ATAQUE À MÍDIA

Repressão ao site de notícias Newsclick é um ataque ao movimento dos agricultores indianos

Veículo de mídia indiano é perseguido por cobrir pautas ligadas aos movimentos populares

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Profissionais de imprensa protestam contra prisão de jornalistas na Índia - NewsClick

No último dia 03 de outubro, quinhentos policiais de Nova Delhi cruzaram a capital da Índia para atacar e prender quase cem jornalistas e pesquisadores. A Polícia de Nova Delhi, que está sob a autoridade do Ministro de Assuntos Interiores da Índia, tomou laptops, telefones celulares e HDs. O alvo principal dessa incursão massiva contra a mídia era o Newsclick, um site fundado em 2009. Ao final do dia, a Polícia de Délhi prendeu o fundador e editor-chefe da Newsclick, Prabir Purkayastha, e seu chefe de recursos humanos, Amit Chakraborty

Uma questão, acima de todas, obcecava os investigadores da Polícia de Délhi: o movimento dos agricultores indianos, que culminou em um enorme protesto entre 2020 e 2021. A polícia perguntou aos jornalistas se haviam cobrido os protestos, ocasião na qual os agricultores ocuparam estradas na capital indiana opondo-se contra três leis aprovadas pelo governo de direita do partido Bharatiya Janata, liderado pelo primeiro-ministro do país, Narendra Modi. Se eles cobriram esses protestos, disse a polícia, haviam ganhado um bônus do seu empregador, o Newsclick? Os questionamentos eram contundentes e duros. O foco era sobre o que eles haviam reportado – particularmente o movimento dos agricultores e a resposta do governo indiano à pandemia de COVID-19 –, e não em quaisquer infrações contra a lei que poderiam ter cometido os jornalistas ou o site de notícias. No caso de haver qualquer mal-entendido, enquanto o Artigo 19 da Constituição da índia não menciona diretamente a imprensa, ela ainda assim oferece aos cidadãos do país “liberdade de fala e expressão”. Isso se dá apesar do fato de que a Índia saiu da posição número 161 para a 180 no Índice Mundial de Liberdade de Imprensa (2023). A intimidação praticada pela Polícia de Nova Délhi contra os jornalistas justifica a posição da Índia no índice.

Pouco depois da prisão, o Primeiro Informe da Polícia (FIR, na sigla em inglês), que o judiciário utilizou para justificar a detenção de Purkayastha e Chakraborty, expôs o argumento usado para levar os dois homens sob custódia. O FIR é um documento alucinatório que falha ao tentar apresentar os crimes das pessoas encarceradas. O Newsclick agiu fortemente contra o FIR, chamando-o de insustentável e falso ex facie [expressão latina que significa “na cara”]. Uma das alegações mais hostis é que a Newsclick foi fundada por dinheiro privado e governamental chinês. Como disse a publicação categoricamente, “A Newsclick não recebeu nenhum fundo ou instruções da China ou de entidades chinesas”. De fato, logo após a Newsclick divulgar o esclarecimento, Jason Pfetcher publicou uma declaração em nome da Worldwide Media Holdings, responsável pelo investimento de 2009 na Newsclick. Pfetcher disse que a Worldwide Media Holdings é mantida com recursos advindos da venda de uma empresa de TI para Apax Partners, do Reino Unido.

No meio de uma divagação quase que de fluxo de consciência, a FIR diz o seguinte:

As pessoas acusadas também conspiraram para interromper fornecimentos e serviços essenciais para a vida da população na Índia e colaborou com a dilapidação e destruição de propriedade pela prolongação do protesto dos agricultores através de tal financiamento estrangeiro ilegal. É sabido que com este propósito, um nexo mutuamente benéfico foi estabelecido entre algumas entidades indianas e estabelecimentos estrangeiros inimigos. O objetivo do acordo supramencionado era promover e apoiar-se mutuamente com o propósito de financiar a agitação dos agricultores para causar enormes perdas de várias centenas de milhões à economia indiana e criar problemas internos de lei e ordem na Índia.

Na enxurrada de acusações infundadas surge um conjunto de acusações graves contra a Newsclick e os seus jornalistas:

Que a Newsclick e/ou seus jornalistas utilizaram fundos estrangeiros vindos de “estabelecimentos estrangeiros inimigos” não para reportar sobre a situação, mas para incentivarem a luta.

Que a Newsclick e/ou seus jornalistas prolongaram as manifestações para atingir economia indiana e perturbar a paz interna.

Que a Newsclick e/ou seus jornalistas ameaçaram a segurança alimentar da Índia ao apoiar os protestos dos agricultores.

Tais afirmações do governo diminuem o papel real dos agricultores nos maiores atos ocorridos nos anos de 2020/2021, algo que possui uma longa história que – de fato – antecede a fundação da Newsclick, ocorrida em 2009. Dizer que foi a Newsclick que arquitetou a revolta dos pequenos agricultores é menosprezar os agricultores da Índia, suas famílias e quase um bilhão de pessoas – ou 70% da população da Índia – residente em áreas rurais, em sua maioria apoiadores da luta.

Do suicídio ao protesto

Entre 1995 a 2018, quase 400 mil agricultores cometeram suicídio na Índia (um quarto disso desde que Narendra Modi se tornou Primeiro Ministro, em 2014). Isso se dá em grande parte devido aos altos preços de insumos e o baixo preço dos grãos, resultado de políticas agrícolas neoliberais implementadas desde 1991 que exacerbaram outras crises (incluindo as catástrofes climáticas). A retirada dos esquemas de crédito apoiados pelo governo para dar suporte aos agricultores, o desgaste do esquema de compra agrícola do governo (para oferecer preços justos aos agricultores e fornecer alimentos a preços razoáveis para a população) e a entrada de grandes empresas no sector agrícola indiano pressionou, como uma pedra de amolar, as esperanças das comunidades agrícolas do país. Neste contexto, os agricultores endividados começaram a cometer suicídio bebendo fertilizantes, um dos insumos que havia se tornado mais caro à medida que o preço dos produtos agrícolas diminuía.

Contudo, ao longo da última década, pequenos agricultores liderados por uma variedade de organizações, incluindo sindicatos de esquerda de agricultores e trabalhadores agrícolas, têm lutado por meio de grandes mobilizações por todo o país. Um dos primeiros eventos emblemáticos ocorreu em março de 2018, quando 50 mil produtores rurais, liderados pela organização comunista All-India Kisan Sabha, marcharam por 200 km de Nashik a Mumbai em Maharashtra para protestar contra a falta de assistência quando colheitas foram destruídas infestação de pragas e enchentes em 2017. Quando os agricultores entraram em Mumbai tarde da noite em 11 de março daquele ano, eles souberam que estudantes da cidade teriam uma importante avaliação no dia seguinte. Então, ao invés de descansar e caminhar pela cidade durante o dia, os exaustos protestantes caminharam à noite para não atrapalhar os estudantes. As notícias sobre esse ato de gentileza se espalharam por Mumbai e várias pessoas se juntaram aos agricultores até Azad Maidan. Essa longa marcha seguiu-se a uma série de protestos: a agitação nacional em 2015 contra a nova Portaria de Apropriação de Terras, como foi chamada pelos agricultores; a marcha nacional ao parlamento em 2016 para exigir isenção de empréstimos, direitos territoriais e aumento de pensões; e as greves de 2017 em Madhya Pradesh, Maharashtra e Rajasthan pela isenção de impostos.

No verão de 2020, o governo do Primeiro-Ministro Modi apresentou três projetos de lei no parlamento que iriam efetivamente uberizar o campesinato. Com razão, os agricultores viram os três projetos de lei propostos por Modi como uma ameaça existencial e, por isso, em 26 de novembro de 2020, decidiram participar de uma greve geral de 250 milhões de trabalhadores e camponeses. A partir do dia seguinte, eles permaneceriam em acampamentos ao redor de Délhi num protesto indefinido. Repórteres de uma vasta gama de projetos de veículos vieram cobrir esta Comuna de Délhi, mas a maioria deles retornou para suas casas enquanto os repórteres do Newsclick permaneciam no local, cobrindo todos os aspectos do protesto dos agricultores. As visitas ao site do Newsclick aumentaram geometricamente, com milhões de pessoas assistindo, por exemplo, às entrevistas curtas em vídeo com os agricultores. O protesto não terminaria. Ele enfrentou repressão policial, hostilidade e ataques do governo e condições climáticas adversas. Setecentas pessoas morreram nos acampamentos. Em 19 de novembro de 2021, uma semana antes do primeiro aniversário do protesto, Modi rendeu-se e prometeu retirar as leis. Esta foi apenas a segunda vez em sete anos que o governo Modi teve de revogar uma lei.

Newsclick e os agricultores

Em fevereiro de 2021, o Diretório de Fiscalização do governo da Índia invadiu a casa do fundador da Newsclick, Purkayastha, e o deteve em seu apartamento durante cinco dias. As autoridades retiraram os seus dispositivos eletrônicos e apreenderam uma imensa quantidade de material. Ficou claro, então, que o governo indiano tinha como alvo a Newsclick e outros pesquisadores (incluindo os Tricontinental Research Services) pela sua cobertura e análise da revolta dos agricultores. Poucos dias depois deste ataque, o professor Apoorvanand escreveu no The Wire,

“O Newsclick tem sido muito proativo em reportar o movimento dos agricultores. Seus relatórios de campo e vídeos analíticos estão sendo vistos por milhões de pessoas. Um governo empenhado em criar uma bolha na qual nenhuma informação ou pensamento seja permitido, sob pena de o seu caráter nacionalista ser violado, recorreria a todos os meios para evitar uma ruptura nesta bolha.”

Ficou claro que esta repressão não tinha nada a ver com o que as autoridades começavam a sugerir aos sussurros – lavagem de dinheiro, influência estrangeira, interferência chinesa – mas tinha tudo a ver com o movimento dos agricultores.

Poucos dias depois de o FIR começar a circular em outubro de 2023, a central organizacional dos agricultores, o Samyukt Kisan Morcha (“Frente Unida dos Agricultores” ou SKM), divulgou uma declaração sobre a depreciação do movimento dos agricultores e a repressão contra o Newsclick . Os agricultores, escreveram eles, criaram um “protesto pacífico” sob a liderança do SKM.

“Nenhum fornecimento foi interrompido pelos agricultores. Nenhuma propriedade foi danificada por eles. Nenhuma perda para a economia foi causada. Nenhum problema de lei e ordem foi criado pelos protestantes… Os agricultores tiveram de se manifestar durante 13 longos meses, sob o sol escaldante do verão, chuvas torrenciais e frio congelante do inverno. Foi o governo da União e [o partido no poder, BJP] que criou problemas de lei e ordem ao ceifar agricultores em Lakhimpur Kheri sob veículos em movimento, matando quatro agricultores e um jornalista… Menosprezar tal sacrifício alegando que o movimento foi financiado por estrangeiros e levou a atos de terrorismo revelam a arrogância, a ignorância e a mentalidade antipopular do governo da União.”

O SKM realizará protestos em massa em todo o país contra o governo pela sua depreciação da imagem dos agricultores e pelas suas lutas contínuas. O fato de o SKM ter ligado sua luta à dos jornalistas, como os do Newsclick, que querem contar as histórias de luta do povo, sugere que a história do site não se revelará apenas nos tribunais. Terá lugar em toda a Índia, à medida que os agricultores se juntam a outros na indignação com os ataques e detenções, com a tentativa de sufocar os jornalistas que querem cobrir os grandes processos do nosso tempo.

Vijay Prashad é o diretor do Tricontinental: Instituto de Pesquisa Social. Começou a contribuir para o Newsclick desde a semana de sua fundação, em 2009.

Para obter mais informações sobre a Revolta dos Agricultores, leia estes títulos da LeftWord Books:

The Kisan Long March in Maharasthra, com ensaios de Ashok Dhawale, P. Sainath, Vijay Prashad e Sudhanva Deshpande (2018).

When Farmers Stood Up. How the Historic Kisan Struggle in India Unfolded, de Ashok Dhawale, (2022).

Farmers on the Move: The Story of How Kisans Organized in Maharashtra, de Ajit Navale, (2022).