UNIÃO NA LUTA

Héctor Béjar: 'Precisamos ter contato com o proletariado dos dias atuais'

Peruano participou de etapa chilena do Dilemas da Humanidade, que terá encontro global em outubro, na África do Sul

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Héctor Béjar na abertura do painel da Conferência Dilemas da Humanidade, regional realizada em Santiago, capital do Chile. - Fotos en Lucha

Se você olhar para o atual mapa político da América Latina e Caribe, a maior parte da região é liderada por progressistas ou governos inclinados à esquerda. Isto marca uma significativa virada em relação aos cinco anos anteriores, quando os governos conservadores alinhados aos Estados Unidos dominavam.

Todavia, a batalha está longe de ter sido vencida. Interesses imperialistas continuam a ameaçar a região e oligarquias locais continuam a tentar minar e destituir esses governos. Aliado a isso está o que é, talvez, um novo fator, que é o crescente apoio entre setores da classe trabalhadora à extrema direita. Este fenômeno levanta questões fundamentais para as pessoas da esquerda.

Por que muitos setores da classe trabalhadora estão apoiando candidatos e políticas que são diretamente contrários a seus interesses? Por que organizações de esquerda e progressistas, além de governos, estão sendo incapazes de canalizar seus sentimentos de descontentamento e frustração com o sistema político e o capitalismo? Como a esquerda pode dialogar com esses setores essenciais e construir com eles?

No painel de abertura da conferência regional do Dilemas da Humanidade, realizada em Santiago do Chile em setembro, o veterano revolucionário e escritor peruano Héctor Béjar abordou algumas dessas questões chave, enfatizando as tarefas pendentes para as forças de esquerda caso elas estejam falando sério sobre trazer mudanças estruturais para o bem de toda a humanidade.

Existe um mundo secreto obscuro por baixo do sistema político reacionário na América Latina. Um mundo de monstros que estão prontos para vir à superfície assim que houver uma oportunidade. Uma de nossas tarefas é desvelar esse mundo. Para fazê-lo, para conseguirmos desarmar esse fantoche sombrio que ameaça não apenas aqueles de nós que estão aqui, neste encontro, mas também aqueles por quem nós lutamos, os povos da América Latina, especialmente os mais pobres.

Nós deveríamos nos parabenizar por termos alguns governos que chamamos progressistas na América Latina e alguns que são governos revolucionários. Não quero mencionar os nomes porque todos nós sabemos quais são esses países. Nos os tivemos, temos e continuaremos a ter. Mas eu quero também apontar as agendas pendentes, as ainda intocadas.

A primeira grande agenda é a questão do racismo. O racismo é furioso, grotesco, revoltante e delirante. Recentemente, vimos no Peru um país que se alegava não racista, mas que foi e é racista, e isso não apenas entre a classe dominante, mas entre muitos peruanos de outras classes sociais que não deveriam ser [racistas]. O racismo é uma das espinhas dorsais que sustentam os sistemas opressivos na América Latina.

E o que deveríamos fazer com a propriedade privada? Nos esquecemos que há na América Latina grandes propriedades e proprietários rurais. Agora temos não apenas grandes latifúndios, mas também mega latifúndios. Quem são os principais apoiadores da Media Luna [região política boliviana de maioria não indígena que faz oposição ao partido Movimiento al Soialismo] na Bolívia, se não aquelas famílias que não foram tocadas pela Reforma Agrária de 1952? Meus camaradas bolivianos e os agricultores do país não argumentarão comigo quando eu digo que a Reforma Agrária Boliviana da Revolução Boliviana em 1952 alcançou somente o Vale e deixou o leste da Bolívia intocado, assim como a reforma peruana deixou a Amazônia peruana intocada. Apesar de ser verdadeiro que no Peru os povos e territórios indígenas foram reconhecidos, nós nos esquecemos de aplicar critérios de título de propriedade de terra ali.

Agora, no Peru, também descobrimos que, apesar do fato de que tivemos uma reforma agrária radical, mais uma vez temos propriedades com 30 mil e até mesmo 60 mil hectares. E o que dizer dos produtores argentinos de soja? E os enormes cultivos brasileiros?

Portanto, há uma importante pauta aqui. Não estou dizendo que deveríamos ir aos grandes latifundiários agora. É preciso considerar questões táticas. Vocês mencionaram Sun Tzu [autor de “A Arte da Guerra”], pois ele deve ser nosso professor de modo que não esqueçamos o que temos que fazer.

E uma reforma urbana. Quando eu caminho pelo centro de Lima, vejo aqueles prédios antigos caindo aos pedaços habitados apenas por ratos, pois a administração municipal da capital peruana não ousa expropriá-los por serem de propriedade de grandes companhias. Ao mesmo tempo, a especulação imobiliária – que tem sido característica no mundo nas últimas décadas – tem nos deixado com grandes proprietários urbanos. Ao mesmo tempo em que há grandes propriedades privadas urbanas, há também pessoas deslocadas, despejadas, em situação de rua ou que não conseguem pagar o aluguel. Elas estão em Los Angeles, Nova York, Madri, Londres, Paris, Lima, praticamente todas as cidades do mundo. As mega cidades também possuem enormes contingentes de pessoas nas ruas. As pessoas nesta situação não são mais apenas o idoso sem-teto típico de Londres e visto quase com simpatia. Agora temos milhões de pessoas sem-abrigo no mundo.

Outra coisa: eu dou as boas-vindas ao fato de que o imperialismo está recuando em muitos lugares.

No próprio Peru, apesar de estarmos dentro do Southern Command [um dos Comandos Combatentes Unificados dos EUA] e de termos milhares de soldados estadunidenses ocupando nosso território neste exato momento, os Estados Unidos não tem mais nada a oferecer a nós, peruanos, do que armas, bombas e ameaças. Antes, se for feita uma comparação da história do Peru, os Estados Unidos nos ofereciam um discurso, mesmo que este fosse falso, mas pelo menos era atrativo: o discurso da liberdade contra a opressão. Eles também nos ofereciam a modernização, mas agora o imperialismo não possui mais nada a nos oferecer, apenas ameaças. Eles nos dizem para não negociarmos com a China nem nos associarmos aos russos. Há milhares de instrutores que, neste momento, estão dentro do território peruano instruindo oficiais do país na doutrina da OTAN, na qual as ameaças à Europa – China e Rússia – também são ameaças a nós.

Bem, esse imperialismo ainda está em nossas dietas, estômagos e cérebros, pois nós, peruanos, como muitos outros países latino-americanos, comemos tudo o que os Estados Unidos produzem. O McDonalds, que possui por volta de 50 milhões de cabeças de gado no Brasil, é o rei da dieta peruana. O saboroso prato com frango considerado receita típica peruana não é do país, porque o milho com o qual as aves são alimentadas é gringo, o milho amarelo que o Peru cultiva apenas em pequenas quantidades. As vacinas [usadas nos animais] são da América do Norte e nós apenas as montamos em Lima, nas várias fazendas localizadas na costa peruana.

Portanto, esses são pratos norte-americanos. Se adicionarmos a eles hambúrgueres ou galinhas, então teremos por volta de 80% da dieta peruana. O que fazemos sobre isso? Temos uma política de segurança alimentar, não temos? Nossos países deveriam ter a segurança alimentar como um de seus principais focos, pois dessa forma, para além do fato de que a soberania e segurança alimentar são a base de nossa independência, temos que dar espaço e abrir o mercado para nossos camponeses...

Algo que temos que considerar são as grandes mudanças sociais que ocorreram e têm ocorrido no mundo e em nossos países. Não vou repetir uma fala que vocês certamente sabem muito bem, vou apenas citá-la: a grande classe trabalhadora do século XIX foi substituída, e agora temos o proletariado, composto por migrantes, exilados, pessoas requerendo asilo, refugiados, deslocados e pessoas em situação precária. [Parte do proletariado] São os jovens que provavelmente irão votar no [Javier] Milei na Argentina, jovens que passam suas vidas fazendo integras em motocicletas.

Vocês fazem ideia de como é passar 12 horas sobre uma motocicleta? Poucos aqui sabem ou talvez nenhum de nós saiba. Viva assim e provavelmente você irá pensar como o Milei. Eles seguirão o Milei porque ao fazê-lo isso te impossibilita ler, o que também te faz vítima de uma educação precária e semeia um profundo ódio pelo sistema e contra qualquer um que apareça no Congresso Nacional, aquelas figuras falsas que fingem ser políticos quando não o são de verdade. Deste modo, você irá votar no primeiro que falar contra todos eles.

Isso é o que estamos vendo não apenas na Argentina, mas também em outros países. E vamos continuar vendo. Temos que conversar sobre eles, temos que ter contato com esse gigante precariado que é o proletariado de hoje. Penso que esse seja nosso grande desafio, pois é provável que uma grande parte do nosso discurso, como o que eu mesmo estou fazendo aqui e que talvez vocês estejam fazendo, não necessariamente tem a ver com o precariado. Precisamos achar maneiras de nos comunicar com eles e nos incorporar nesse mundo que é, por definição, nosso, uma vez que este mundo é o que será a base para a futura mudança e para o socialismo pelo qual todos nós lutamos.

Se o socialismo não incluir e interpretar todo esse novo universo e suas enormes manifestações humanas que mesmo hoje continuam a ser significativamente diferentes e dispersas, talvez não seremos capazes de alcançar o que precisamos. Contudo, não tenho dúvida que construiremos conforme refletimos e discutimos essa maneira de nos conectar ao mundo que está emergindo e da qual devemos fazer parte.

*Esta é uma versão editada da palestra proferida por Béjar na conferência Dilemas da Humanidade no Chile. Este texto faz parte da série Vozes dos Dilemas, que busca trazer as perspectivas e os principais debates das diferentes organizações, intelectuais e lideranças políticas que fazem parte do processo dos Dilemas da Humanidade.