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Cesar Calejon: 'Bolsonarismo arrefeceu, mas vitória de Trump pode reacender extrema direita no Brasil'

Em novo livro, jornalista investiga raízes da elite brasileira e analisa a capilaridade dos discursos supremacistas

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Cesar Calejon se dedica a analisar a ascensão do Bolsonarismo em trilogia de publicações - Arquivo pessoal do autor
Elitismo histórico e cultural organiza os arranjos da sociedade e cria gramática da desigualdade

A vitória de Javier Milei na Argentina e uma possível vitória de Donald Trump nos Estados Unidos, em 2024, podem dar fôlego ao bolsonarismo e à extrema direita no Brasil. Para o jornalista Cesar Calejon, a maneira como Jair Bolsonaro (PL) foi derrotado por Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nas eleições de 2022, abalou os ânimos de seus seguidores, mas não impedirá que alguém assuma seu posto, uma vez que ele está inelegível.

"O bolsonarismo arrefeceu, sem dúvida, porque a derrota nas urnas, em outubro do ano passado, foi um golpe muito duro, de muitas maneiras. Bolsonaro cometeu o maior estelionato eleitoral da história, hoje em dia a gente sabe. Ele não esperava essa derrota e isso, de alguma forma, debilita o próprio bolsonarismo", afirma. 

"Mas o bolsonarismo tem uma ligação muito forte com o trumpismo e – infelizmente eu vou ter que te dizer isso, vai ficar gravado aqui – existe uma chance enorme do trumpismo voltar ao poder nos Estados Unidos no ano que vem, em 2024", comenta Calejon. 

Calejon é o convidado desta semana no BdF Entrevista e, além de uma análise sobre a extrema direita brasileira, o jornalista fala sobre seu novo livro, Esfarrapados – Como o elitismo histórico-cultural moldou as desigualdades sociais no Brasil, que escancara as raízes da desigualdade no país.

O termo "elitismo histórico e cultural", adotado pelo jornalista, aprofunda a análise sobre como as estruturas de poder definem o que acontece na sociedade. "É uma força social, que vigora em absolutamente todos os estratos", explica. 

"E também é verdade que ela organiza um modelo de sociabilidade que concentra cada vez mais recursos na mão de uma minoria cada vez menor. E aí sim se formam as elites e, dialeticamente, uma vez constituídas, essas elites passam a exercer força no sentido de fazer a manutenção e agudizar o próprio elitismo histórico e cultural", comenta Calejon.

Na conversa, o jornalista também fala sobre como "o próprio bolsonarismo é uma das expressões possíveis de como esse modelo de sociabilidade, organizado pelo elitismo histórico e cultural pode se manifestar". 

"Existem várias outras [pessoas que podem assumir o lugar de Bolsonaro], você tem o Tarcísio [de Freitas] (Republicanos), você tem a própria Michelle Bolsonaro (PL), você tem outras figuras que são tão nefastas quanto o Jair Bolsonaro, e que podem assumir esse papel de liderança. Mas que, fundamentalmente, não importa o nome que a gente dê, bolsonarismo ou qualquer outro nome, as premissas elementares que organizam essa filosofia política seguem sendo os mesmos: racismo, misoginia, homofobia, armamentismo, dogma religioso no cerne da organização da vida sociopolítica do país". 

Confira a entrevista na íntegra:

Brasil de Fato: Você lançou neste ano o livro Esfarrapados para tentar desvendar as raízes da elite brasileira e de como ela adentra as entranhas da sociedade. Para nortear o livro, você utiliza o termo "elitismo histórico e cultural". Como é que esse termo surgiu na tua pesquisa e por quê? 

Cesar Calejon: O que eu chamo de elitismo histórico e cultural surge de uma dimensão bastante empírica, de observação, de como a sociedade brasileira e ocidental, para todos os efeitos, a meu ver, funciona. O que eu quero dizer quando eu trago a questão do elitismo histórico e cultural, e eu argumento isso no livro? A minha questão aqui não é fazer um debate nominalista ou cunhar um determinado tema para todos os efeitos. 

O que eu argumento no Esfarrapados é que um conceito, como eu sinto, tem valor na medida em que ele atenda duas características centrais: primeiro, que ele seja capaz de refletir a materialidade factual de como a sociedade está organizada; e segundo, que ele ofereça uma carga reflexiva que seja capaz de, de alguma forma, trazer elementos que sejam capazes de promover a reflexão, promover algum tipo de auxílio para que essa realidade seja refletida, seja repensada. 

O que eu quero dizer quando eu falo elitismo histórico e cultural? É uma força social que organiza os arranjos da sociedade, com base em categorias de distinção, de forma a criar uma espécie de gramática da desigualdade e, por fim, uma hierarquia moral que rege o funcionamento político, social e econômico da nação. É óbvio que, no caso aqui, a gente está falando do contexto brasileiro, mas a gente poderia utilizar essa categoria para se refletir acerca de como é que se organiza a sociedade internacional, por exemplo. 

Essa é a definição teórica, mais acadêmica do termo. Mas é muito fácil perceber no cotidiano da nossa vida como o elitismo histórico e cultural organiza os arranjos sociais brasileiros e da própria sociedade internacional. Existem expressões cotidianas que conformam a maneira como o elitismo histórico e cultural atua. A principal delas segue sendo a raça, a principal categoria utilizada para fazer para organizar essa gramática da desigualdade e para organizar essa hierarquia moral, segue sendo a raça. 

Mas hoje, na terceira década do século 21, a raça não é o único parâmetro utilizado, você tem categorias fenotípicas, você tem dimensões socioeconômicas, você tem uma série de outros valores que estão atrelados com a raça, mas que transbordam a questão da raça, porque, se não, eu simplesmente trabalharia com a questão do racismo e não precisaria cunhar uma outra categoria que seja capaz, a meu ver, de endereçar a complexidade do que a gente vive.

E essa hierarquia moral que te diz, por exemplo, que brancos valem mais do que negros, homens valem mais do que mulheres, héteros valem mais do que a comunidade LGBTQIA+, e assim sucessivamente. Isso se aplica para a comunidade internacional também, é muito fácil perceber essa hierarquia moral organizada pelo elitismo histórico e cultural, quando você percebe que vidas estadunidenses valem mais do que vidas latino-americanas, que vidas na Europa Ocidental valem mais do que na África Subsaariana, que vidas israelenses valem mais do que vidas palestinas e assim sucessivamente.

E você aponta três fatores que são propulsores desse elitismo histórico e cultural: o protagonismo social, o hedonismo e a recompensa. Queria que você falasse um pouquinho resumidamente sobre esses pontos. 

Esses três propulsores do elitismo histórico e cultural, ao meu ver, eles se aplicam principalmente no ocidente. E por que isso acontece? O principal argumento, o cerne da minha argumentação – e isso vem de toda escola na qual eu fui criado – é que seres humanos se desenvolvem com base na cultura, e existe toda uma dimensão, por exemplo avançado pela direita liberal e pela direita neofascista, não só brasileira, mas também ao redor do mundo, de que existem seres humanos que são superiores por natureza e existem seres humanos que são inferiores por natureza, biologicamente, fisiologicamente superiores ou inferiores.

Se você pegar o trabalho, por exemplo, do Olavo de Carvalho, que é o principal guru do bolsonarismo, no [livro] O Jardim das Aflições, por exemplo, ele utiliza termos muito sofisticados, em latim, como zoom politique, ele cita filósofos gregos e pensadores iluministas com uma linguagem toda rebuscada para, no fim do dia, te dizer que existem pessoas que são superiores por natureza, pessoas que são inferiores por natureza e, naturalmente, faz sentido que essas pessoas que são superiores moralmente, intelectualmente, governem a sociedade. 

Isso vem de uma dimensão que chama perenialismo. Eu não vou conseguir me aprofundar muito aqui, por efeito do tempo que a gente tem, mas o perenialismo do René Guénon, por exemplo, acredita nessa dimensão de que existe uma filosofia perene, na qual uma espécie de ordem judaica cristã deve governar o mundo, e que a modernidade ocidental vem subvertendo esses valores. Tudo isso está contido na proposta do bolsonarismo. 

Quando você avalia, não precisa ser nem doutor em semiótica para entender como os principais parlamentares, filósofos, comunicadores do bolsonarismo avançam essa questão que eu acabei de te salientar. 

É muito interessante que muitos desses parlamentares não são, na verdade, dessa elite histórica e cultural. Eles são, às vezes, muito pobres, policiais, pessoas que sofrem na carne com as questões sociais e diferenças do Brasil histórico.

Exato. E veja, por que eu não falo das elites como grupos sociais, que são capazes de dominar a sociedade de uma forma autoritária, isso é parte do processo. O que eu estou propondo aqui é que o elitismo histórico e cultural é uma força social, que vigora em absolutamente todos os estratos da sociedade. E também é verdade que ela organiza um modelo de sociabilidade que concentra cada vez mais recursos na mão de uma minoria cada vez menor. E aí sim se formam as elites e, dialeticamente, uma vez constituídas, essas elites passam a exercer força no sentido de fazer a manutenção e agudizar o próprio elitismo histórico e cultural. 

Mas o elitismo histórico e cultural, como eu vejo, tem dois grandes pilares: o capital enquanto processo das ideias do campo marxiano, que usurpam a classe trabalhadora, que tem como gênesis o que Marx chama de acúmulo primitivo do capital, na transição do feudalismo para o capitalismo, ou seja, você expropria a classe trabalhadora, deixa a classe trabalhadora com a sua força de trabalho como única mercadoria a ser vendida, no sentido de fazer a manutenção da sua subsistência e, a partir daí, você, capitalista, se apropria da maior parte daquilo que é produzido com a força de trabalho da nossa classe trabalhadora.

E o outro pilar é a invasão das monarquias europeias nas Américas, que a gente convencionou chamar de colonização. A meu ver, é um termo demasiadamente sutil que acaba por eufemizar o que de fato aconteceu, considerando que existe toda uma carga de estupro, de pilhagem, de violência absurda. O que eu chamo de elitismo histórico e cultural tem esses dois pilares, o capital enquanto processo e a invasão das monarquias europeias nas Américas. Isso institui um modelo que começa pelo liberalismo vitoriano. 

A partir da década de 1980, o capitalismo tem, como posição preponderante da forma como ele se manifesta na sociedade, o neoliberalismo, com [Margareth] Thatcher, com o [Ronald] Reagan, com o [Valéry René] Giscard d'Estaing, com todas essas pessoas, que passam a instituir uma espécie de governo dos homens, segundo o princípio universal da concorrência e, consequentemente, da desigualdade. 

Isso vem se agudizando ao longo dos últimos 300 anos. É esse modelo de sociabilidade que te diz que existe uma competição de todos contra todos, a organização humana de forma natural é assim, não existe forma de evitar isso e que, portanto, o capitalismo seria a única forma de organização possível da sociedade. 

Se você conversar com um amigo liberal teu, talvez ele não tenha essa clareza teórica que eu estou propondo, mas com frequência você vai ver surgir coisas do tipo: "o mundo é capitalista, não tem como, infelizmente é assim". Você vê comparações que surgem com a etologia ou a entomologia, dizendo que na natureza funciona assim, é a lei do mais forte, a lei da selva. Uma vez que você tem esse modelo de sociabilidade consolidado, a meu ver, existem três propulsores – e aí eu entro na tua provocação de uma maneira mais objetiva. 

A primeira é a busca por protagonismo social, porque em um modelo em que está todo mundo olhando para telas o tempo todo, você tem essa agudização do próprio capitalismo através da sua versão predominante, que é o neoliberalismo a partir de 1980. Então, o que já era uma competição se torna uma competição desenfreada, como se não existisse outra forma de organização social. A partir da década de 1990, surge e se populariza a internet e, a partir de 2010, 2013, se popularizam os smartphones. 

Então, agora está todo mundo brigando desesperadamente por protagonismo social, porque isso se converte em likes, se converte em toda uma gama de benefícios que são extremamente sedutores. O protagonismo social passa a ser um dos principais propulsores de como é que a gente se organiza. Em segundo, eu coloco o hedonismo, porque o hedonismo é uma categoria extremamente ampla. O hedonismo significa que você organiza as tuas ações com base na busca pelo teu próprio prazer. E isso é muito amplo, porque o que te dá prazer pode ser extremamente egoísta, mas também pode ser conduzir um projeto social, por exemplo. O fato é que na nossa sociedade, como ela está disposta, organizada pelo elitismo histórico e cultural, a busca pelo prazer passa a ser o centro da ação humana. 

E por fim, as recompensas materiais e financeiras. O que você tem organizado na sociedade do capital desde o começo das grandes navegações, e talvez até antes disso, a gente pode encontrar as raízes desse processo de busca por recompensa material e financeira ainda na pré-história de uma maneira clara, muito menos exacerbada, muito menos voraz do que o que a gente tem a partir das grandes navegações no fim do século 15, começo do século 16. Mas isso também já é um processo bastante milenar para todos os efeitos.

Por mais que a gente tenha até certa homogeneidade nesse elitismo histórico e cultural, você tem tensões dentro das sociedades, das classes. Há forças de direita, forças de esquerda, às vezes se alternando no poder. Na Europa, por exemplo, acontecem situações um pouco mais complexas. Na Espanha, em Portugal, você tem governos de esquerda, mas que têm tensões racistas, homofóbicas e xenófobas no seu cerne. Em outro capítulo você fala sobre algumas iniciativas de organização popular que foram bem sucedidas, entre elas o Finapop do MST, que estimula o financiamento popular para agricultores. Ou seja, existe um outro mundo possível acontecendo paralelamente, não é? 

Sem dúvida, existe. Ao meu ver, qual é a importância de entender que o desenvolvimento humano não se dá no âmbito biológico – eu não vou nem usar biológico, mas sim fisiológico, porque biológico é algo mais amplo e que compreende essa carga cultural a qual eu me refiro. Se você acredita que o desenvolvimento humano está restrito à área fisiológica, é óbvio que você não consegue pensar possibilidades que transcendam aquilo que já está estabelecido. 

Se eu te digo "o José se forma com base naquilo que ele traz de maneira pré-formada na carga genética dele, na tua fisiologia", então não importa muito o tipo de valor, o tipo de cultura que te cerque, o tipo de instrução que você recebeu dos teus pais, os tipos de ideias às quais você foi exposto através da influência dos teus amigos, porque a tua mentalidade e tudo o que segue já está conformada por uma determinação fisiológica, genética e tal. Esse é um debate relativamente surrado e a maioria das pessoas já entende que a questão não é por aí. 

Mas se você pegar a forma como a extrema-direita se organiza, não só no Brasil, mas ao redor do mundo, isso está pressuposto na fala dessas pessoas. Talvez elas nem entendam, teoricamente, isso que eu estou propondo aqui, mas elas acreditam que existem seres humanos que são superiores ou inferiores por natureza. Quando você entende que esse não é o caso e que o cerne do desenvolvimento humano é a questão cultural, você também pode extrapolar isso para a organização da sociedade de forma mais ampla. 

Então quer dizer que o Brasil está organizado de uma maneira que traz um legado histórico e cultural do que foi o Brasil Colônia e do que foi o Brasil Império, e do modelo escravista que organizava os arranjos sociais naquela ocasião. O país não é o que ele é porque essa é a única maneira possível de organização societária. Assim como o José não é o que ele é porque essa é a única maneira de organização, considerando que esses parâmetros já estão pré-formados no teu sistema. 

Uma vez que a gente entende isso, isso também é muito doloroso, porque você passa a ter que fazer uma revisão no sentido – eu vou falar por mim para facilitar, tá? Eu sou homem branco, heterossexual, eu tenho ascendência italiana, espanhola e libanesa. Então, uma boa parte daquilo que eu entendo que são as possibilidades que eu recebi na vida, elas não se produziram porque eu sou genial, ou porque eu sou mais esforçado, ou porque eu sou mais capaz. Elas se produziram porque eu tenho ascendência europeia, sou branco, homem e heterossexual. 

É muito mais difícil ter que olhar para essa revisão e dizer "ah, quer dizer que o meu 'sucesso' não é porque eu sou brilhante". É claro que isso é muito mais complexo do que, simplesmente, reduzir a questão. Mas o fator preponderante do que eu estou dizendo é o aspecto cultural, não é o meu esforço, o meu mérito, a minha capacidade – a despeito de todos esses elementos também entrarem na equação. 

Mas o cerne da equação é essa disposição histórica e cultural, que favorece uma minoria invariavelmente branca, hétero, de ascendência europeia, em detrimento do restante da nossa população. Uma vez que você entende isso, isso é doloroso, mas também é libertador porque você olha para o estado de coisas que a gente tem determinado no mundo hoje e você percebe, "bom, se isso é uma construção histórica e cultural, a gente pode organizar uma outra composição histórica e cultural que vai refletir um novo arranjo de sociedade daqui para frente". 

Isso não é tão fácil e não pode ser organizado em 10, 15, 20 anos, porque o atual modelo de sociabilidade que você experimenta hoje, em 2023, nesse começo de novo século, é uma construção milenar que, no limite, tem 300, 400 anos de um modelo de sociabilidade que vai ao encontro disso tudo que eu coloquei anteriormente. Então, você não pode alterar isso em 10, 15, 20 anos. Agora, isso também não pode servir para te desmobilizar. "Ah, então já que eu não posso alterar tudo através de uma única grande revolução em 10, 15 anos, eu não quero nem saber disso". Não, você vai lutar.

Enquanto comunicador, o trabalho que você faz, o trabalho que eu faço, nós somos gotinhas de água num oceano, no sentido de pavimentar um caminho para que futuras gerações sejam capazes de experimentar um modelo de sociabilidade distinto desse que a gente tem hoje. Por que essa tua questão é muito boa e muito pertinente? Porque você passa a compreender um novo mundo, que não existe uma única forma de organização social que seja a inexorável, mas que, de muitas maneiras, isso é um processo longo, trabalhoso e que requer um esforço imenso no sentido de começar o que a gente quer ver, no sentido de transformar esse modelo de sociabilidade no futuro. 

César, você acabou se especializando, ao se debruçar de maneira intensa, no bolsonarismo e seus maneirismos, sobre esse universo da extrema direita no Brasil. Na nossa última conversa, você estava lançando o livro Sobre perdas e danos, negacionismo, lawfer e neofascismo no Brasil, ainda durante o governo Bolsonaro. Pouco mais de um ano depois, o que mudou no Brasil? Que Brasil é esse? 

Eu acho que o bolsonarismo arrefeceu, sem dúvida, porque a derrota nas urnas, em outubro do ano passado, foi um golpe muito duro, de muitas maneiras. Bolsonaro cometeu o maior estelionato eleitoral da história, hoje em dia a gente sabe que ele utilizou a Caixa Econômica Federal, ele deu o auxílio, benefícios de todas as ordens, tentou utilizar a Polícia Federal e a Polícia Rodoviária para impedir e para dificultar o voto do povo nordestino, onde o Lula tem uma adesão maciça. Então, ele não esperava essa derrota e isso, de alguma forma, debilita o próprio bolsonarismo. 

O que eu diria nesse momento, um ano depois sobre o que é diferente, é isso: o bolsonarismo perde tração considerando aquilo que ele tinha nos anos anteriores e, de muitas maneiras, o campo progressista ganha força com esse primeiro ano do governo Lula, que traz uma série de mudanças bastante significativas, principalmente na nossa macroeconomia e, principalmente na forma como o Brasil é percebido junto à sociedade internacional. 

Agora, isso posto, o bolsonarismo está enfraquecido momentaneamente, porque o bolsonarismo tem uma ligação muito forte com o trumpismo e – infelizmente eu vou ter que te dizer isso, vai ficar gravado aqui – existe uma chance enorme do trumpismo voltar ao poder nos Estados Unidos no ano que vem, em 2024. Não me julguem, não é o que eu quero, não estou sendo pessimista, mas enquanto analista, enquanto mestre em mudança social e participação política, eu preciso olhar para a materialidade factual de como as coisas se apresentam, e não para aquilo que eu gostaria que acontecesse.

E hoje é o cenário que está dado, a liderança de Trump na corrida eleitoral.

É, infelizmente eu vejo o governo Joe Biden, muito débil, muito frágil. Não que eu tenha qualquer tipo de apreço aos democratas e ao Joe Biden, mas eu os vejo como dos males o menor, principalmente considerando que Bolsonaro tem uma ligação muito próxima com o trumpismo e isso vai renovar as forças do bolsonarismo no Brasil, caso o Trump seja eleito novamente nos Estados Unidos. 

E eu acho que isso é o que, infelizmente, deve acontecer. A gente vai ter que lidar com isso, muito provavelmente a partir do ano que vem de novo, com essa retomada de força do bolsonarismo e, ainda que esse não seja o caso, o próprio bolsonarismo é uma das expressões possíveis de como esse modelo de sociabilidade organizado pelo elitismo histórico e cultural pode se manifestar. Existem várias outras, você tem o Tarcísio [de Freitas], você tem a própria Michelle Bolsonaro, você tem outras figuras que são tão nefastas quanto o Jair Bolsonaro, e que podem assumir esse papel de liderança.

Mas que, fundamentalmente, não importa o nome que a gente dê, bolsonarismo ou qualquer outro nome, as premissas elementares que organizam essa filosofia política seguem sendo os mesmos: racismo, misoginia, homofobia, armamentismo, dogma religioso no cerne da organização da vida sociopolítica do país. Isso não vai mudar, infelizmente. 

O que se produziu nesse começo do século 21, a meu ver – tomara que eu esteja novamente errado aqui – mas tende a caracterizar uma tensão dinâmica de como não só a nossa política doméstica vai se organizar, mas a política no nível global, em ampla medida. Exceto alguns países, por exemplo, que atuam de uma maneira bastante diferente, como a China, que tem uma tradição confucionista milenar, na qual se organizam outros tipos de valores e ideias – a gente pode criticar, a gente pode não gostar, a questão aqui não é essa. 

A leitura, a análise, não é tão maniqueísta no sentido de dizer bom ou ruim, feio ou bonito, certo ou errado. A ideia é explorar a integralidade do que cada nação faz, mas salvo raras exceções, o mundo inteiro vai estar caracterizado por essa tensão dinâmica entre um campo progressista e uma outra ala extremista que beira o neofascismo, que beira ideias totalitárias e que tentam utilizar em várias partes do mundo, pelo menos a religião como cerne das suas próprias propostas. Eu não acho que isso vai mudar no nosso tempo de vida. Eu acho que isso está determinado e é algo que deve caracterizar essa tensão dinâmica para os próximos 30, 40, 50 anos. 

Edição: Thalita Pires