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Direitos humanos sempre, anistia nunca mais!

A questão precípua, hoje, é ultrapassar a retórica do papel, suplantando as boas intenções e convertê-los em práticas

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Mesmo sob a insígnia democrática, violações aos direitos humanos persistem - Mídia Ninja

10 de dezembro é o Dia Internacional dos Direitos Humanos. Data dos 75 anos da publicação da Declaração Universal, marco importante em resposta ao holocausto e às atrocidades da 2ª Guerra Mundial. 

Direitos humanos ou barbárie. Não há meio termo. Infelizmente, defender essa bandeira, ainda hoje, é fonte de contendas e de turvas indignações. Gente que, contrariando a própria gênese, os enxerga como dirigidos a “bandidos”. Os mesmos que, dizendo-se cristãos e “de bem”, afirmam: “Bandido bom é bandido morto”. De fato, as pessoas submetidas à privação de liberdade, seja adulto ou adolescente, não deixam de possui-los. Até porque, a pena de prisão não é ou não deveria ser sinônimo de banimento, malgrado as condições desumanas e insalubres dos cárceres de norte a sul do país. Ocorre que a responsabilização por atos pregressos, uma vez assegurada a ampla defesa, o contraditório e se imprescindível, não lhes retira a condição primeira de humanos.

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Ao curso da história o ímpeto autoritário teima a nos rondar. Aqui e acolá. E, mesmo sob a insígnia democrática, violações aos direitos humanos persistem, são recorrentes. Não raro, pelas mãos bélicas de Estados ditos civilizados e tidos por porta-vozes, alguns com assento permanente no conselho de segurança da ONU [Nações Unidas] e, portanto, com poder de voto e de veto. Ensejando, no mais das vezes, lamentos ou ligeiras confissões, talvez uma nota de jornal, até o próximo evento. Sem ruptura efetiva com o que aí está.

Sob o ponto de vista normativo há um expressivo número de documentos (leis, declarações e convenções) enaltecedores dos direitos humanos. A questão precípua, hoje, é ultrapassar a retórica do papel, suplantando as boas intenções e convertê-los em práticas concretas. 

“Direitos humanos para humanos direitos”... Todos nós já escutamos ou, é provável, reproduzimos esse discurso. O reconhecimento disso é necessário, não para nominar culpados, somos corresponsáveis, mas para mudar a rota da locomotiva.

O Brasil, após 21 anos de ditadura civil-militar, teve a desfaçatez de eleger – pelo voto popular e direto – um indivíduo, até então, irrelevante politicamente e mais conhecido por sua verborragia delinquente. Tendo por herói um torturador notório, condenado inclusive pelo conservador Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo e outrora atuante no extinto DOI-Codi à rua Tutoia, o maior centro de repressão, torturas e assassinatos que se tem notícia e que, como um prenúncio do porvir, já o “homenageara” no plenário da Câmara dos Deputados, em 17 de abril de 2016, sem qualquer consequência na esfera criminal. Pois é, camaradas. Dormientibus non succurrit jus. A história, assim como o direito, não socorre aos que dormem...

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“Sou favorável à tortura, tu sabe disso”. “O erro da ditadura foi torturar e não matar”. Só para ilustrar. Um arsenal de absurdos proferidos e demonstrados desde sempre à luz do dia nessa República das Milícias sem maior surpresa ou confronto de posições e ideias.

Ora na difusão do ódio com escora numa suposta liberdade de expressão, ora no fetiche às armas e à eliminação do outro, ora na asquerosa imitação de pessoas com falta de ar em plena pandemia da Covid-19 (mais de 700 mil mortos!) ou, ainda, na forma de se vestir, vide os dizeres de sua camiseta: “Direitos humanos: esterco da vagabundagem”.

Tal figura, embora deplorável, é o reflexo da própria sociedade ou, melhor, de parte dela, hipnoticamente identificada. Violenta desde o nascedouro, a partir do sangue indígena e negro e das tentativas de apagamento e “novas versões”, pautadas na desinformação e desonestidade intelectual, mormente condizentes com os que propagam e se alimentam de fake news.

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Nesse trágico contexto, muitos exigem o retorno das fardas e dos coturnos ao poder e esbravejam por um “novo” Ato Institucional n.º 5 (AI-5), o mais duro golpe.

Em plena democracia (2019-2022), tanto quanto fragmentada, ocuparam mais cargos e funções de relevo do que à sombra da própria ditadura civil-militar. Decorrência, também, da absoluta falta de uma justiça de transição e do desdém para com um dos seus mais caros pilares: o direito à memória, verdade e justiça, no contraponto explícito aos horrores dos anos de chumbo. Justamente para que a perversidade do passado jamais se repita, não obstante o “museu de grandes novidades...” (Cazuza, 1988).

De se somar a edição da Lei n.º 6.683/79 – Lei da Anistia, mas sem desmerecer os legítimos anseios por redemocratização que, sob tutela militar, nivelou torturados e algozes, em completa afronta às normativas internacionais de direitos humanos ao refutar a imprescritibilidade dos crimes contra a humanidade, inclusa a tortura, levianamente convertidos em “políticos”.

35 anos depois da festejada promulgação da Constituição de 1988 a consagrar, de forma expressa, a prevalência dos direitos humanos (artigo 4.º, II), o resultado não poderia ser muito diferente.

Sigamos atentos e vigilantes. Direitos humanos, direitos de todas e todos. Ontem e hoje... Anistia Nunca Mais!!
 

*O autor é sociólogo e educador na Fundação CASA-SP

Edição: Rebeca Cavalcante