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Nota técnica do grupo de pesquisa Terras e Lutas propõe emendas e evidencia conflitos em jogo na revisão do Plano Diretor do RJ

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Revisão do Plano Diretor da cidade do Rio de Janeiro está em discussão desde 2020 - Fernando Frazão/ Agência Brasil
Prazo para protocolo de emendas foi adiado mais uma vez, e termina em 24 de outubro

Por Grupo de Pesquisa e Extensão Terras e Lutas*

Desde 2020, a cidade do Rio de Janeiro (RJ) vem debatendo a revisão do seu Plano Diretor, cumprindo as determinações de revisão decenal prevista no do Estatuto da Cidade (artigo 40, §3º, Lei 10.257 de 2001). Mesmo antes da apresentação do projeto de lei pela prefeitura, movimentos sociais e entidades da sociedade civil já criticavam a falta de participação social na elaboração do texto. Situação parecida ocorreu em diversas cidades pelo Brasil que, sobretudo no auge da pandemia de covid-19, não puderam ter a participação efetiva dos grupos vulneráveis e especialmente interessados na política urbana e habitacional nas suas revisões de planos diretores.

Depois de formalmente apresentado à Câmara Municipal, o Projeto de Lei Complementar (PLC) 44/2021 recebeu centenas de emendas pelo poder executivo, algumas das quais criaram obstáculos e removeram dispositivos importantes para a proteção do direito à moradia adequada. Até o dia 16 de outubro, esperava-se que os vereadores apresentassem suas próprias emendas ao projeto, que depois seguirá para a votação final em plenário. No entanto, o prazo para protocolo de emendas foi adiado mais uma vez, após tantas outras, para o próximo dia 24 de outubro.

Atentos ao momento legislativo de revisão do plano, bem como da inafastável necessidade de garantir a voz da vontade popular sobre o processo, e levando em consideração os princípios constitucionais e sociais que animam o direito à cidade, o Grupo de Pesquisa e Extensão Terras e Lutas, vinculado ao Núcleo de Estudos Constitucionais do Departamento de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), elaborou uma nota técnica com propostas de emendas aos parlamentares e considerações gerais sobre a legalidade do processo de revisão, buscando evidenciar os conflitos em jogo, com especial atenção ao direito à moradia, constantemente ameaçado ou preterido por outros interesses de natureza mercadológica ou especulativa imobiliária. 

A nota técnica aborda temas relacionados com a proteção da moradia, tais como a regularização fundiária urbana, a criação e proteção das áreas e zonas especiais de interesse social e a aplicação de novos instrumentos de titulação de imóveis urbanos.

A sua publicação torna-se ainda mais oportuna face ao projeto "Reviver Centro", capitaneado pela atual gestão da prefeitura e que, embora tenha uma proposta habitacional a áreas abandonadas ou subutilizadas, submete a realização do projeto mais à lógica do capital e dos interesses particulares, subestimando a necessária observância ao déficit habitacional da cidade.

O texto destaca que a atual redação do PLC 44/2021, feita pelo poder executivo, é problemático ao condicionar o princípio da não remoção à inexistência das chamadas “situações de risco”, um expediente frequentemente empregado de forma arbitrária pelos poderes executivos para a promoção de remoções administrativas.

Embora o princípio da não remoção esteja previsto no projeto de lei, é preciso que estejamos alertas às possibilidades de reassentamento estabelecidas na nova legislação, que, de acordo com os artigos 7º, incisos XXI e XXII, poderão ocorrer em caso de projetos de interesse público, em áreas de risco ambiental e geológico e que não possam ser dotadas de condições satisfatórias de urbanização e saneamento básico, principalmente.

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Neste sentido, impossível esquecer o último ciclo de remoções que atingiu as favelas e ocupações urbanas cariocas, no período de 2009 a 2016, nas gestões anteriores do atual prefeito Eduardo Paes, por ocasião dos megaeventos esportivos que foram realizados na cidade, como a Copa do Mundo de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016, acompanhados de iniciativas atreladas a um padrão de intervenção por exceção por parte da administração pública municipal – por meio da criação de legislações especiais, muitas inclusive por decretos – que resultaram na remoção de 22.059 famílias dos seus locais de moradia.

Dentre as justificativas acionadas enquanto gramática de fundamentação das remoções ocorridas no período de 2009 a 2016, 72,2% das famílias removidas foram deslocadas sob o fundamento de “área de risco” e 9,6% removidas sob a justificativa de “interesse público”, conforme dados levantados pelo Comitê Popular da Copa e das Olimpíadas do Rio de Janeiro, no Dossiê Megaeventos e Violações de Direitos Humanos no Rio de Janeiro, no ano de 2015.

O Terras e Lutas propõe também interessantes previsões sobre a regulamentação municipal da legislação federal sobre regularização fundiária (lei 13.465 de 2017): a priorização das obras de infraestrutura, com pactuação de termos de compromisso do município com os moradores; o financiamento cruzado da regularização fundiária de interesse social com os recursos auferidos pelo município com a regularização de imóveis de populações não economicamente carentes; e a adoção de providências pelo Município com relação a casos de violência doméstica e familiar contra a mulher em núcleos urbanos regularizados, com o encaminhamento das mulheres vítimas a equipamentos de assistência social e assessoria jurídica, garantindo-lhes sejam beneficiadas pelo projeto de regularização.

Neste último ponto, priorizam-se as mulheres vítimas em razão dos despejos relacionados à violência doméstica, conforme definição da pesquisadora Raquel Ludermir em sua pesquisa de doutorado defendida na Universidade Federal de Pernambuco, quando então as mulheres são impedidas direta ou indiretamente de permanecer nas suas moradias em razão da violência doméstica contra elas praticada. Isto tem impacto direto na efetivação das diretrizes da política de regularização fundiária, na medida em que estas mulheres têm enormes dificuldades para se beneficiarem dos projetos de regularização.

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A nota técnica também indica propostas concretas para a efetivação de políticas ligadas à garantia da moradia: a aplicação do Termo Territorial Coletivo nos projetos de regularização do município, um instrumento voltado a titulação coletiva da terra; o respeito às Áreas e Zonas Especiais de Interesse social que visam urbanizar e proteger áreas da cidade priorizadas para a habitação de interesse social; e a vinculação obrigatória da arrecadação com a venda do direito de construir, pelo município, aos fundos municipais de habitação e política urbana, tal como preceitua o Estatuto da Cidade.

Com a nota técnica, o grupo espera contribuir para as propostas de emendas que serão apresentadas pelos vereadores e também fornecer fundamentos para as discussões que ocorrerão na Câmara Municipal na ocasião da deliberação em plenário. A participação ativa da sociedade civil, a despeito dos obstáculos impostos pela condução do processo de revisão pelo poder executivo, caminha no sentido da ampliação da defesa do direito à moradia no âmbito da política urbana municipal.

 

*O Grupo de Pesquisa e Extensão Terras e Lutas foi criado em 2013 e é vinculado ao Núcleo de Estudos Constitucionais do Departamento de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio. Tem como proposta articular pesquisa e extensão por meio do acompanhamento jurídico de situações de ameaça, violação ou denegação de direitos fundamentais nos contextos urbano e agrário.

**Este é um artigo coletivo escrito por José Amorim Ribas Filho, mestrando em Direito na PUC-Rio; Luiz Felipe Waitz, doutor em Direito pela PUC-Rio; e Taiana de Castro Sobrinho, doutoranda em Direito pela PUC-Rio. Os autores são integrantes do Grupo de Pesquisa e Extensão Terras e Lutas.

***Este é um texto de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Geisa Marques