Pacote tóxico

Aprovação do PL do Veneno teria impacto global e aumentaria 'via dupla' de agrotóxicos com UE, destacam entidades

Dossiê sobre impactos dos agrotóxicos no Cerrado brasileiro e outros documentos serão levados ao Parlamento Europeu

Brasil de Fato | Brasília (DF) | |
Greenpeace e outras organizações levam a mobilização contra o projeto de lei à porta do Congresso Nacional, no dia 4/10. - Alex Mirkhan

O chamado PL do Veneno, que altera as regras para aprovação e comercialização de agrotóxicos no Brasil, está perto de ser votado no Senado. O Projeto de Lei, que aprovado na Câmara dos Deputados no ano passado, está sob a relatoria do senador Fabiano Contarato (PT-ES), que pediu vistas para negociar mais uma rodada de alterações.

As negociações estão sendo costurados com alguns nomes da oposição, como a senadora Tereza Cristina (PP-MS), ex-ministra da Agricultura do governo de Jair Bolsonaro (PL). Algumas alterações sobre tópicos essenciais serão apresentadas, mas organizações da sociedade civil não acreditam que irão alterar o cenário “preocupante” para o futuro próximo.

“O texto do Pacote do Veneno já nasce equivocado. Mas então o senador Contarato traz de fato melhorias ao texto, melhorias que infelizmente não são suficientes para que o Greenpeace, as organizações e a sociedade como um todo aceitem o texto que irá a votação”, comenta Mariana Campos, porta-voz de Agricultura e Alimentação do Greenpeace Brasil.

Mesmo os mais otimistas dão como certa a permanência no projeto de alguns pontos considerados extremamente nocivos, sendo que não é possível fazer mais acréscimos ao texto aprovado na Câmara. Eles foram listados em documentos produzidos e divulgados por entidades como a Fiocruz, a Associação Brasileira de Agroecologia e a Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva).

O médico Guilherme Franco Netto, coordenador do Grupo de Trabalho Agrotóxicos e Saúde da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), destaca a alteração mais estrutural entre todas. Trata-se da proposta de passar toda a responsabilidade sobre agrotóxicos no Brasil ao Ministério da Agricultura e Pecuária, o que passaria por cima da divisão tripartite que é feita, desde 1989, com os ministérios do Meio Ambiente e da Saúde.

Algumas agências desses ministérios, como a Anvisa e o Ibama, já bastante enfraquecidos com os seguidos cortes de orçamento dos últimos anos, ficariam fora do controle das substâncias tóxicas aplicadas na agricultura, reitera Netto. No relatório que será apresentado pelo senador petista, no entanto, foi suprimido trecho que poderia abalar a atuação dos órgãos e sua autonomia no processo de registros dos produtos.

Outros elementos retirados do texto que será levado à votação também possuem forte impacto simbólico e informativo, como a substituição do termo “agrotóxico” por outros mais brandos, como defensivos agrícolas e herbicidas. De acordo com nota divulgada pela assessoria de Contarato, o termo "pesticida" deve ser substituído em todo o texto pela palavra "agrotóxico".

“A tentativa de alteração no projeto é tão contundente nessa perspectiva de liberação, que ele inclusive elimina o nome agrotóxico, que é um nome reconhecido internacionalmente e já utilizado aqui há anos. E o próprio nome fala por si: é alguma coisa tóxica. Não existe a tese do não risco ou risco zero. Se você ingere agrotóxico, não está ingerindo apenas uma substância, é um mix de várias coisas e nós não temos o conhecimento científico de qual a reação do corpo humano”, alerta o cientista. 

Outro ponto crucial para os ambientalistas diz respeito à possibilidade de, sob um conceito vago de "risco aceitável", se permitir a aprovação de substâncias carcinogênicas, teratogênicas e mutagênicas. “Só esses três nomes já assustam sobre o potencial de problemas que podem trazer. A legislação atual proíbe substâncias que causam danos à saúde, como câncer, malformação fetal e mutações genéticas. O pacote do veneno como está hoje exclui essa proibição sob o argumento falacioso de que qualquer ingrediente pode ser liberado caso apresente, entre aspas, um risco aceitável. Mas sem dizer o que é esse risco aceitável. E aí ficamos nos perguntando: aceitável para quem?”, questiona Mariana Campos. Esse trecho também foi retirado do relatório, assim como outro que abria a possibilidade de registro e comercialização de moléculas que sequer foram avaliados pelas agências reguladoras. 

Esses temores todos, que permanecem em aberto apesar de melhorias no relatório que tramita no Senado, ganharam espaço no debate nacional com a adesão de personalidades públicas brasileiras. Em março de 2022, o músico Caetano Veloso e outros artistas promoveram o Ato pela Terra, que contou com a leitura de um apelo ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG). No último dia 4, o Greenpeace Brasil e outras entidades fizeram um ato simbólico em frente ao Congresso Nacional com cartazes e roupas hospitalares para alertar sobre a “grave ameaça à vida” com a aprovação do PL.

“Ecocídio nos Cerrados” traz dados alarmantes no bioma mais afetado

Mesmo antes de qualquer revisão da lei atual, a população brasileira já sente os impactos dos agrotóxicos. Além de quem consome os alimentos que chegam às cidades, os maiores afetados estão em comunidades vizinhas às áreas onde imperam monoculturas como milho, soja e algodão.

É o que mostra o dossiê “Vivendo em territórios contaminados: Um dossiê sobre agrotóxicos nas águas do Cerrado”, desenvolvido pela Campanha Nacional em Defesa do Cerrado e pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) em parceria com a Fiocruz. O levantamento, feito entre 2021 e 2023, analisou amostras de agrotóxicos presentes na água e no ar em sete estados diferentes de áreas próximas ao cultivo de soja - produto escolhido por ser, de longe, o que mais utiliza defensivos em quantidade e variedade. 

A geógrafa Mariana Pontes, da secretaria executiva da Campanha e uma das organizadoras da publicação, explica que foram selecionadas sete comunidades tradicionais, dentre as quais estão algumas quilombolas e ribeirinhas. Após as amostras laboratoriais colhidas em campo e analisadas nos laboratórios da Fiocruz no Rio de Janeiro, foram identificados 13 diferentes agentes ativos, todos eles autorizados para uso na soja no Brasil, mas muitos deles proibidos na União Europeia. “Esse é um dado que a gente destaca, porque eles são utilizados aqui, mas proibidos lá por serem extremamente tóxicos, prejudiciais à saúde e ao meio ambiente”, reafirma.

“Além disso, em todos os estados nós encontramos o glifosato, que é um agrotóxico que já sabemos dos malefícios à saúde e ao meio ambiente. E o Brasil é muito permissivo quando se compara com a União Européia, por exemplo. Aqui, o limite permitido de glifosato na água potável é 5 mil vezes maior do que na UE, assim como o 2,4-D, que também foi encontrado”, relata a pesquisadora, que também destaca a presença de fipronil - agrotóxico extremamente tóxico para as abelhas e que teria causado morte de enxames inteiros no Mato Grosso e outros estados recentemente. 

Netto, que conhece de perto a pesquisa e está produzindo um estudo subsidiário, também relata o caso mais assustador, encontrado em uma comunidade ribeirinha do sul do Maranhão. “Em uma única amostra de água, ou seja, um tubinho com milímetros de águas, foram encontrados 9 tipos de agrotóxicos distintos. Isso é sinal de que aquela área está amplamente impactada”, identifica.

Ele também sublinha o fato de o Centro-Oeste ser o grande consumidor de agrotóxicos do país, chegando a uma escala de cerca de 70% de todo volume aplicados no país. De acordo com o estudo, apenas em 2018, foram despejados  mais de 600 milhões de litros de venenos em áreas cultivadas no Cerrado, um bioma também marcado pelo desmatamento e por conflitos agrários.

Os pesquisadores relatam que a pressão do agronegócio e certo desconhecimento de equipes médicas locais contribui para que haja uma subnotificação de doenças relacionadas à exposição aos produtos. Mesmo sem realizar a coleta de sangue e outros possíveis indicadores nesta etapa do estudo, depoimentos coletados indicam a dimensão do problema.

“As comunidades relatam no dia a dia esses efeitos, principalmente em questões de pele, alergia, coceira. Têm casos de câncer aumentado em várias comunidades e nos próprios municípios próximos a essas comunidades. E outros efeitos que percebemos em questões hormonais, dores de cabeça, dor nos olhos”, comenta Pontes, que também alertam para os efeitos nos próprios cultivos: “são comunidades que trabalham na agricultura familiar, trabalham frutíferas, com plantas medicinais do Cerrado e essas plantas não estão mais se desenvolvendo como antes”. 

Venenos se espalham e não reconhecem fronteiras

Grande parte dos agrotóxicos importados pelo Brasil, que é disparado o líder nesse quesito na América Latina, vem justamente de países europeus. Os mesmos que mantêm forte restrição interna, mas que permitem às grandes empresas do setor sediadas na Inglaterra (Syngenta), Alemanha (Bayer e BASF) e França exportar anualmente toneladas de produtos contendo substâncias por si próprias como “maléficas” a países superpopulosos como Rússia, Japão, EUA, Indonésia e Índia.

A França, por exemplo, aprovou ano passado uma lei para combater esse tipo de comércio, que se poderia chamar no mínimo de antiético, o que não impediu que fossem exportadas mais de 7 mil toneladas após sua implantação. É o que aponta um relatório da ONG suíça Public Eye et Unearthed, que também afirma que 40% desse volume é de um fungicida utilizados em culturas de cereais e soja, potencialmente mais perigoso que os demais, a picoxistrobina, sendo o Brasil o principal destino. Além de alto risco para os organismos aquáticos, a substância tem potencial de danificar o gene humano. 

A ironia é que alimentos, cereais e oleaginosas produzidos no Brasil também retornam para alguns desses mesmos países, além de alcançarem muitos outros. Por exemplo, um estudo encomendado pelo Greenpeace em 2021 identificou 35 tipos de agrotóxicos em 70 frutas brasileiras comercializadas na Alemanha, dos quais 21 são enquadradas como “pesticidas altamente perigosos” pela FAO, agência da ONU para alimentação e agricultura, e pela Organização Mundial de Saúde (OMS).

Por entenderem que a aprovação do PL do Veneno também elevaria o consumo, há uma mobilização em curso para apresentar o estudo sobre o Cerrado ao Parlamento Europeu. “Temos apresentado recomendações a alguns ministérios e, a nível local, apoiado Ministérios Públicos distritais e assembleias legislativas estaduais, mas após a tradução do material para o inglês buscaremos incidências no Parlamento Europeu, ainda sem data prevista, e com certeza o dossiê estará entre os documentos que levaremos”, revela Mariana Pontes. 

A representante do Greenpeace, por sua vez, destaca a preocupação de várias organizações internacionais. “Essa é uma questão discutida inclusive nesses acordos internacionais. Acho que é nosso papel trazer visibilidade sobre essa questão para não ficarem escondidas ali nos acordos, porque queremos o cuidado com a saúde pública não só no nosso país, mas também lá fora, e isso pode nos trazer riscos jurídicos e econômicos”, pondera.

Outro aspecto importante, segundo Campos, é a possibilidade de o Brasil passar a autorizar a exportação de substâncias produzidas, replicando o modelo europeu. “Isso traz muitos riscos. Primeiro, para os trabalhadores daqui, para as pessoas do entorno desses lugares onde essas substâncias estão sendo preparadas, e até uma questão ética gravíssima, que é a mesma lógica da Europa, mas invertida: por que aqui não pode, mas tudo bem em outros países cuja legislação é mais frágil? O Pacote do Veneno segue com esse ponto em aberto que condenamos também”, afirma.

A organização internacional também cobra maior compromisso por parte do governo federal em resoluções que estariam ao seu alcance. “Outra coisa que precisamos olhar com bastante cuidado é a quantidade de venenos que seguem sendo liberados pelo Executivo. Então, não adianta as entidades todas condenarem, a Abrasco, o Inca [Instituto Nacional do Câncer], várias ONGs condenando o pacote do veneno, se por outro lado o Executivo continua liberando. O porquê de seguir liberando essas substâncias é uma pergunta aberta e que queremos entender. Não faz sentido, o que faz sentido é ter sistemas alimentares com menos venenos e não com mais”, critica Campos.

Uma das principais soluções apresentadas por especialistas e organizações passa pelo investimento em agricultura familiar e no investimento para uma rápida transição agroecológica. No dia 16, o governo federal anunciou novo aporte de R$ 250 milhões de reais em 2023 para o Programa de Aquisição de Alimentos, o PAA, que chega a um total de R$ 900 milhões, iniciativa comemorada por entidades como o Movimento dos Trabalhadores sem Terra (MST) e o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA).

“Esperamos que esse projeto seja rejeitado e que possamos fazer um substitutivo. Estamos caminhando para um processo de transições, no modelo energético, reformando o modelo que polui e agrava as mudanças climáticas. Os eventos de mudança climática que pensávamos que poderiam acontecer já estão acontecendo agora. E a única forma de mudarmos isso é produzir respeitando o ambiente, produzir a partir de uma nova matriz ecológica e que já provou que é possível”, comenta Anderson Amaro, coordenador do MPA. 

Dentre as recomendações apresentadas no dossiê da Campanha em Defesa do Cerrado, há inovações na legislação que poderiam unir o anseio dos brasileiros por alimentos saudáveis e a proteção ao cultivo e aos recursos naturais. “Além de proibir a pulverização aérea, além de banir os agrotóxicos que são proibidos em outros países, uma das recomendações que a gente traz é justamente pensar em territórios livres de agrotóxicos. Se queremos produzir alimentos sem veneno, agroecológicos, precisamos ter a garantia de territórios onde realmente não tenha agrotóxicos, para que se inicie uma transição agroecológica de fato”, conclui Mariana Pontes.
 

Edição: Rodrigo Durão Coelho