TORPEDO GEOPOLÍTICO

Guerra no Oriente Médio atrapalha planos dos EUA de concorrer com a nova rota da seda chinesa

Foi suspensa a negociação do acordo entre Israel e Arábia Saudita, país-chave nos fluxos comerciais na região

Brasil de Fato | Botucatu (SP) |
Palestinos buscam sobreviventes após ataque israelense na Faixa de Gaza: enquanto nenhuma força militar apoiar os palestinos, domínio israelense deve prosseguir - Mohammed ABED / AFP - 9/10/2023

O Hamas afirmou que o ataque a Israel foi uma retaliação pelo que descreveu como ataques contra mulheres, profanação da mesquita de al-Aqsa, em Jerusalém, e pelo cerco à Faixa de Gaza, mantido pelo governo israelense. Do ponto de vista geopolítico, porém, um dos objetivos seria colocar novamente a questão palestina na agenda regional e internacional, já que o assunto do momento era, até então, a normalização das relações diplomáticas entre Arábia Saudita e Israel, na perspectiva de uma nova integração regional com interesses comerciais e geopolíticos.

O príncipe herdeiro da Arábia Saudita, Mohammed bin Salman, afirmou em setembro, pela primeira vez publicamente, que as negociações estavam em curso com o governo dos Estados Unidos para possivelmente estabelecer laços com Israel. Tal movimento poderia representar um fato marcante para a legitimidade regional de Israel, já que poderia incentivar outros países muçulmanos a seguir o exemplo.

O acordo era importante para Israel e para os Estados Unidos, pois era uma etapa dentro de um plano mais amplo, que pretende fazer um contraponto a um projeto trilionário lançado em 2013 pelo governo chinês, que prevê projetos de infraestrutura como rodovias, ferrovias e portos, além de obras no setor energético, como oleodutos e gasodutos ligando a Ásia à Europa. O projeto, conhecido como Nova Rota da Seda — em alusão à antiga rota da seda — faz a ligação entre Ásia e Europa através do Irã, da Arábia Saudita e da Turquia.

No mês passado, Estados Unidos, União Europeia, Índia, Arábia Saudita e outros países anunciaram um megaprojeto de linhas ferroviárias, portuárias e energéticas que pretende ser uma alternativa à rota chinesa, denominado Corredor Econômico Índia - Oriente Médio - Europa. Na ocasião, a Casa Branca informou que Jordânia e Israel, que não mantêm relações diplomáticas com a Arábia Saudita, também participariam. Mas agora, a participação ou não de Israel entra numa nova lógica, que vai depender dos desdobramentos do novo conflito com o Hamas. O acordo entre sauditas e israelenses parece estar temporariamente fora da mesa de negociações.

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A Arábia Saudita é um ator fundamental, porque faz parte dos dois acordos, explica Reginaldo Nasser, professor de Relações Internacionais da PUC-SP. Nesse sentido, ele acha que o novo conflito não afeta em nada a questão palestina, mas é um problema para Israel. Um problema que conta com a conivência da China, que “quer ganhar dinheiro” com sua rota comercial e, portanto, vê com bons olhos a não assinatura do acordo entre israelenses e sauditas. Lembrando que Pequim, no começo do ano, mediou um acordo de paz entre Riad e Teerã “que ninguém esperava”, segundo Nasser.

Arturo Hartmann, doutor em Relações Internacionais pela San Tiago Dantas, acha que seria “um golpe muito forte para os palestinos se, no atual estado de coisas, aumentasse o número de países árabes que oficialmente mantêm relações com Israel”. Na opinião dele, o efeito disso se manifestaria na correlação de forças dentro da qual se discute o direito à autodeterminação palestina, ou seja, o direito a ter um Estado autônomo e independente, algo que já foi determinado pela comunidade internacional, mas que nunca saiu do papel, uma vez que os dois territórios palestinos, Faixa de Gaza e Cisjordânia, seguem tendo sua existência marcada pela presença israelense.

“O caso de Gaza tem se repetido desde 2007”, contextualiza Nasser, citando o período no qual Gaza está sob governo do Hamas. A atual ofensiva do Hamas é mais ampla que as anteriores, mas a lógica de desenvolvimento é a mesma, segundo ele. “Israel vai cercar, vai massacrar, mas não vai eliminar o Hamas. Pode aumentar o número de mortos, de feridos, mas a lógica é a mesma. Gaza vai continuar cercada e a Cisjordânia, toda fragmentada."

O professor acha que nada vai mudar porque Israel continuará tendo apoio das grandes potências, o que não se restringe aos Estados Unidos e à Europa. “Rússia e China têm ótimo relacionamento com Israel. A Índia é um dos maiores parceiros de Israel”. Ele recorda que quando palestinos e israelenses assinaram o Acordo de Oslo, em 1993, articulado por Washington, a OLP (Organização para a Libertação da Palestina) reconheceu Israel e Israel disse que reconhecia a Palestina. Mas nada foi feito. O Estado palestino continua não existindo. “Quem supervisiona o acordo, quem força os signatários a cumprir? Ninguém."

“O processo de paz era de fato um processo de paz, mas tantas concessões foram feitas a Israel que se tornou outro mecanismo”, explica Hartmann. “A ideia de ter uma autoridade que iria policiar os palestinos serviu a um controle de território, serviu para segregar partes da Palestina entre lugares onde os palestinos iriam viver e lugares onde haveria assentamentos de israelenses. Não é algo voluntário."

Questionado sobre discursos proferidos na última Assembleia-Geral da ONU, nos quais presidentes como Joe Biden (EUA) e Luiz Inácio Lula da Silva (Brasil) defenderam a criação do Estado palestino, Nasser afirma que “palavras sem armas são mera retórica”. “Precisa ter tropa no chão para criar o Estado palestino."

Hartmann afirma que o discurso dos EUA precisa ser este mesmo, em respeito às regras do direito internacional e humanitário que eles mesmos ajudaram a criar. “Mas do ponto de vista dos seus interesses, os EUA precisam manter Israel como colonizador da Palestina", aponta. Washington condenou firmemente os ataques de Gaza e se prontificou a apoiar a retaliação israelense.

Outro país cujo nome circulou no noticiário é o Irã, prontamente apontado como possível envolvido no ataque desferido pelo Hamas. O governo iraniano, ainda que tenha elogiado a agressão, negou qualquer envolvimento. Nasser vê uma “armadilha” para “estigmatizar o Irã”. Uma hipótese plausível, na opinião dele, é que Benjamin Netanyahu, primeiro-ministro de Israel, esteja querendo arrastar o Irã para a guerra, para afastá-lo da Arábia Saudita e, assim, fortalecer a ligação de Tel Aviv com os sauditas e outras monarquias do Golfo Pérsico.

Nasser também entende que, para fazer o que fez com Israel no último fim de semana, o Hamas não precisa de armas nem de qualquer ajuda iraniana em termos de inteligência.

“Você viu os caras do Hamas descendo de asa delta? Pareciam presa fácil. Mas o exército de Israel não fez nada. Não tinha uma câmera, um drone, para ver isso? Para ver que tinha uma retroescavadeira derrubando uma cerca?”, questiona o professor. “Foi muito estranho. O Hamas não está poderoso coisa nenhuma." Ele afirma também que os serviços de inteligência do Egito alertaram Israel de que havia uma movimentação estranha na Faixa de Gaza.

Netanyahu, diz Nasser, está “na corda bamba”. “Cair o governo no meio desse momento é difícil, mas as evidências contra ele estão se acumulando”, afirma.

Israel tem um “governo em colapso”, define Hartmann, que menciona as articulações do gabinete de Netanyahu para tentar aprovar uma reforma judicial que tirava poderes do Judiciário, abrindo caminhos para que o governo tivesse mais liberdade de atuação, inclusive na repressão aos palestinos.

Nasser discorda. Para ele, o Judiciário ajudou e sempre atestou a ocupação da Palestina por Israel. “É esse pessoal que agora quer derrubar o Netanyahu”, contesta o professor, dizendo que o premiê pode funcionar como “bode expiatório”, inclusive da “chamada esquerda”, e que depois da eventual queda dele, o processo de subjugação dos palestinos tende a continuar.

Uma análise que emergiu dos ataques do Hamas é que eles serviriam para melar o acordo Israel-Arábia Saudita, mas também prejudicariam a imagem do grupo palestino perante uma comunidade internacional. Arturo Hartmann discorda. “O Hamas já era um pária internacional, já é rejeitado desde que foi eleito para governar Gaza. Então, acho que na conta deles, eles têm mais a ganhar com uma incursão em Israel do que a perder.”

Na visão dele, dentro do atual cenário de “total controle e subjugação” dos palestinos por parte de Israel, o Hamas “tenta provar que esse cerco pode ser quebrado”, de modo a mostrar “fraqueza do colonizador”. Por outro lado, o especialista entende que a liderança palestina também tem fracassado na organização do tecido social da população palestina. “Agora tem que ver os próximos passos, porque nenhuma resistência sobrevive se não cuidar do tecido social."


 


 

Edição: Leandro Melito