LGBTQIA+ na Rússia

Rússia: classificar LGBTs de 'extremismo' é parte de ofensiva antiocidental, dizem analistas

A Suprema Corte da Rússia adotou uma decisão de incluir o 'movimento LGBT' como organização extremista

Brasil de Fato | Rio de Janeiro |
Ativistas da comunidade LGBT ucraniana seguram uma bandeira LGBT em frente à embaixada russa em Kiev, em 24 de julho de 2019. - Sergei Supinsky / AFP

A Rússia deu mais um passo na restrição aos direitos da comunidade LGBTQIA+ no país. No último dia 30 de novembro, a Suprema Corte da Rússia aprovou uma lei classificando o "movimento LGBT" como "organização extremista", proibindo suas atividades no território da Rússia.

A decisão acata um pedido do Ministério da Justiça, que apresentou uma petição em 17 de novembro, afirmando que as "atividades do movimento LGBT" revelaram "vários sinais e manifestações de orientação extremista", incluindo "incitamento à discórdia social e religiosa". A decisão entra em vigor no momento da sua adoção, mas ainda não foi publicada oficialmente na lista de "extremismo" do Ministério da Justiça.

Em entrevista ao Brasil de Fato, Alexander Verkhovsky, diretor do Centro de Informação e Análise Sova, que pesquisa questões ligadas ao extremismo na Rússia, destaca que a incorporação do "movimento LGBT" à lista de organizações extremistas é só uma questão de tempo e que em breve a lei começará a entrar em vigor. A partir disso, "qualquer pessoa que faça algo relacionado com questões LGBT pode ser cobrada por 'participação" nos termos do artigo 282.2 do Código Penal".

Segundo este artigo do Código Penal da Federação Russa, crimes de natureza extremista são entendidos como crimes cometidos por motivos de ódio ou inimizade política, ideológica, racial, nacional ou religiosa, ou por motivos de ódio ou inimizade contra qualquer grupo social.

Na prática, ativistas LGBTIQA+ no país – e o uso de símbolos relacionados à comunidade LGBTIQA+ – correm o risco de serem acusados ​​de participar em atividades de uma organização extremista, e a qualificação de crime inclui "induzir ou envolver de outra forma" outras pessoas em tais atividades.

O pesquisador Alexander Verkhovsky acredita que os primeiros a serem atingidos pela nova norma serão os ativistas das causas LGBTQIA+, mas dificilmente a aplicação da lei terá um uso generalizado em um primeiro momento.

"Minha previsão é que começarão com alguns militantes. Não haverá um uso verdadeiramente generalizado do artigo 282.2: as agências de aplicação da lei não têm força para isso agora. Embora dependa muito do caso e da homofobia particular de um determinado policial", argumenta.

Além da conceituação ampla e vaga sobre extremismo, a decisão também não especifica o que ela classifica como "movimento" e o que seriam as "atividades" desta suposta organização. Para a Evelina Chayka, ativista da organização de defesa dos direitos LGBT, EQUAL PostOSt, a medida também é uma forma de perseguir dissidente do governo russo.

"Para nós é evidente que não existe e não pode existir nenhum movimento internacional LGBT, e compreendemos que a partir desta ideia inexistente vão começar a perseguir e reprimir todos que forem necessários ser perseguidos, todos os dissidentes, e, em primeiro lugar, as pessoas LGBTQIA+ que vivem na Rússia", disse a ativista ao Brasil de Fato.

A decisão não é a primeira medida das autoridades russas para restringir os direitos e liberdades das pessoas LGBTQIA+. Em novembro de 2022, foi aprovada uma lei que proíbe “propaganda LGBT”. Já em julho deste ano, foi adotado um projeto de lei que proíbe a cirurgia de resignação sexual no país.

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Em declarações oficiais ao longo dos últimos anos, o presidente russo, Vladimir Putin, sempre tratou a restrição aos direitos de minorias sexuais como uma defesa dos valores tradicionais e familiares, associando as liberdades LGBTQIA+ como uma interferência dos valores ocidentais na tradição da cultura russa.

"O casamento é a união de um homem e uma mulher. Em relação à família pode ser um pouco diferente. Esta é a ideia certa e deve ser apoiada. Quanto ao 'pai número um e pai número dois', já o disse publicamente e repito: enquanto eu for presidente não teremos isto. Teremos 'pai' e 'mãe'", disse Putin ainda em 2020.

Já em 2021, o presidente russo classificou a transsexualidade como um "obscurantismo" contra o qual os valores tradicionais russos devem se defender.

"Tenho uma abordagem tradicional: uma mulher é uma mulher, um homem é um homem. Uma mãe é uma mãe. Um pai é um pai. Espero que a nossa sociedade tenha uma proteção moral interna, ditada pelas nossas confissões religiosas tradicionais do Federação Russa. […] Todos os povos da Federação Russa, gostaria de salientar, têm uma espécie de proteção moral interna contra esse obscurantismo", afirmou.

O conjunto de medidas contra minorias sexuais do último ano se insere no contexto do recrudescimento do conservadorismo no país, fortalecido pela guerra na Ucrânia. Como afirmou o deputado Alexander Khinshtein, chefe do Comitê de Política de Informação da Duma,na ocasião da discussão sobre a proibição da "propaganda gay", a "operação [militar na Ucrânia] está ocorrendo não apenas nos campos de batalha, mas também nas mentes e almas das pessoas".

Já o vice-presidente da Duma, Pyotr Tolstoy, classifico o que chamou de "propaganda e a aprovação LGBT" como um "instrumento de guerra híbrida". Segundo ele, é o futuro da Rússia que "está em jogo".

Para o pesquisador Alexander Verkhovsky, no entanto, a empreitada do Kremlin contra os direitos da comunidade LGBTQIA+ está mais relacionada com uma "batalha civilizacional" contra o Ocidente do que diretamente com a guerra da Ucrânia.

De acordo com ele, toda a luta pelo conservadorismo moral é uma parte 'positiva' da agenda antiocidental de 'confronto civilizacional': "Aparentemente, às vezes é necessário colocar lenha neste lado da fogueira", diz Verkhovsky.

"Não há conexão direta com a guerra. Se a guerra terminar repentinamente amanhã, a ideia de 'confronto civilizacional' não irá a lugar nenhum", completa.

Primeiros efeitos

Apesar de ainda não estar claro qual será o efeito para as pessoas LGBTQIA+ na Rússia após a classificação de "extremismo", a decisão já surtiu efeito logo nos primeiros dias da medida ser anunciada.

No último dia 2 de dezembro, apenas dois dias depois da decisão do tribunal russo, houve casos da polícia invadir boates onde aconteciam festas LGBTQIA+ em Moscou e em São Petersburgo sob o pretexto de procurar drogas. Passaportes dos visitantes foram fotografados pelos policiais.

A ativista Evelina Chayka contou ao Brasil de Fato que nos primeiros dias após a decisão, uma tradicional boate gay em São Petersburgo fechou as suas portas.

"Nós sabemos que fecharam uma das mais antigas boates gay em São Petersburgo, que a princípio antes vinha lidando bem com todas as ondas de homofobia que aconteceram na Rússia, e agora apenas após um ou dois dias (da nova lei) fechou as suas portas. De acordo com a versão oficial, o proprietário teria se recusado a prorrogar o aluguel do espaço, mas está claro que não foi o que de fato aconteceu", afirma.

De acordo com ela, o ativismo LGBTQIA+ na Rússia sempre correu certo risco de se expor e ser enquadrado pela justiça, mas agora este risco se expandiu para as pessoas comuns que nada têm a ver com organizações ou movimentos sociais de defesa de direitos de minorias sexuais.

"Pessoas que simplesmente vão a boates ou a lugares de encontro da comunidade (LGBT) não eram consideradas sob risco, pelo menos em termos gerais. Agora acontece que agentes de segurança têm entrado nesses espaços, boates, saunas e simples locais de encontro, às vezes colocam todos contra a parede, às vezes fazem fotos de suas identidades, e depois os liberam. Não sabemos se essas pessoas vão ser atingidas quando a decisão do Tribunal entrar em vigor, ou se é apenas um ato de humilhação", conta.

Evelina Chayka afrma que existem vários cenários sobre essa decisão e para que ela pode servir. O cenário mais pessimista, segundo ela, seria a proibição e possível detenção em massa de quaisquer manifestação de símbolos LGBT, como "o simples uso de pulseira com as cores arco-íris", por exemplo.

"Há um cenário mais brando, que seria tirar a atenção dos cidadãos das eleições presidenciais, tirar o foco da guerra da Ucrânia, pegar alguns casos como exemplo, criar um temor, e depois esquecer disso", completa.

Edição: Rodrigo Durão Coelho