circulação restrita de um conjunto de leis criadas durante a ditadura, entre outras propostas. Algumas delas são novas, outras tramitam há muitos anos.

Estatísticas

A Comissão de Prisão Política e Tortura, liderada pelo ex-bispo Sergio Valech (daí o apelido), produziu um informe que deu conta de 28.459 por prisões ilegais, tortura, execuções e desaparecimentos, além de mais de 800 centros de tortura. Durante o primeiro mandato de Michelle Bachelet (2006-2010), foi formada outra comissão, conhecida como Valech 2, que descobriu a existência de 9.795 novas vítimas de prisão política e tortura.

(Com informações do El País, La Tercera e Folha de S.Paulo)

Edição: Thales Schmidt