Fazer jornal no Brasil dos últimos quatro anos nunca foi fácil. E fazer humor em jornal mais difícil ainda. Pior ainda nascer e sobreviver fazendo as duas coisas sob o mandato Bolsonaro. Mas foi o que aconteceu com o Grifo.
:: Carlos Castelo volta explicando como é difícil ver um banqueiro ficar pobre ::
"Não conheço nenhuma outra publicação similar no país neste momento. Aliás, depois do Pasquim, foram raras as publicações que combinaram jornalismo e humor", diz o cartunista Celso Schröder, um dos pais fundadores do mensário.
Fruto de um mutirão de cartunistas, jornalistas, escritores e intelectuais, de início apenas do Sul mas, em seguida, de todo o país, a empreitada está completando três anos.
Com a média de 24 páginas mensais, tocada sem remuneração de espécie alguma – exceto aquele prazer de chutar o traseiro dos poderosos – o jornal virtual é obra de 30 colaboradores que vão se revezando a cada edição. E, agora, acalenta o sonho da versão impressa.
Schröder relata que o projeto tinha em vista enfrentar a necropolítica de Bolsonaro e propiciar um mínimo de sanidade aos seus autores e aos seus leitores para poderem atravessar ilesos as vastas pradarias da Terra Plana.
Acompanhe a entrevista:
Brasil de Fato RS - O Grifo está completando três anos de vida, dois deles sob o mandato de Bolsonaro. O que deu para aprender sob um período tão distópico da vida nacional? É possível dizer que a arma do humor deu sua mãozinha na desconstrução (relativa) do ex-presidente?
Celso Schröder - O Grifo surgiu para enfrentar os vírus e os vermes, expressão do Haddad. É um neto do Pasquim, mas filhote direto da censura na exibição de cartuns na Câmara de Vereadores de 2019 (*) e do suplemento de humor do Brasil de Fato RS. Ele nasce para enfrentar Bolsonaro e sua necropolítica. Dentro de seus limites, grandes, ele serviu para afiar as garras contra o fascismo. Fizemos um razoável registro do período e exercitamos uma análise que deve ter servido ajudar pavimentar o caminho da reação democrática. Acho que fazemos parte dos vencedores da democracia. A função do Grifo foi manter razoavelmente sadios seus produtores e, espero, seus leitores
No decorrer dos seus três anos, o Grifo obteve uma adesão bastante expressiva não só do pessoal do cartum e do texto do Sul mas de todo o país. E o mensário, como se sabe, não tem condições de remunerar seus colaboradores. E nem possui anunciantes. Isto aconteceu devido à rarefação do espaço dedicado ao humor na imprensa de modo geral?
A continuidade da produção do jornal é um grande feito e principal mérito deste peculiar ajuntamento de cartunistas, jornalistas, escritores e intelectuais que doaram uma parte de seu tempo, num momento econômico dificílimo do país, na tradição dos jornais satíricos, organizar uma reação baseada no binômio humor/jornalismo. Parte desta gente vinha da luta pela redemocratização dos anos setenta e oitenta, parte era mais jovem.
A adesão foi imediata e a sintonia foi intensa, o que facilitou o trabalho que foi intenso em alguns momentos. Acho que o momento político limite e as condições jornalísticas escassas produziram o corpo redacional e os leitores que foram crescendo em número com o tempo. Sem auto-elogios cretinos, é preciso salientar que a qualidade técnica e estética e pertinência política dos conteúdos também se impuseram.
Qual é o principal papel que o Grifo cumpriu nesses três anos?
A principal função do Grifo, por causa da informação e do humor, foi manter razoavelmente sadios os seus produtores e, espero, os seus leitores. O humor tem a capacidade de produzir a catarse necessária para a saúde de quem o pratica e o jornalismo ajudou a enfrentar a realidade paralela que era a principal ferramenta bolsonarista. De novo, sem nenhuma vaidade, podemos afirmar que ajudamos a conformar a resistência democrática que acabou por derrotar o fascismo. Não é pouco. O riso produzido por um jornal de humor quase nunca é de felicidade
O velho Pasquim seguidamente usava a frase “Um dia ainda vamos rir de tudo isso”. É mesmo possível rir de uma época onde mais de 700 mil pessoas morreram de covid em grande parte devido ao negacionismo do governante que chamava de “maricas” a quem respeitava o isolamento?
O riso produzido por um jornal de humor quase nunca é de felicidade. Ao contrário, quase sempre é um esgar que combina catarse e consciência. Mas também é um riso de felicidade e para isto podemos, como fez o poeta, pedir desculpas aos mortos de nossa felicidade. Nosso futuro se construirá a partir desta tragédia que ainda precisa ser apurada. Nossa literatura, nosso cinema, nossa música e nosso humor será composto, para sempre, deste horror. Não há viés engraçado em hospitais bombardeados e recém nascidos mortos sufocados por falta de energia
Existe um certo senso comum que nos diz que o humor serve para a gente ir levando a vida de modo menos dolorido. Mas é possível fazer humor diante do que está acontecendo em Gaza?
Podemos e devemos rir de tudo. O humor judaico é constituído em parte da reflexão sobre o holocausto. Dito isto, confesso que tem sido muito difícil fazer humor com a situação palestina. Acho que Gaza significa uma perigosa fratura moral na humanidade e nunca sabemos os monstros que sobem destas fossas subterrâneas. Seria irônico, se não fosse trágico, ser Israel o agente do esgarçamento ético do século XXI.
O número 41 do Grifo tentará tratar disto. Não sei se conseguiremos. Não há viés engraçado em hospitais bombardeados e recém nascidos mortos sufocados por falta de energia.Milei é um sociopata histriônico que precisa ser desconstituído como foi Bolsonaro.
Como o governo do Brasil retornou à certa racionalidade em 2023, imagino que a Argentina ao eleger um candidato de ultra direita como Javier Milei, também histriônico e folclórico como Bolsonaro, irá se tornar alvo do Grifo, não?
Milei é um sociopata histriônico de certa maneira mais perigoso do que Bolsonaro e que precisa ser desconstituído como foi Bolsonaro. Neste número já trataríamos da questão argentina e certamente continuaremos a enfrentá-lo porque é uma ameaça à América do Sul e ao Brasil. Para além da desgraça que significa aos meus queridos amigos argentinos.
Milei é um personagem que, segundo se sabe, consulta regularmente através de telepatia o seu cachorro Conan, que morreu algum tempo atrás, pedindo-lhe conselhos. Como fazer humor com algo assim se o humor já vem pronto e embalado?
Schröder - Bolsonaro e seu estafe já eram um desafio para humoristas críticos. Suas piadas prontas ao mesmo tempo em que sabotavam o humorismo profissional serviam de estímulo ao seu público desprovido de qualquer senso de humor. Milei parece ser um Bolsonaro turbinado e igualmente sem limites. Se o Sig do Pasquim era o rato que rugia, o Grifo é a águia que rosna
A pauta do jornal está mais voltada para os temas nacionais e internacionais. No entanto, no ano que vem, teremos uma grande disputa pelas prefeituras. Haverá, por exemplo, mais atenção às questões de Porto Alegre, por exemplo, que são muitas e graves?
O Grifo sempre tentou manter um olhar abrangente. As seções Brasil, Mundo e Regional foram sendo tratadas de acordo com os momentos. Desde o início do ano, a questão municipal entrou no radar do jornal. (O prefeito Sebastião) Melo representa a continuidade do projeto bolsonarista com uma agenda econômica ultraliberal que significa apropriação de patrimônio público e destruição de postos de trabalho. O Grifo não vai dar trégua.
Quais os planos do Grifo para 2024?
Somos pretensiosos. Queremos ser impresso o mais rápido possível mantendo também a versão digital. Queremos um site e um canal no YouTube além de profissionalizar minimamente algumas pessoas. Se o Sig do Pasquim era o rato que rugia, o Grifo é a águia que rosna.
(*) Em setembro de 2019, dois vereadores de ultradireita – Valter Nagelstein e Mônica Leal - censuraram a exposição “Independência em Risco” na Câmara de Porto Alegre que reunia 36 charges sobre o panorama político nacional.
Fonte: BdF Rio Grande do Sul
Edição: Marcelo Ferreira